quinta-feira, março 21

Diário de um Livreiro: o sebo dos sebos



 

Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de livraria
Jorge Luis Borges (1899-1986)










Viajei para Galloway – “o canto esquecido da Escócia” – e perambulei por Wigtown, uma cidadezinha da região com menos de 1.000 habitantes. Lá conheci a terceira livraria do mundo na avaliação do The Guardian, que usou para isso o critério de “peculiaridade e excelência”. Essa viagem foi feita sem sair de casa, percorrendo “O Diário de um Livreiro” escrito por Shaun Bythell, dono da livraria e de refinada ironia, além de deliciosas histórias que conta com humor.

Muitas delas foram protagonizadas por clientes e funcionários da livraria, assim como por autores de diferentes países que participam dos festivais do livro e se alojam no “Retiro dos Escritores”. Lá, após jornada cansativa, um grupo bebericava na maior alegria, quando no final da noite chegou Louise Stern, escritora estadunidense residente em Londres. Surda, ela se fazia acompanhar por um intérprete na língua de sinais na qual se comunica. Com a palavra, Shaun:

– O ambiente ficou ligeiramente sério. Louise percebeu a tensão e se colocou à disposição para responder perguntas.

– “Você fez uma boa viagem até aqui?” – indaguei. Respondeu que sim, tudo traduzido na língua de sinais. Depois ela disse:

– “Agora é a minha vez: com que idade você perdeu a virgindade?” Foi o suficiente para quebrar o gelo e voltarmos à devassidão indecente de antes de sua chegada.

O Diário está repleto de histórias sucedidas na “Cidade dos livros”, título com a qual Wigtown foi agraciada em 1998. No festival literário anual durante dez dias de setembro/outubro, milhares de pessoas vindas de outros países vivem momentos singulares ao transitarem por mais de 200 eventos realizados em cerca de 300 tendas, a maior delas armada na grande praça, onde se projetam filmes e se apresentam grupos de música e dança folclórica.

Caverna do Aladim

Essa não é a única feira anual do livro. O Festival da Primavera, organizado em maio pela Associação de Livreiros de Wigtown para os moradores da região, é mais modesto. No entanto, durante o ano inteiro, Wigtown atrai milhares de turistas, que se dirigem para lá em romaria para vender ou comprar livros, com visita obrigatória ao templo principal – a Book Shop conhecida pelos clientes como a “Caverna do Aladim” de propriedade do autor do Diário.

Sediada em prédio antigo, a Book Shop tem fachada de granito com duas colunas de livros empilhados em espiral antes revestidos de vidro e agora em cimento. Possui nove salas, corredores labirínticos, chaminés e um estoque de mais de 100.000 livros em dois quilômetros de estantes, além de um apartamento de quatro quartos na sobreloja e um jardim com casa de veraneio ao fundo – a “Toca da Raposa”, usada para eventos como curso de redação criativa e aulas de arte e pintura para senhoras.

Wigtown respira livros por todas as letras. O seu pulmão oxigenador de palavras é a Book Shop que, no festival, cedeu o espaço para o show musical da Bookshop Band, banda sempre em turnê por livrarias da Escócia, cujas canções inspiradas pelos livros lidos por seus músicos funcionam como uma espécie de resenha cantada. Em Wigtown, tudo gira em torno do livro. Até o pub da moda é um “pé sujo” com o nome The Ploughman, título do livro do escritor escocês John McNeillie.

Nos últimos festivais, um show de marionetes encenado no “espaço criativo” foi seguido de um espetáculo de teatro com um casal de atores, que representou cenas de filmes famosos ambientadas em livrarias, entre outros À beira do abismo com Humphrey Bogart e Lauren Bacall e Um lugar chamado Notting Hill com Júlia Roberts e o dono da loja em Londres protagonizado por Hugh Grant.

Alegria dos leitores

É notável como uma cidadezinha, com metade da população de um único edifício de Copacabana, o de número 200 da rua Barata Ribeiro, sedia uma livraria dessa dimensão, atendendo pedidos on line de todos os continentes. Além disso, uma estratégia bem elaborada preserva a clientela com a fórmula que lembra a torcida do Flamengo: Once a Client, Always Client, que é, aliás, o título de um livro.

Fazem parte dessa estratégia um desdobramento da livraria – o Random Book Club, através do qual, por 59 libras ao ano, os assinantes recebem um livro-surpresa por mês. Outra seção é o programa Alegria dos Leitores, que filma os clientes dentro da loja, lendo trecho de livro de sua escolha. Os vídeos são postados no Facebook com tal sucesso que um blog na China pediu para compartilhá-los no equivalente chinês do Youtube.

Mas o essencial é mesmo a renovação permanente do estoque, que acontece diariamente quando pessoas procuram a loja para vender livros usados ou quando Shaun busca coleções nas casas de donos de bibliotecas particulares que morreram. Familiares quase sempre desconhecidos telefonam para negociar os livros herdados:

– O número de funerais a que compareço aumenta cada ano. A experiência de recolher bens de uma pessoa falecida é familiar para os comerciantes de livros usados e vai deixando você insensível aos poucos. Desmantelar aquela coleção de livros parece ser o ato final de destruição de suas memórias.

Shaun calcula que carrega, ao todo, 15 toneladas anuais de caixas de livros para dentro e para fora de seu carro, em andanças que o obrigaram a tratar de sua coluna vertebral.

Um pum letrado

Uma dessas andanças decorreu do chamado da viúva de um pastor aposentado da Igreja da Escócia, que queria vender a biblioteca do marido recém falecido. Shaun foi até sua casa, ela o levou à sala de jantar, onde os livros estavam colocados com a lombada para cima. Enquanto examinava a coleção, explodiu uma sequência de som de metralhadora em carretilha seguido de um longo assobio:

– Ela soltou um pum que durou uma eternidade, parecido com o apito extremamente sibilante de um trem. Aí se escafedeu para o jardim. Seu filho que segundos depois entrou na sala logo detectou a fedentina e me lançou um duro olhar acusador. Fui embora com quatro caixas de livros de teologia e a reputação de peidão.

A organização do Diário, já traduzido em 30 línguas, é original. Na abertura de cada mês traz uma frase de George Orwell, autor de Bookshop Memories, que comenta sua experiência com venda de livros. E no final de cada dia informa quantos clientes foram ao sebo, quantos pedidos on line, o número de livros encontrados e o faturamento diário, revelando ainda o tipo de livros adquiridos para o estoque.

– Muitos livreiros se especializaram em um tema. Eu não – escreve Shaun Bythell.

Efetivamente, as coleções compradas por ele versam sobre os mais diversos assuntos: ficção medieval e moderna, poesia, literatura universal, crítica literária, teologia, religião, ornitologia, ictiologia, piscicultura, botânica, montanhismo, exploração polar, história marítima, história universal e da Escócia, ciências jurídicas, ambientalismo, livros sobre golfe, aviação, antiquários, ferrovias, etc.

Livros eróticos

Os livros sobre trens e ferrovias são os mais vendidos, “comprados invariavelmente por homens com barba”. É diferente daquele que os moralistas chamariam de pornografia, que merecem uma reflexão do Diário, quando narra que uma mulher de 80 anos, toda serelepe, foi à loja para vender uma coleção erótica com fotos de jovens da década de 1960. Ao vê-lo folhear um dos livros para avaliar o preço, a senhora idosa disse:

– Duvido você adivinhar quem sou eu nessa foto.

Ele não informa se a identificou, mas comentou:

– É difícil adquirir o gênero erótico, porque muito pouco pode ser vendido na Amazon ou no eBay, já que esses livros ferem as sensibilidade pudibunda dos puritanos encarregados de ambas plataformas.

Uma das broncas do autor é justamente com a Amazon, a “ceifadeira das ceifadeiras” e com seu leitor de livros digitais, o kindle, contra o qual disparou um tiro, em nome de uma geração habituada com o suporte material do livro, que evoca todos os nossos sentidos. Fez um vídeo com o kindle estilhaçado, colocou a foto em uma moldura, que se tornou o objeto mais fotografado de sua loja, cujos visitantes reafirmam o prazer de ler um livro físico.

– Embora a Amazon pareça beneficiar os consumidores, as condições punitivas que ela impõe aos vendedores prejudicam não apenas as livrarias independentes, mas também as editoras, os autores e, em última análise, a criatividade – ele escreve, sem saber que no Brasil o governador Wilson Lima fez parte do Festival da Besteira que Assola o País com sua proposta de cobrar royalties da empresa que usa o nome do Estado que ele governa.

A braguilha aberta

Um capítulo à parte são os clientes. Tem de tudo: atrevimento, grosseria, ignorância, manias, bizarrice. Um deles entrou na loja vestido de guerreiro das Terras Altas: colete verde, meias tricotadas, gorro escocês de fuzileiro naval com penas esvoaçantes da exótica ave tetraz.

Shaun registra esses comportamentos dos clientes em postagens no Facebook “para transmitir todo o horror ou a deliciosa alegria de trabalhar em uma livraria, incluindo as perguntas estúpidas e os comentários rudes”. Na frente do balcão da loja, um cartaz traz uma frase atribuída a Einstein:

– “Duas coisas são infinitas, o universo e a estupidez humana, mas com relação ao universo, não tenho certeza absoluta”.

Outro cliente, já idoso, removeu a dentadura e a colocou sobre um livro.

– Sua braguilha está aberta – falou Shaun discretamente sem mencionar a dentadura.

– Pássaro morto não sai da gaiola – disse o cliente desdentado que se retirou mantendo o zíper aberto.

Clientes assíduos desfilam pelas páginas do diário, entre outros: Jock, conhecido por contar história compridas e improváveis; Sandy, “o pagão tatuado”; uma megalomaníaca que se acha escritora genial; um velho advogado “com a habitual circunferência abdominal de homens de meia-idade inativos” e Kelly Cheiroso, apaixonado pela funcionária Nicky, braço direito do autor, que vai trabalhar sempre vestida com roupa de esqui.

Shaun gosta de fazer gozação com sua equipe, especialmente com a eficiente Nicky, que professa a religião milenarista “Testemunhas de Jeová”, o que às vezes interfere no seu ofício, como quando ela classificou o livro “A origem das espécies” de Darwin como ficção, dificultando achá-lo na devida prateleira.

Captain, o gato

Não sei como Nicky classificaria o Diário, se como livro de memórias ou de ficção. Lá estão os afetos de Shaun: a escritora americana Jessica Fox, então sua namorada, aparece com o nome de Anna, em 2014, quando o Diário foi escrito e seu autor completava 44 anos, mas o gato preto, que morava com o casal, é identificado com o nome real de Captain, assim batizado em homenagem ao capitão cego do livro Under Milk Wood de Dylan Thomas.

– A fama do Captain se alastrou mais do que eu imaginava – conta o livreiro, mencionando “duas mocinhas ruivas muito bonitinhas e amáveis que vieram de manhã e perguntaram pelo gato. Elas seguem a loja no Facebook, onde Captain é uma das estrelas”.

Além de dono da livraria e renomado escritor, Shaun é um leitor qualificado. Suas reflexões sobre os livros que lê ao longo do ano evidenciam a complexidade da prática social da leitura e despertam em nós a fome de ler. Dei-me ao trabalho de fazer uma lista com 174 livros citados e, embora muitos não tenham sido comentados, ali reside um roteiro para futuras leituras.

No Brasil, a literatura escocesa é desconhecida. Li o Diário em dois dias, não digo “vorazmente” por considerar o advérbio inadequado, mas prazerosamente. Seu autor deu continuidade ao tema com mais três livros, que espero ler quando cheguem na Casa 11, o sebo e livraria na Rua das Laranjeiras, 371 – espaço de resistência política e cultural do Rio. Comprar na Amazon? Nem morta, filha. Ou como diriam os portugueses: “Nem f`l´cida, cachoupa”.

Se ganhar na megasena e a saúde permitir, quando setembro vier irei ao Festival de Wigtown para comprovar in loco se a livraria é mesmo um paraíso como imagina Borges. Ou será o contrário? Borges está no paraíso dos escritores e leitores, como ele gosta: lendo.

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