terça-feira, setembro 23

No trono do lavabo



“Viciei-me em ler de lápis na mão, para sublinhar, anotar. Transponho observações ou citações para um caderno escolar, que consulto em caso de necessidade. Dizem que tenho boa memória; de fato, não é má, apoiada em leituras reflexivas. Leio em pé, desde que escorado a um balcão. Leio deitado, sobre travesseiros. Poderia ler em qualquer enxerga, até mesmo na cadeia, se a cela fosse individual. Mas leio, de preferência, sentado a uma mesa ou carteira, com o livro pousado e espaço ao redor. Invejo quem consegue ler em ônibus ou avião. Eu não leio nem durmo, ficou com os sentidos alertas, sintonizado em ruídos suspeitos e engasgos nas turbinas.
(...)
Há um ótimo lugar para ler: os cochos de fermentar cacau. Entre num deles, nas entressafras, quando estão ainda mais desativados, escolha o canto, de preferência com a cabeça para o norte, e esqueça por algumas horas as mazelas do mundo. Nos cochos em desuso resta sempre um odor de cacau – perfume embriagador. Há quem embale a imaginação lendo em rede do Ceará ou sentado no trono do lavabo. Tive um amigo que leu assim todo o “Vinhas da ira”. O romance de Steinbeck interessou-o a ponto de acelerar-lhe o relógio intestinal.

"Se todo mundo lesse, não haveria tempo para o tédio"

Hélio Pólvora, "No trono do lavabo"




Hélio Pólvora

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