A lateral de uma capela no fundo de uma alameda, a capela de frente para quem vê, com sua boca escura salpicada de velas, o espetáculo vertical de cruzes e árvores, as sepulturas num panorama como de um povoado, ou, tomando toda atenção, um tumulozinho branco. No espírito daquela anedota que o avô gostava de contar, sobre a mulher verde de um quadro de Matisse, seus cemitérios não eram cemitérios, eram pinturas. Anedota completa porque nunca ninguém via esses quadros nas paredes, mais tabu que o nu de costas no quarto da avó, mais sombra que a sombra dos infantes defuntos da família. Uma cruz na parede é uma paz que pesa, uma porção delas, num cemitério, uma pintura chamando quem vê para cá do muro que separa os telhados das casas do telhado de uma capela.
Depois que meus avós morreram, os cemitérios apareceram nas paredes. Um cristo em primeiro plano, a capela ao fundo. Sepulturas num panorama como de um povoado. Um tumulozinho branco. Cruzes para todos os dias, no espírito do pulvis es de Vieira. Numa retrospectiva de uma década ao ar livre, cruzes entre as ruas e os casarios de São Paulo, cruzes entre os banhados multiverdes de São José dos Campos, foram mais de dez cemitérios ao longo dos anos de 1950.
Na década seguinte, viajando para a Europa com a família a bordo do navio cargueiro Loyd Brasil pelo prêmio de Viagem ao Exterior do Salão de Arte Moderna, o avô montou seu pequeno ateliê flutuante na cabine do armador. Já havia deixado a fase figurativa, mesmo assim, registrou a viagem de porto em porto em desenhos a nanquim e carvão. Quando o navio se aproximou do porto de Barcelona, ele fez seu último cemitério: uma cidade de cruzes entre o mar e o céu, sua Ciudad de los muertos. Isso foi no final do ano de 1965. Minha mãe tinha então dezesseis anos recém-feitos e cabelos soltos meio loiros de flor de camomila que emolduravam um rosto de diabólica beleza.
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