Jovem, eu sonhava ter uma grande biblioteca. E fui assim
pela vida, comprando os livros que podia. Tive de desenvolver métodos para
controlar minha voracidade, porque o dinheiro e o tempo eram poucos. Entrava na
livraria, separava todos os livros que desejava comprar e, ao me aproximar do
caixa, colocava-os sobre o balcão e me perguntava diante de cada um: “ Tenho
necessidade imediata desse livro? Tenho outros, em casa, ainda não lidos? Posso
esperar?” E assim ia pegando cada um deles e os devolvendo às prateleiras. A
despeito desse método de controle cheguei a ter uma biblioteca significativa,
mais do que suficiente para as minhas necessidades.
Notei, à medida em que envelhecia, uma mudança nas minhas
preferências: passei a ter mais prazer na seção dos livros de arte nas
livrarias. Os livros de ciência a gente lê uma vez, fica sabendo e não tem
necessidade de ler de novo. Com os livros de arte acontece diferente. Cada vez
que os abrimos é um encantamento novo! Creio que meu amor pelos livros de arte
têm a ver com experiências infantis.
Talvez que os psicanalistas interpretem esse amor como uma
manifestação neurótica de regressão. Não me incomodo. Pois, em oposição à
psicanálise que considera a infância como um período de imaturidade que deve
ser ultrapassado para que nos tornemos adultos, eu, inspirado por teólogos e
poetas, considero a maturidade como uma doença a ser curada. Bem reza a Adélia
Prado: “ Meu Deus, me dá cinco anos, me cura de ser grande…” E não pensem que
isso é maluquice de poeta. Peter Berger, um sociólogo inteligente e com senso
de humor, definiu “maturidade”, essa qualidade tão valorizada, como “ um estado
de mente que se acomodou, ajustou-se ao status quo e abandonou os sonhos
selvagens de aventura e realização…” Menino de cinco anos, eu passava horas
vendo um livro da minha mãe, cheio de figuras. Lembro-me: uma delas era um
prédio de dez andares com a seguinte explicação: “Nos Estados Unidos há casas
de dez andares.” E havia a figura de um caçador de jacarés, e de crianças
esquimós saudando a chegada do sol.
O fato é que comecei a mudar os meus gostos e chegou um
momento em que, olhando para aquelas estantes cheias de livros, eu me
perguntei: “Já sou velho. Terei tempo de ler todos esses livros? Eu quero ler
todos esses livros?” Não, nem tenho tempo e nem quero. Então, por que
guardá-los? Resolvi dar os livros que eu não amava. Compreendi, então, que não
se pode falar em amor pelos livros, em geral. Um homem que diz amar todas as
mulheres na verdade não ama nenhuma. Nunca se apaixonará. O mesmo vale para os
livros. Assim, fui aos meus livros com a pergunta: “Você me ama?” (Acha que
estou louco? É Roland Barthes que declara que o texto tem de dar provas de que
me deseja. Há muitos livros que dão provas de que me odeiam. Outros me ignoram
totalmente, nada querem de mim… ). “Vou querer ler você de novo?” Se as
respostas eram negativas o livro era separado para ser dado.
Essa coisa de “amor universal aos livros” fez-me lembrar um
texto de Nietzsche sobre o filósofo Tales de Mileto, em que ele recorda que “a
palavra grega que designa o “sábio” se prende, etimologicamente, a sapio, eu
saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o homem de gosto mais apurado; um
apurado degustar e distinguir, um significativo discernimento, constitui, pois,
(…) a arte peculiar do filósofo. (…) A ciência, sem essa seleção, sem esse
refinamento de gosto, precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega
avidez de querer conhecer a qualquer preço; enquanto o pensar filosófico está
sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas…” E depois, no Zaratustra,
ele comenta com ironia: “Mastigar e digerir tudo – essa é uma maneira suina.”
O fato é que muitos estudantes são obrigados a ler à maneira
suina, mastigando e engolindo o que não desejam. Depois, é claro, vomitam tudo…
Como eu já passei dessa fase, posso me entregar ao prazer de ler os livros à
maneira canina. Nenhum cachorro abocanha a comida. Primeiro ele cheira. Se o
nariz não disser “sim” ele não come. Faço o mesmo com os livros. Primeiro
cheiro. O que procuro? O cheiro do escritor. Se não tem cheiro humano, não
como. Nietzsche também cheirava primeiro. Dizia só amar os livros escritos com
sangue.
Ler é um ritual antropofágico. Sabia disso Murilo Mendes
quando escreveu: “No tempo em que eu não era antropófago, isto é, no tempo em
que eu não devorava livros – e os livros não são homens, não contém a
substância, o próprio sangue do homem?” A antropofagia não se fazia por razões
alimentares. Fazia-se por razões mágicas. Quem come a carne do sacrificado se
apropria das virtudes que moravam no seu corpo. Como na eucaristia cristã, que
é um ritual antropofágico: “Esse pão é a minha carne, esse vinho é o meu
sangue…” Cada livro é um sacramento. Cada leitura é um ritual mágico. Quem lê
um livro escrito com sangue corre o risco de ficar parecido com o escritor. Já
aconteceu comigo…
Rubem Alves
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