A primeira história fala de certo jovem autor que teve um de seus primeiros romances traduzido nos Estados Unidos. Por acaso, um amigo desse escritor viajou a Nova Iorque. Por acaso também, esbarrou com a tradução em uma livraria. Por curiosidade, pois já conhecia a versão original do livro, comprou um exemplar da tradução americana. E para se distrair durante o voo de volta ao Brasil, resolveu lê-la.
Desembarcou em São Paulo em choque. Vários trechos do romance foram cortados. Muitos outros substituídos, ou "adaptados". Era, mas não era o romance de seu amigo. Não pensou duas vezes: assim que chegou em casa, telefonou para o autor (ainda posso usar esse nome?) para anunciar sua descoberta. "Eu já sabia disso", o escritor lhe disse muito tranquilamente. "E na verdade não me importo. Aceitar essas mudanças é a única forma de ser traduzido hoje no estrangeiro".
A segunda história espelha e reforça a primeira. Fala agora de uma autora madura que, depois de muita espera, teve um de seus romances traduzidos na América. Quando recebeu a versão americana, logo constatou que o livro fora brutalmente cortado. Sua própria linguagem, em geral derramada e sinuosa, se transformara em uma linguagem seca e quase ríspida. Não era mais seu livro, mas ela resolveu adotá-lo como seu.
Parece que a autora gostou da amputação de que seu romance foi vítima. Tempos depois, não teve dúvidas: decidiu "retraduzir" o romance para o português tomando como base o "original" americano. Simplesmente adotou como sua a versão de seu tradutor. Agindo assim, aceitou-o - essa é a verdade - como coautor. Abdicou de sua singularidade em nome do sucesso.
Devo deixar claro: falo de dois autores de qualidade. Dois autores que continuo a respeitar. Mas por que então aceitar, em nome de uma carreira internacional, uma tão brutal mutilação? Como comemorar o êxito, ou amargar a derrota, de um texto que verdadeiramente não lhe pertence?
Conheço um jornalista - cujo nome omito também, agora por delicadeza - que defende uma tese que considero, no mínimo, assustadora. De acordo com ela, o editor ocuparia, hoje, o lugar do crítico literário. No lugar da crítica clássica, a posteriori, existiria hoje uma espécie policialesca de crítica preventiva. Uma crítica que teria como objetivo altruísta poupar o leitor do pior. Mas não será do melhor?
Todo o processo criativo se inverte - e, na verdade, se aniquila. Em vez de criticar um texto pessoal, a "crítica" se antecipa e, anulando esse caráter pessoal e singular, se coloca na posição de coautora. O escritor já não escreve para si mesmo, escreve agora para agradar o editor. O editor passa a ocupar, também, o lugar do leitor. Mais ainda: o escritor escreve agora para se submeter ao julgamento de seu editor.
Não se trata, contudo, de um julgamento de qualidade. Isso já não interessa mais. Não há, também, qualquer espécie aparente de punição. Ao contrário: a intervenção "criativa" do editor é vista como um prêmio. Quanto mais o editor interferir no texto, quanto menos o texto lhe pertencer, mais o escritor deverá se sentir feliz! Há em tudo isso, talvez, algum tipo de purgação. Sem dúvida, ainda que disfarçada pelo argumento do mérito, há uma forma de punição.
Esse estado de coisas só tende, enfim, a agravar uma espécie maléfica de censura interior. O escritor não escreve mais para chegar a si, mas às melhores prateleiras do mercado. Não escreve para revelar uma singularidade, ou um estilo, mas para atender a erráticas demandas de clareza e de eficácia. Torna-se, na verdade, um mero "tradutor" dos desejos comerciais. Um escrevente comercial? Se a tendência se agravar - e parece que isso pode mesmo acontecer -, logo chegará a hora em que ele não merecerá mais o nome de escritor.
Desembarcou em São Paulo em choque. Vários trechos do romance foram cortados. Muitos outros substituídos, ou "adaptados". Era, mas não era o romance de seu amigo. Não pensou duas vezes: assim que chegou em casa, telefonou para o autor (ainda posso usar esse nome?) para anunciar sua descoberta. "Eu já sabia disso", o escritor lhe disse muito tranquilamente. "E na verdade não me importo. Aceitar essas mudanças é a única forma de ser traduzido hoje no estrangeiro".
A segunda história espelha e reforça a primeira. Fala agora de uma autora madura que, depois de muita espera, teve um de seus romances traduzidos na América. Quando recebeu a versão americana, logo constatou que o livro fora brutalmente cortado. Sua própria linguagem, em geral derramada e sinuosa, se transformara em uma linguagem seca e quase ríspida. Não era mais seu livro, mas ela resolveu adotá-lo como seu.
Parece que a autora gostou da amputação de que seu romance foi vítima. Tempos depois, não teve dúvidas: decidiu "retraduzir" o romance para o português tomando como base o "original" americano. Simplesmente adotou como sua a versão de seu tradutor. Agindo assim, aceitou-o - essa é a verdade - como coautor. Abdicou de sua singularidade em nome do sucesso.
Devo deixar claro: falo de dois autores de qualidade. Dois autores que continuo a respeitar. Mas por que então aceitar, em nome de uma carreira internacional, uma tão brutal mutilação? Como comemorar o êxito, ou amargar a derrota, de um texto que verdadeiramente não lhe pertence?
Conheço um jornalista - cujo nome omito também, agora por delicadeza - que defende uma tese que considero, no mínimo, assustadora. De acordo com ela, o editor ocuparia, hoje, o lugar do crítico literário. No lugar da crítica clássica, a posteriori, existiria hoje uma espécie policialesca de crítica preventiva. Uma crítica que teria como objetivo altruísta poupar o leitor do pior. Mas não será do melhor?
Todo o processo criativo se inverte - e, na verdade, se aniquila. Em vez de criticar um texto pessoal, a "crítica" se antecipa e, anulando esse caráter pessoal e singular, se coloca na posição de coautora. O escritor já não escreve para si mesmo, escreve agora para agradar o editor. O editor passa a ocupar, também, o lugar do leitor. Mais ainda: o escritor escreve agora para se submeter ao julgamento de seu editor.
Não se trata, contudo, de um julgamento de qualidade. Isso já não interessa mais. Não há, também, qualquer espécie aparente de punição. Ao contrário: a intervenção "criativa" do editor é vista como um prêmio. Quanto mais o editor interferir no texto, quanto menos o texto lhe pertencer, mais o escritor deverá se sentir feliz! Há em tudo isso, talvez, algum tipo de purgação. Sem dúvida, ainda que disfarçada pelo argumento do mérito, há uma forma de punição.
Esse estado de coisas só tende, enfim, a agravar uma espécie maléfica de censura interior. O escritor não escreve mais para chegar a si, mas às melhores prateleiras do mercado. Não escreve para revelar uma singularidade, ou um estilo, mas para atender a erráticas demandas de clareza e de eficácia. Torna-se, na verdade, um mero "tradutor" dos desejos comerciais. Um escrevente comercial? Se a tendência se agravar - e parece que isso pode mesmo acontecer -, logo chegará a hora em que ele não merecerá mais o nome de escritor.
José Castello
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