Livros no cárcere
Antes de contar como passei a primeira noite de cárcere, perdi-me logo, como, em divagações, que o leitor, já afeito com o meu gênio, aceita com benevolência.
Às nove horas da noite, os guardas correram os ferrolhos, e rodaram a chave da pesada porta do meu cubículo, a qual rangia estrondosamente nos gonzos.
Estava sozinho. Sentei-me a esta mesma banca, e nesta mesma cadeira. Estavam aqui defronte de mim alguns livros. Recordo-me de Shakespeare, Plutarco, Sénancour, Bartolomeu dos Mártires, e uma Tentativa sobre a Arte de Ser Feliz por J. Droz. Folheei-os todos, e de todos me fugia o espírito para entrar no coração, e sair de lá em ânsias do inferno que lá ia.
À força de contenção de alma consegui ler e meditar algumas páginas da Arte de Ser Feliz. Em que local eu buscava a árvore dos bons frutos! É este um livro de filosofia racional que preparou o ânimo de seu autor para mais seguras e levantadas crenças na filosofia de Jesus Cristo.
Fez-me bem esta leitura. Principiei logo a pôr em português as vinte páginas que lera, com o intento de fazer publicar o livro inteiro em folhetins.
Fui às três horas da manhã procurar no sono a restauração das forças corporais, que as do espírito, até esta hora, nunca as senti indignas da ousadia com que ele se arremessou a perigosas batalhas com o mundo.
Camilo Castelo Branco, in Memórias do Cárcere
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