segunda-feira, agosto 31

Quem já não teve este sonho?

A era das carroças

Em muitas cidades a prefeitura comemora quando consegue recapear algumas ruas, entre tantas esburacadas ou já esfarelentas. “Já” esfarelentas, não: ainda e desde muito tempo esfarelando, com a vida útil do asfalto vencida, as pedras entupindo bueiros e causando enchentes, toda a rua “em processo de rápida deterioração”, como diria um técnico, sabendo que sua advertência não será como nunca foi levada a sério pelos governantes.

Afinal, dirão eles, o problema é herdado de governos anteriores, que não fizeram a devida manutenção, o asfalto envelhecendo mal sem cuidados nem consertos, além de mal feito pela corrupção ou pela incompetência sem fiscalização.

Enquanto isso, começamos a acordar que o Estado – das prefeituras à presidência da República – não é pai do povo, é seu filho e deve ser vigiado. Quem trabalha sustenta o Estado, recebendo serviços públicos de filho ingrato.

Recape, por exemplo, recupera mas não melhora rua, que apenas volta a ser a velha rua para trânsito sempre crescente, com transporte público sempre precário. Até que muitas ruas voltem a ser, como nos mapas antigos, apenas “vias carroçáveis”, onde só carroças conseguirão transitar.

Não, não as carroças do Collor, movidas a cavalos-vapor; mas carroças com cavalo e carroceiro, que a cidade foi enxotando para a periferia mas, enfim, voltarão vitoriosas. Passarão pelos buracos e destroços levando jardineiros, vendedores de víveres, disquentregas e até roça-táxis.

Caminharemos – ou trotaremos – para a Era da Carroça.

O prefeito será um carroceiro com mestrado em Oxfordê.

A toda poderosa ABC, Associação Brasileira dos Carroceiros, bancará candidato à presidência da República por uma coligação-carroção de muitos partidos.

Aquele Rolls-Royce da Presidência será trocado por uma carruagem de museu com cavalaria das Forças Armadas.

A AIC, Associação Internacional da Carroagem, arrebatará a diretoria da Fifa, da Onu e, de quebra, do FMI.

A indústria automobilística lançará carroçarros, carroças movidas a motor, nos bairros ricos ou rebeldes com asfalto, e movidas a cavalo nos bairros pobres ou resignados. Estacionamentos terão baias para cavalos, e o quadro de maior sucesso na tevê será A Carroça da Sorte, com um carroção distribuindo prêmios pelo país.

E as pessoas passarão a nascer aC ou dC, antes ou depois da Era das Carroças.

A Seleção ganhará a Copa, e o time desfilará no Carroção dos Bombeiros.

Isto, claro, se antes não acharem um jeito de recuperar não só algumas, mas todas nossas ruas
.

Assim começa o livro...

Ao Leitor

Aqui está um livro de boa-fé, Leitor. Ele te adverte, desde
o início, que não me propus outro fim além do doméstico
e privado. Nele não tive nenhuma consideração
por servir-te nem por minha glória: minhas forças não
são capazes de tal desígnio. Dediquei-o ao uso particular
de meus parentes e amigos, a fim de que, tendo-me
perdido (o que breve terão de fazer), possam aqui encontrar
alguns traços de minhas atitudes e humores, e
que por esse meio nutram, mais completo e mais vivo, o
conhecimento que têm de mim. Se fosse para buscar os
favores do mundo, teria me enfeitado de belezas emprestadas.
Quero que me vejam aqui em meu modo simples,
natural e corrente, sem pose nem artifício: pois é a mim
que retrato. Meus defeitos, minhas imperfeições e minha
forma natural de ser hão de se ler ao vivo, tanto quanto
a decência pública me permitiu. Pois se eu estivesse entre
essas nações que se diz ainda viverem sob a doce liberdade
das leis primitivas da natureza, asseguro-te que teria
com muito gosto me pintado por inteiro e totalmente
nu. Assim, Leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro:
não é razão para que empregues teu vagar em assunto
tão frívolo e vão. Portanto, adeus. 
De Montaigne, neste primeiro de março de mil quinhentos e oitenta.

Booktown

Dean Gorissen

Minha própria vida

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Um mês atrás, parecia que eu gozava de boa saúde, poderia se considerar até mesmo excelente. Aos 81 anos de idade, ainda nado 1.500 metros por dia. Mas minha boa fortuna já havia se esgotado – algumas semanas atrás fiquei ciente de que tenho múltiplas metástases no fígado. Nove anos atrás descobrimos que eu tinha um raro tumor no olho, um melanoma ocular. Ainda que a radiação e o uso de lasers para remover o tumor me tenha deixado cego daquele olho, apenas em casos muito raros tumores deste tipo fazem metástase. Ainda assim, estou entre os 2% que não têm sorte.

Sinto gratidão pelos nove anos de boa saúde e produtividade desde o primeiro diagnóstico, mas agora me deparo com a morte. O câncer ocupa um terço de meu fígado, e embora seu avanço possa ser desacelerado, não há como parar esse tipo particular de câncer.

É só minha a decisão de como viver os meses que me restam. Tenho que viver da forma mais rica, profunda e produtiva que conseguir. E nisso me encorajo com as palavras de um de meus filósofos favoritos, David Hume, que, ao descobrir aos 65 anos de idade que uma doença o levaria à morte, escreveu uma curta autobiografia num único dia de abril de 1776. A ela ele deu o título de “Minha vida.”

“Neste momento me deparo com uma dissolução muito rápida,” escreveu ele. “De minha condição, sofro muito pouco com dor, e o mais estranho é que, não obstante a grande derrocada de minha compleição, nunca cheguei a sofrer um momento sequer de esmorecimento do humor. Mantenho o mesmo ardor de sempre pelo estudo, e a mesma alegria na companhia dos outros.”

Tenho sorte de passar dos 80, e os 15 anos que superaram as seis décadas e cinco anos de Hume me foram igualmente plenos de trabalho e amor. Nesse período publiquei cinco livros e completei uma autobiografia (um bocado maior do que as poucas páginas de Hume) a ser publicada nessa primavera; tenho vários outros livros quase prontos.

Hume continuou, “Sou ... um homem de disposições brandas, em comando do meu próprio temperamento, de humor aberto, social e alegre, dado ao apego, mas pouco suscetível à inimizade, e de grande moderação em todas minhas paixões.”

Nisso não sou como Hume. Embora eu tenha vivido relacionamentos amorosos e amizades, e não tenha inimigos verdadeiros, não posso dizer (nem ninguém que me conhece diria) que sou um homem de disposição branda. Pelo contrário, sou um homem de disposição veemente, de entusiasmos violentos, e extremamente desprovido de moderação com relação a todas as minhas paixões.

Ainda assim, uma frase do ensaio de Hume me é marcante como especialmente verdadeira no meu caso: “É difícil”, escreveu ele, “alguém ter mais desapego pela vida do que neste momento.”Ao longo dos últimos dias, tenho sido capaz de ver minha vida como se de uma grande altitude, como uma espécie de paisagem distante, e com um sentido aprofundado da conexão entre todas as partes. E isso não significa que minha vida acabou.



Pelo contrário, me sinto intensamente vivo, e quero e espero que no tempo que me sobra que eu aprofunde minhas amizades, diga adeus para aqueles que amo, escreva mais, viaje se tiver a força, e alcance novos níveis de entendimento e discernimento.

Isso demandará audácia, clareza e conversas diretas; tentar acertar minhas contas com o mundo. Mas haverá tempo, também, para alguma diversão (e até mesmo para alguma bobeira, sem dúvida).

Repentinamente me sinto possuidor de um foco muito claro, e de perspectiva. Não há mais tempo para nada que não seja essencial. Preciso focar em mim mesmo, no meu trabalho e nos meus amigos. Não vou mais assistir o jornal na TV todas as noites. Não vou mais prestar atenção para política ou para argumentos sobre aquecimento global.

Não se trata de indiferença, mas de desapego – ainda me importo muito com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com o crescimento da desigualdade, mas estas coisas não estão mais na minha alçada; pertencem ao futuro. Regozijo-me ao encontrar jovens capazes – até mesmo aqueles que fizeram minhas biópsias e diagnosticaram minhas metástases. Sinto que o futuro está em boas mãos.

Cada vez estou mais consciente, nos últimos 10 anos mais ou menos, das mortes de meus contemporâneos. A minha geração está de saída, e senti cada morte como uma ruptura, como se parte de mim se rasgasse. Não haverá ninguém como nós quando nos formos, mas na verdade não há ninguém que seja como outro alguém, nunca houve. Quando as pessoas morrem, são insubstituíveis. Deixam buracos que não podem ser preenchidos, pois é o destino – o destino genético e neural – de cada ser humano ser um indivíduo único, encontrar seu próprio caminho, viver sua própria vida, e morrer sua própria morte.

Não posso fingir que não tenho medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Amei e fui amado; ofereci muito, e dei algo em troca; li, viajei, pensei e escrevi. Comuniquei-me com o mundo com a comunicação especial dos escritores e leitores.

Acima de tudo, tenho sido um ser senciente, um animal pensante, nesse belo planeta, e isso por si só foi um enorme privilégio, e uma aventura.
Oliver Sacks (1933-2015) , texto escrito para o The New York Times em fevereiro 

domingo, agosto 30

Trono de um rei

Un trono cómodo para una ávida lectora (ilustración de Peter H. Reynolds)
Peter H. Reynolds

Uma casa cheia de livros

Os livros, esses animais sem pernas, mas com olhar, observam-nos mansos desde as prateleiras. Nós esquecemo-nos deles, habituamo-nos ao seu silêncio, mas eles não se esquecem de nós, não fazem uma pausa mínima na sua vigia, sentinelas até daquilo que não se vê. Desde as estantes ou pousados sem ordem sobre a mesa, os livros conseguem distinguir o que somos sem qualquer expressão porque eles sabem, eles existem sobretudo nesse nível transparente, nessa dimensão sussurrada. Os livros sabem mais do que nós mas, sem defesa, estão à nossa mercê. Podemos atirá-los à parede, podemos atirá-los ao ar, folhas a restolhar, ar, ar, e vê-los cair, duros e sérios, no chão.

womenreading:

somehow—here:

©Mihay-Bodo

😍

trovato qui:http://entrelapisepinceis.blogspot.com.es/
Quando me pediram para entrar numa sala, entrei. Não contava surpreender-me. Estávamos numa biblioteca pública e eu era capaz de imaginar com antecedência o que me queriam mostrar. A senhora que caminhava dois passos à minha frente era dona de uma voz branda, feita de boa fazenda, e dizia que se tratava da oferta de um senhor que tinha morrido. O filho tinha cumprido a vontade do pai e tinha acordado as condições com a biblioteca: quase nenhumas. A sala não era uma sala, era uma sucessão de salas. Cada uma delas estava completamente ocupada por estantes cheias. Com a mesma voz de antes, a senhora explicava-me que os livros tinham vindo nas próprias estantes onde estavam. Uma empresa de mudanças tinha-se ocupado desse serviço durante dia e meio, sem parar, meia dúzia de homens.

Eu já vi muitos livros e não contava surpreender-me mas, depois, prestei mais atenção. Enquanto ouvia a descrição do cenário em que encontraram os livros - uma casa cheia de livros, todas as paredes cheias, do chão ao tecto, prateleiras com duas fileiras de livros, pilhas de livros - foquei o meu olhar nas lombadas, nos títulos. A forma como estavam ordenados, lembrou-me a caligrafia da minha avó, uma caligrafia septuagenária, agarrada a uma perfeição talvez desnecessária, a um esforço de manter a correcção mesmo depois de estar quase tudo perdido, como se essa correcção pudesse salvar. Tratava-se de uma organização que previa a dimensão estética - o tamanho das edições, as colecções, as cores das capas - mas, também, uma vertente literária - géneros, história da literatura - e alfabética - B depois do A. Por vincos ínfimos, dava para perceber que eram livros lidos. Mas tão bem tratados, tão minuciosamente acarinhados. Ao mesmo tempo, entre prateleiras, entre salas, fui percebendo quais eram os autores que, criteriosamente, não estavam representados e quais os que tinham toda a sua obra naquelas estantes; fui percebendo quais os períodos e os temas que interessavam à pessoa que juntou todos aqueles milhares de livros.

É uma vida, repetia a senhora, é uma vida inteira. E contou que aqueles livros estavam agora à espera de serem catalogados e, a pouco e pouco, arrumados junto dos outros. Foi nesse momento que consegui distinguir com clareza o quanto estavam assustados. Olhavam para todos os lados, não conheciam o futuro que os esperava. Afinal, o eterno podia mudar com tanta facilidade, bastava um sopro. Foi nesse momento que consegui distinguir as suas vozes fininhas, a cruzarem-se no ar daquelas salas, cheiro a livros e a medo. Vestidos com roupas novas, roupas nobres e tão despreparados para as exigências de uma realidade feita de mãos e transtornos, feita de pressa real.

Muito tempo depois de sair de lá, a quilómetros de distância, voltei a pensar naqueles livros. Aquela selecção privada iria diluir-se nas prateleiras da biblioteca. O fim de uma ilusão costuma causar-me melancolia. Foi o caso. Muito provavelmente, na memória daqueles livros, o tempo que passaram nessa casa antiga, protegida, iria diluir-se também. Daqui a anos, depois de mundo e cicatrizes, ao encontrarem-se por acaso poderão nem sequer reconhecer-se. Poderão ser como aquelas pessoas que se reencontram e que não sabem se devem cumprimentar-se ou não e que, ao não fazê-lo, é como se tivessem deixado de conhecer-se.

Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperança em todas as suas formas.
José Luís Peixoto

Do prazer, o nascimento

Mark Ulriksen
Talvez porque a leitura seja uma atividade íntima e solitária, o leitor sente, depois de fechar um livo de que gostou, a necessidade de contar a outro sua experiência. Desse generoso impulso nascem os ofícios de editor (quando se trata de uma vocação natural), do tradutor, do antologista, do resenhador
Alberto Manguel

A biblioteca

Francois Schuiten 

Record libera primeiro capítulo do novo romance de Harper Lee

O guardado "Vá, coloque um vigia", de Harper Lee, sai em outubro no Brasil, mas o Grupo Editorial Record acaba de disponibilizar na estreia do seu blog o primeiro capítulo do livro. A tradução é de Beatriz Horta, que também fez nova tradução de O sol é para todos, o primeiro romance de Lee publicado originalmente em 1962. No livro, Atticus Finch, o advogado que defende um negro acusado de estupro no primeiro livro, aparece com traços racistas. Narrado por Jean Louise Finch, a Scout, o livro mostra um Atticus mais complexo, sob o olhar não mais da criança da primeira obra, mas da filha que volta já adulta para o Sul, depois de uma temporada em Nova York. Nos Estados Unidos, o livro bateu recorde de vendas e causou frisson entre leitores e críticas.

sexta-feira, agosto 28

O livro te dá asas...

Nesse momento confuso, quando o mercado precisa se reinventar, nada mais importante do que ouvir os leitores reais
Socorro Acioli
ybb55:

Going Home by  tamaraR
tamaraR

'Livro(s) do Desassossego' como Pessoa sempre quis

A Global Editora está lançando este mês o livro de Fernando Pessoa respeitando a individualidade de cada um dos semi-heterônimos: Vicente Gudes, Barão de Teive e Bernardo Soares. Vale explicar que a expressão "semi-heterônimo" é do próprio Pessoa, que considerava como heterônimos apenas três: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Ainda assim, são vozes muito próprias, que partem de biografias inventadas como personagens de teatro. Não estarem misturados ou até preteridos como em publicações passadas é a grande novidade dessa edição, preparada por uma das mais respeitadas especialistas na obra de Fernando Pessoa, Teresa Rita Lopes. 
 
Assim como o autor foi vários, o livro também é. A primeira parte é O livro de Vicente Guedes. Os textos nessa época ainda são muito influenciados pela corrente literária simbolista. A segunda parte, O livro do Barão de Teive, já assume um tom mais seco, de um personagem que definiu por si o fim da própria vida. A terceira parte, O livro de Bernardo Soares, é notoriamente parte do que conhecemos como Modernismo. Todos têm introduções que iluminam suas leituras, escritas por Teresa Rita Lopes, em linguagem descomplicada, ainda que contendo profundo conhecimento de causa.
Ler essa obra é como espiar as décadas de dedicação aos textos, tanto da parte de Fernando Pessoa quanto dos pesquisadores de seu espólio. Teresa Rita Lopes conta que frequentemente a caligrafia do poeta é indecifrável. Somente a convivência com as leituras por anos e anos de seus poemas, muitos deles escritos à mão, ou mesmo datilografados e corrigidos à mão, é que torna possível a publicação.
Fernando Pessoa morreu cedo, em 1935, aos 47 anos. Astrólogo, ele teria previsto a data de sua morte. E organizou o que pôde, em maços de textos e indicações, o  Livro do Desassossego. Começou a escrevê-lo jovem, mas documentos demonstram que desde cedo já se tratava de um projeto. A organizadora desta novíssima edição de um clássico da Literatura mundial, Teresa Rita Lopes, implode um argumento comum sobre a obra, de que ela pode ser editada de forma aleatória: "Se Pessoa tivesse publicado o Livro do Desassossego tinha-o estruturado como o fez, o foi prevendo ao longo da vida". Como exemplo, ela ainda lembra que Mensagem, único livro de Pessoa publicado em vida, teve sua organização intensamente trabalhada pelo autor. 

Convite à leitura

Rincón de lectura (ilustración de Yelena Bryksenkova)
Yelena Bryksenkova

Publicado conto inacabado de Tolkien

JRR Tolkien
Um inédito conto inacabado do cultuado autor de "O Senhor dos Anéis" e "O Hobbit", JRR Tolkien, foi lançado na Grã-Bretanha nesta quinta-feira e revela que o escritor também se inspirou na Finlândia para criar o seu universo fantástico.

"The Story of Kullervo" ("A história de Kullervo") narra a trajetória sombria de um menino órfão que é escravizado e acaba se suicidando depois de descobrir que, sem querer, cometeu incesto nas florestas de Karelia, na Finlândia.

Tolkien descobriu a lenda de Kullervo ainda menino, quando frequentava uma escola em Birmingham, na região central da Inglaterra.

O próprio escritor ficou órfão depois de perder o pai ainda pequeno e a mãe aos 12 anos de idade.

Pouco antes de concluir a escola secundária, ele leu a obra mitológica finlandesa Kalevala, que entre outras tramas traz a de Kullervo.

"Ele foi muito influenciado por toda aquela mitologia", disse à BBC a acadêmica Verlyn Flieger, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, que editou o manuscrito de A História de Kullervo. "Em cartas, ele se mostrava entusiasmado com esta 'história muito boa'."

Ele começou a escrever a sua própria versão do mito finlandês ao entrar na universidade, em Oxford, no ano seguinte. Curiosamente, após trabalhar nela por alguns meses, a deixou de lado.O manuscrito de cerca de 26 páginas termina com uma frase inacabada.

"Ele tinha acabado de chegar ao clímax, à cena mais dramática, e ali parou. Não há sequer um ponto final ou qualquer tipo de continuação. Só as palavras 'a sua pressa era tão terrível'", conta Flieger. "Não sabemos por que ele não o concluiu."

Assim, inacabado, o manuscrito passou quase meio século praticamente esquecido em uma estante da biblioteca Bodleian, de Oxford.

Leia mais

quinta-feira, agosto 27

Entrando no paraíso

Aqui e além do horizonte

A composição poética tanka, que é constituída por 31 sílabas distribuídas em cinco versos (5-7-5-7-7), surgiu no Japão, por volta do ano 710. Sua origem está no waka, forma que “cantava” trechos históricos e legendários da vida do povo nipônico, cujo desenvolvimento se deu pela diferenciação de temas, que deixaram de ser direcionados somente à corte.

O poeta que compõe o tanka deve atentar para a instantaneidade, como se estivesse com uma câmara fotográfica pronta para o disparo, pois a construção dele parte da visualização de paisagens.

Raimundo Gadelha, com sua vivência e sentimentos ocidentais, faz seus tankas nos contagiarem, cercados que estão de fotografias muito próximas de nossa cotidiana realidade.

Com o livro "Um estreito chamado horizonte" (1991, Escrituras), Gadelha foi o primeiro brasileiro a escrever tankas; além de ser o responsável por influenciar a produção desta arte em seu país. Agora ele nos brinda com este "Aqui e além do horizonte" ( Escrituras).

Poeta sensível, visual e sinestésico, ele capta os elementos essenciais para seus tankas, ou seja, segue os padrões tradicionais, mantendo a métrica em 31 sílabas nos cinco versos. Adota também a tematização, voltando-se para a natureza − mar, chuva, montanha − de forma precisa, na essência, e relaciona, subjetivamente, as imagens a acontecimentos cotidianos, como alegria, tristeza, solidão, amor, saudade, nesse processo, infundindo o flash, um fiat lux epifânico que desvela a unicidade contida em sua visão poética do real.

Alguns de seus tankas são suaves como a leveza do vento; outros, duros como as rochas à beira do mar. O leitor ora se delicia com a delicadeza dos versos, ora vivencia expressões ásperas, mas carregadas de emoção, já que a poesia de Raimundo Gadelha é marcada por um fervor que, ao mesmo tempo, expõe a face terrífica do real. Seu constructo poético é feito de belas paisagens, numa combinação da ferocidade da natureza com a do homem, na qual o tempo instala a vulnerabilidade da vida. É a poética do silêncio, do dia, da noite, do sol, das cores, do amor, das lágrimas, das lembranças!

Biblioteca, café e silêncio

lavacheestdanslepre:

Librarian, coffee and silence, by Louis du Mont.
Louis du Mont

Nunca conheceremos Juan Rulfo, mas continuaremos tentando

Em 1974, em uma conferência em Caracas diante de um auditório cheio de estudantes, Juan Rulfo disse: “Retirei várias páginas de Pedro Páramo, por volta de 100 páginas, mas depois nem eu mesmo o entendi”. Em 2015 completam-se seis décadas da publicação de sua principal obra e o enigma sobre a brincadeira do gênio mexicano, falecido em 1986, continua vigente. Em Pedro Páramo, 60 anos, editado no México pela RM e pela Fundação Juan Rulfo, 18 acadêmicos ensaiam novas perspectivas de análise sobre um livro tão sucinto quanto inesgotável.

A complexidade de Rulfo foi ligada à sua infância (órfão aos 10, enviado por seus avós a um internato) ou diretamente “a um dom”, “a um puro milagre”. Mas ele disse, segundo citação de um dos estudiosos, que o decisivo em sua formação foi ter acesso à biblioteca do padre de seu povoado, Ireneo Monroy, que levava livros das casas com a desculpa de verificar se eram permitidos, “mas o que fazia na realidade era ficar com eles”. “Os romances de Alexandre Dumas, os de Victor Hugo, Dick Turpin, Buffalo Bill, Touro Sentado”.

A erudição é uma das explicações da profundidade de Rulfo. Nos anos 40, estudou tanto o escritor Rainer Maria Rilke que traduziu de próprio punho parte de suas Elegias de Duino. No livro faz uma relação especial com Histórias de amor e de morte do corneteiro Christopher Rilke, cujo “Cavalgar, cavalgar, cavalgar. Durante o dia, durante a noite, durante o dia”, lembra o trecho em Pedro Páramo “Os canos borbotavam, faziam espuma, cansados de trabalhar durante o dia, durante a noite, durante o dia”.

Por trás de seu romance também existe muito conhecimento de geografia e história do México. “Era apaixonado pela toponímia antiga”, escreve Víctor Jiménez, diretor da Fundação.

Um ensaio relaciona Pedro Páramo com a Teoria Estética de Theodor W. Adorno, outro com o poeta romântico Jean Paul Richter. Outro detalha que encontrou no livro “145 frases lapidares” e as divide em “máximas, vaticínios, opiniões e sentenças”. Uma pesquisadora da Universidade de Tóquio estabelece uma conexão com o teatro japonês noh. Um acadêmico de Utah conta a história de John Gavin, um galã de Hollywood que interpretou o caudilho Pedro Páramo na primeira adaptação cinematográfica do livro, fracassou e anos depois foi nomeado embaixador no México por Ronald Reagan.


Pedro Páramo é um relato rural no qual os mortos falam. Um ensaísta menciona o “aparente paradoxo de seu realismo e irrealismo ao mesmo tempo”. Outro, que o livro não pode ser lido “como história de fantasmas ou, de forma bem mais neutra, sequer como relato fantástico”. A breve obra, 100 ou 150 páginas segundo a edição, é um poço conceitual e uma mina aberta de beleza. Em um dos textos, o prosador Rulfo é definido como “o mais importante poeta mexicano do século XX”, entre outras coisas pela materialidade sonora de sua escrita: “A cama era de bambu coberta com sacos que fediam a urina, como se nunca tivessem sido colocados ao sol”. Uma acadêmica enfatiza o uso do “como se”. “Como se estivesse abandonado”. “Como se não existisse”. “Como se não tivesse sangue”. “Como se escutasse um rumor ao longe”. “Como se estivesse vendo cabras saltarem”.

Em outro texto é mencionada a sutil violência verbal da obra. Como esse diálogo entre Juan Preciado e o tropeiro Abundio Martínez:

“O caso é que nossas mães nos deram à luz em uma esteira, mesmo sendo filhos de Pedro Páramo. E o mais engraçado é que ele nos levou para sermos batizados. Com o senhor deve ter acontecido a mesma coisa, não?

– Não me lembro.

– Vá pra casa do caralho!

– O que você disse?

– Que já estamos chegando, senhor".

Outro aspecto chamativo da obra é a ausência de personagens indígenas. Só aparecem uma vez, quando vão a Comala para vender suas ervas. “Os índios chegam debaixo de chuva e vão embora debaixo de chuva”, diz o ensaísta que aborda o tema. Rulfo só escreveu três livros em toda sua carreira, nos anos 50, e o resto de sua vida foi dedicado ao Instituto Nacional Indigenista, onde se encarregou de editar uma das coleções mais importantes de antropologia contemporânea e antiga do México, apesar de nunca ter escrito sobre os índios. “Sua mentalidade é muito difícil de penetrar”, disse. Rulfo não foi capaz de conhecer os índios. Os estudiosos também não chegaram a conhecer Rulfo, mas continuarão tentando.
 Pablo de Llano 

É preciso escolher

lodille:

  Jan Van Der Veken
Jan Van Der Veken

Para ler coisa boa, é uma condição a de não ler coisa ruim: pois a vida é breve, nosso tempo e nossas forças limitadas
Arthur Schopenhauer

Apenas 15% das escolas públicas do Piauí têm bibliotecas

Escola de taipa na zona rural de Miguel Alves, no Norte do Piauí
A educação pública oferecida aos piauienses ainda patina e enfrenta grandes desafios. Foi o que apontaram os dados do Censo Escolar 2014 compilados a pedido do G1 pela Fundação Lemann e pela Meritt, responsáveis pelo portal QEdu. De acordo com os números, das 5.092 escolas públicas existentes no Piauí somente 777 contam com biblioteca. O número corresponde a apenas 15% do total.

A mesma pesquisa mostra que os colégios particulares investem mais no acesso à leitura com 85% dos estabelecimentos equipados com bibliotecas.

Os resultados revelam ainda outros dados preocupantes sobre as escolas públicas espalhadas nos 224 municípios do Piauí. De todas as instituições, somente 14% possuem dependências acessíveis a portadores de deficiência. Em algumas cidades do interior o número é ainda mais gritante. Fartura do Piauí, a 600 km de Teresina, não há nenhuma escola que ofereça condições de acessibilidade.

O levantamento engloba todas as escolas que ofertam os ensinos infantil regular, fundamental regular, médio regular, educação especial substitutiva e Educação de Jovens e Adultos (EJA). O Censo Escolar é realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Os dados mostraram ainda que apenas 11% das escolas públicas do Piauí possuem sala de leitura e somente 31% tem laboratório de informática para uso dos estudantes. O número mais modesto é o de laboratórios de ciências. Segundo o Censo, são 3% com esse tipo de espaço no estado, correspondente a um total de 147 unidades.

(Fonte: G1)

quarta-feira, agosto 26

A cada um a sua leitura

Se todas as suas reações a um livro já foram reproduzidas e ampliadas por um crítico profissional, qual é o sentido de você ler o livro? O sentido é que se trata da sua leitura. Da mesma forma, por que viver a sua vida? Porque é a sua
Julian Barnes 

Leitura a beira-mar

La lectura en verano… momentos de descanso a la orilla del mar (ilustración de Carolina Buzio)
Carolina Buzio

Precisamos falar de preço (de livro)

Nos últimos cinco anos, tudo no Brasil ficou mais caro. O preço do livro, não. Ao contrário: todos os custos aumentando, os insumos inflacionados e, no entanto, as editoras ainda baixando os preços. Nem me aprofundarei na questão conceitual acerca de valor. O editor também é um educador. Tem, pois, a obrigação de tornar pública a complexa cadeia produtiva que resulta no livro. Diversamente do que manifestam livros a R$ 20 ou mesmo menos, o nosso produto não é fruto de milagre materializado nas livrarias.

Paga-se R$ 60, R$ 70 por muita porcaria neste país, e nós, entretanto, com medo de cobrar R$ 40, R$ 50 por algo de caráter permanente. Por quê? Não tenho a resposta, mas seu esboço passará pela constatação de que ou se compreende mal o ambiente editorial brasileiro ou pouco se preocupa com sua saúde. Que se derrube o preço de um ou outro livro, isso é estratégia comercial legítima. Mas que a “baratização” seja política indiscriminada, independentemente do caráter da obra editada, isso significa investir contra o processo editorial que deságua em produtos cada vez melhores.

Faz pouco publicamos, de Antony Beevor, “A Segunda Guerra Mundial”, um volume de 951 páginas, com encarte de fotos, editado ao longo de pelo menos dois anos, com tradução de excelência, revisões técnicas detalhadas, inúmeros tratamentos de texto — um livro pelo qual cobramos justíssimos R$ 98. Mais do que abrigar esse encadeamento de valor objetivo, o preço do livro deve representar a empreitada ali concretizada. O indivíduo que consome livros precisa ser informado — e preço informa — do conjunto valioso de ofícios que se consolida naquele produto. Porque esse mesmo sujeito sairá da livraria para comprar — por R$ 100, sem reclamar, consciente de que paga o quanto leva — um bom vinho francês. Há toda uma tradição a fundamentar essa percepção. Precisamos criar a nossa.

Precisamos também pensar no livreiro. A cada ano, afinal, sobem-lhe o aluguel, os salários, a conta de luz. Para que seu negócio sobreviva, não há mágica: ou o preço do livro é corrigido ou ele terá de aumentar o número de exemplares vendidos. Como a base consumidora não cresce, as livrarias fecham. Quantas outras terão de quebrar até que se considere um equilíbrio entre preço de venda e custo da operação? Preço fixo não é a solução. Preço é instrumento do livre mercado.

Sou a favor de que livrarias deem desconto. E quero que essa cultura competitiva se desenvolva sem artificialismo, tendo por origem uma base real: um preço de capa consistente com todo o valor agregado na cadeia de que o livro é produto final.

Há nisso tudo — na resistência a que se aumente o preço do livro — um engano sobre o que seja uma editora, compreendida como a exploradora, como aquela que espolia autores, livreiros etc, quando, na verdade, e cada vez mais, é a única a correr riscos em todo o processo. E isso tendo margens de lucro progressivamente menores, para o que muito contribui essa deturpação que impõe, ainda pior que o congelamento, o rebaixamento de preços. Não é aceitável que armemos a forca contra nossos próprios pescoços.

Carlos Andreazza, editor-executivo da Record

terça-feira, agosto 25

mainlyillustrations:

Joost Swarte
Joost Swarte

É bem melhor

Antonio Capel
Antonio Capel
Os romances podem fazer qualquer coisa nos horrores obscuros da consciência. Filmes fazem close-ups, entradas de carros, lugares, caçadas e explosões
E. L. Doctorow

Esperando leitor

Nas praças



Nas praças vindouras — talvez as mesmas que as nossas —
Que elixires serão apregoados?
Com rótulos diferentes, os mesmos do Egito dos Faraós;
Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos.

E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte,
As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,
As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém —
Um dia talvez, em fluido abstrato, e substância implausível,
Formem um Deus, e ocupem o mundo.
Mas a mim, hoje, a mim
Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,
Nos destinos que não desvendo,
Na minha própria metafisica, que tenho porque penso e sinto.

Não há sossego,
E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente!

Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito.
Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.

O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,
Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.

E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?
Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma,
Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado,
E o universo é absolutamente oco em torno de mim.

O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser,
E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma.
Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho,
E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação;
Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu,
Na minha alma vazia estou,
E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre.
Fúria fria do destino,
Interseção de tudo,
Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos,
Consequência de ter corpo e alma,
E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro.

Fernando Pessoa

Paraíso infantil para adultos voltarem a ser crianças

Biblioteca Internacional de Literatura Infantil no Japão:

A realidade de Bellow

Saul Bellow por Ramon Muniz
Saul Bellow por Ramon Muniz
Um homem aproximou-se do vendedor, entregou-lhe dois livros e também algumas cédulas. Sem que o livreiro perguntasse, ele respondeu: “Vivo recomprando, porque, sempre que escritores iniciantes me pedem dicas, eu empresto esses romances. Nada que eu possa ensinar vale mais do que umas duas horas diárias dedicadas a ler Saul Bellow”.

Aquele senhor falou alto, queria que eu ouvisse. Decerto, não desperdiçava chance de predicar. Eu jamais soube quem era, onde lecionava ou se possuía obra publicada, mas foi por causa dele que li e estudei Bellow. Neste centenário do autor de Herzog e O legado de Humboldt, eis que tenho oportunidade repassar a crença: nos romances de Saul Bellow, o aprendizado que vale por dezenas de oficinas e manuais!

Suas criações também nos levam à necessária e negligenciada indagação: “os ficcionistas contemporâneos têm feito da literatura pelo menos metade do que ela é capaz?”. E não se trata de pergunta retórica, que sugere resposta negativa, mas sim de manter saudável questionamento. O próprio trabalho de Bellow reflete um espírito inquieto, que jamais se rendeu à tentação das fórmulas exitosas, de deitar nas soluções que ele conquistou a cada título publicado.

Não que sua produção seja tão diversa que impossibilite identificar linhas de força. Apesar de pouco estudado no Brasil, em outros países ele possui respeitável fortuna crítica, com dezenas de livros e centenas de resenhas, ensaios e pesquisas acadêmicas. Seus comentadores costumam frequentar os mesmos tópicos: as fissuras do humanismo e das teorias do século 20, a condição do pós-guerra, a questão dos imigrantes, religião, alteridade, tragicomicidade, ambiguidades, contradições, etc. A afinação e a vibração dessas cordas, no entanto, variam enormemente — algo que se coloca à mostra de modo decisivo na construção das personagens.

É provável que você já tenha se encontrado algumas vezes com o ensaio Relendo Saul Bellow, do também renomado escritor Philip Roth. Entre outros tantos meios, esse texto já foi veiculado naFolha de S. Paulo, no livro Entre nós: um escritor e seus colegas falam de trabalho, e como introdução à recente edição brasileira de Herzog. A popularidade da exegese se repete em outros idiomas, o que se justifica pelo acerto do método: costurar as análises a partir das tão aparentadas e tão diversas personagens de Bellow.

Desde logo, Roth cita a grandiosidade de As aventuras de Augie March, com sua representação de um mundo ainda capaz de animar, deslumbrar, fascinar; com seu protagonista disposto a viver esse mundo para além das limitações que lhe suspeitam, anunciam ou entregam como herança ancestral. Augie se declara americano nascido em Chicago, e não reconhece qualquer autoridade que constranja sua demanda por cidadania e realização — nem mesmo a da própria vida, quando esta transcorre aquém das pretensões.

A ousadia do personagem filho de imigrantes não é outra coisa senão a expressão do próprio sonho americano. Como ressalta o prefácio de Christopher Hitchens: “As duas palavras-chave que resumem as ambições do romance de Bellow são democrático e cosmopolita. Não inteiramente por coincidência, essas são também as duas grandes esperanças da América”.

Dois trechos do romance expressam a condição social de seu autor, marcado pelo pertencimento a uma família de imigrantes na América da primeira metade do século 20, e movido também pela superação de tais grilhões! Em algum momento do livro, o narrador constata que “Todas as influências estavam enfileiradas, esperando por mim. Eu nasci e lá estavam elas para me formar, e é por isso que eu falo mais delas do que de mim”. Na abertura da obra, contudo, Augie anunciara sua postura altiva: “faço as coisas do jeito que aprendi sozinho a fazer, estilo livre”.

Como quase todos os seus demais livros, As aventuras de Augie March tem muito de autobiográfico — o que, no caso de Bellow, não assoma como fragilidade, pois talvez sua maior personagem não seja senão o próprio Saul Bellow.

segunda-feira, agosto 24

Un verano entre libros y lecturas (ilustración de Joost Swarte)
 Joost Swarte

São Francisco de Canindé

Ele estava lá no céu,
junto de Nosso Senhor…
Mas um dia lembrou-se de vir cá
pra dentro daquela igreja,
pra cima daquele altar…

Ficou tão vistoso e rico
todo cercado de luz,
todo cercado de flor!
Amostrando as mãos feridas,
as rosas presas num laço,
e o pé chagado de roxo
que é mode a gente beijar…

E milagre?
Hoje só sofre quem quer…
—Tem bouba no pé?
E esipra?
Um catarrão incansado
lhe cerra a arca do peito?
— Por que é que não promete
a são Francisco das Chagas,
tão bom e tão milagroso,
uma perna de cera?
ou o dinheiro do legume
que você apurou depois das águas?

Veja o quarto dos milagres,
dava para um rio de cera.
E na galeria de uma banda,
aquele cofre:
só de prata de paroara
chegou pra o santo enricar!…

“Meu irmão me dê uma esmola
pela luz que Deus lhe deu!
Que já tive pra morrer
são Francisco me valeu
porque eu prometi a ele
tudo o que tinha de meu…
E dei o que prometi,
ao depois vim esmolar.”

“Ah, meu irmão me socorra!
E queira Deus lhe livrar
de um dia lhe acontecer
fazer promessa e pagar…”

Nunca mais
que são Francisco quer voltar pró céu!…
Acha tão bom lá na igreja
no altar enfeitado!
Ou pelo tempo na festa
dar um passeio no andor!…
Tão bom no Canindé!

Rachel de Queiroz

Ler é necessidade

Biblioteca o libros autoleyéndose? (ilustración de Aurélio Rauber)

A leitura é uma necessidade biológica da espécie. Nenhum ecrã e nenhuma tecnologia conseguirão suprimir a necessidade de leitura tradicional
Umberto Eco

Recanto de leitura

A primeira vez

Lectora viajera (ilustración de Matt Taylor)
 Matt Taylor
A primeira vez que eu vi o mar, não o vi de cara. Mal pisei na areia, corri feito um louco e me atirei na água para, depois de um caldo, beber a espuma da onda recém-quebrada. Eu esperava uma água salgada, mas não tão salgada quanto aquela que provava a contragosto.

Houve quem caçoasse do mineiro que tossia engasgado depois de levar um caixote. Saí humilhado ali da beirada, me sentei na areia e, aí sim, mirei o mar. Lancei sobre ele já então um olhar perspicaz, de quem o sabia cruel.
***
Numa casa em construção, talvez no espaço que viria a ser a sala, vi pela primeira vez uma mulher nua. Noutro futuro cômodo, dois amigos esperavam a vez de vê-la — o combinado, seguido à risca, era apenas vê-la. Ansioso e sentindo-me vigiado, eu não poderia estar inteiro na cena, e não estava. Vi os seios de maneira muito clara, rijos ali onde de fato os seios crescem e ficam, mas todo o resto do corpo — não só o que eu buscava, desconhecia e até aquele momento estivera sempre encoberto, como também a cabeça, os braços, enfim, as partes públicas — não estava no lugar. A primeira vez que vi uma mulher nua, ela parecia um desenho de Picasso.

***

A mãe da dona Antonieta, minha professora do terceiro ano do ensino fundamental, foi a primeira pessoa que vi morta. A diretora da escola nos levou ao velório e nós nos comportamos muito bem: não demonstramos medo, não evitamos estender a mão para a professora, alguns até mesmo deram-lhe um abraço. Em fila passamos ao lado do corpo, baixamos a cabeça com resignação, fizemos o sinal da cruz e saímos para a varanda. Não sei se tive dimensão do que aconteceria a partir dali, mas creio que, ao olhar aquela velha tão velha, decidi que não tocaria jamais num morto. E assim tem sido.

***
A primeira vez que fui ao Maracanã, em 1971, foi a última que Pelé jogou pela seleção brasileira no Rio de Janeiro: era um amistoso contra a Iugoslávia, país que não existe mais. Eu não tinha dez anos, e o estádio lotado com mais de cento e trinta mil pessoas, um número inconcebível para quem, feito eu, vinha de uma cidade com menos de sessenta mil habitantes, chamou mais minha atenção do que o jogo em si, ainda que fosse também a primeira e a última vez que via Pelé. Os quatro gols do jogo, que terminou em dois a dois, só fui ver à noite, pela televisão.
***
O primeiro poema que fiz era para uma canção, que eu e o Carlinhos, do alto de nossos oito anos, fizemos à beira do tanque da casa de meus pais. A letra dizia: “Vem, meu pedaço de papel, um papel não muito comum, mas uma folha de amor, uma folha de amizade”. Dois pirralhos, nos anos de 1960, deveriam falar de mocinho e bandido ou de corrida de carrinho de rolimã, nada a ver com folha de amor ou de amizade, a meus olhos de hoje, pouco condizente com o mundo infantil, coisa de gente mais velha. Não sei explicar o meu espanto, contudo, fosse eu meu pai ou minha mãe, temeria pelo futuro de seu filho, que dava mostras de que envelhecia bem antes da hora.

***
Rola por aí que a velhice chega quando você se dá conta de que não faz, há algum tempo, algo pela primeira vez. Mentira. Velhos fazem várias coisas pela primeira vez, muitas, é verdade, como um sinal da decadência física (é a primeira vez que não se enxerga nem com óculos, é a primeira vez que não se ouve bem, é a primeira vez… a lista é grande) e outras, ainda que não sejam novidade na vida de ninguém, como a oportunidade de fazer pela primeira vez sem tanta ansiedade, sem tanta ignorância.

Além do mais, no meu caso pelo menos, será na velhice que vou morrer pela primeira vez
.

domingo, agosto 23

Mural

literatureismyutopia:

Bookstore - Mural by sh1ne on Flickr.

Assim começa o livro...

The pronoun I is better because more direct
Extraído de: The secretaries guide, artigo "The Writer", The New Webster Encyclopedic Dictionary of the English Language - MCMLII
Dash-8300. Deus sabe em quantos tipos diferentes de avião já viajei na vida, mas entre eles nunca constou um Dash. Trata-se de um modelo pequeno e compacto, mas que parece maior pela escassez de passageiros. O assento ao meu lado está desocupado. Pelo visto não há muita clientela para vôos de Friedrichshafen a Berlim Tempelhof. Caminhando em um grupo pequeno e esgarrado, dirigimo-nos do minúsculo terminal ao modesto avião: isso ainda é possível aqui. Agora esperamos. Há sol, venta bastante. O piloto já está a postos lá na frente, gira algumas manivelas aqui, outras ali; ouço o co-piloto comunicar-se com a torre de controle. Quem quer que viaje com freqüência conhece tais momentos vazios.

Os motores ainda não foram ligados. Algumas pessoas já estão lendo, outras olham para fora, mas não há muito o que ver. Apanhei a revista de bordo da modesta companhia, porém não tenho vontade de ler. A página habitual elogiando o próprio produto e logo depois alguns dados sobre seus poucos destinos: Berna, Viena, Zurique. Nos espaços publicitários, algo sobre a Austrália e seus aborígenes, desenhos rupestres, fragmentos de cortiça pintados em cores vívidas, tudo o que anda mais ou menos em moda nos últimos tempos. Em seguida, um trecho sobre São Paulo, um horizonte recortado de arranha-céus, os palácios dos ricaços e, como não podia deixar de ser, as eternas periferias, slums, favelas, ou como quer que se chamem. Telhados de ferro ondulado, estruturas de madeira caindo aos pedaços, pessoas que passam a impressão de estar felizes vivendo ali. Nada que eu já não tenha visto antes; se fixo o olhar, tenho a impressão de que já sou um centenário. É até bem possível que eu tenha chegado à casa dos cem: basta multiplicarmos a nossa idade real através de uma fórmula secreta, um número mágico que dá conta de todas as jornadas da nossa vida e dos impróprios déjàvus que costumam acompanhá-las, e chegamos lá. Eu normalmente não me deixo importunar demais por pensamentos do gênero, ainda que até agora tenha sido por atribuir-lhes uma natureza algo inferior, mas ontem à noite, em Lindau, com os três Obstler que eu tomei, o excesso não deixou de ter suas conseqüências, o que é de se esperar na minha idade. A aeromoça olha pela pequena porta, pelo visto ainda à espera do embarque de algum passageiro, alguém que acaba se revelando do sexo feminino, uma dessas mulheres que gostaríamos de ver sentada ao nosso lado. Isso indica que, pelo visto, não sou assim tão velho. Engano, o seu assento, junto à janela, encontra-se uma fila adiante, à esquerda do corredor. Até melhor que ao meu lado, porque dessa forma posso observá-la detidamente.

Pernas longas enfiadas em calças de um tecido cáqui, um atributo masculino que só faz realçar sua feminilidade. Umas manzorras fortes, com as quais ela desembrulha agora um livro envolto em papel celofane de cor carmesim, esmeradamente cingido por fita adesiva. Algo para que aquelas manoplas não têm paciência nenhuma: diante da recusa da fita adesiva em ceder, o embrulho é rasgado. Sou um voyeur. Um dos deleites de viajar é poder fitar desconhecidos que não sabem estar sendo observados. Ela abre o livro com tal rapidez que não me dá tempo de ler o título.

Tenho a mania de querer saber o que as pessoas leem, mas isso equivale a dizer "o que as mulheres lêem", porque os homens não leem mais. E as mulheres, aprendi nesse meio-tempo, costumam segurar seus livros de uma maneira a não lhe dar chance de descobrir o título, seja no trem, no banco de um parque ou na praia. Preste atenção.

Posso até estar me corroendo de curiosidade, mas perguntar eu não me atrevo. No frontispício, distingo uma longa dedicatória. Ela a lê por alto e, deixando o livro de borco sobre o assento vazio a seu lado, já se põe outra vez a olhar para fora. Os motores são ligados, o pequeno avião começa a chacoalhar; vejo seus seios metidos na camiseta justa balançarem ao ritmo dos motores, o que me provoca uma certa excitação. Perna esquerda alçada, luz incidindo sobre seus cabelos castanhos com reflexos de um dourado esbatido. Ela dispõe o livro com as páginas voltadas para cima, vai-se a minha chance de descobrir o título. Trata-se de um livro fino, assim como eu gosto. Calvino dizia que um livro deve ser curto, um princípio ao qual ele próprio se ateve. O avião corre sobre o concreto. Sobretudo em aviões pequenos, experimentamos sempre alguns momentos de volúpia na decolagem, logo que nos vem ao encontro a primeira lufada de corrente térmica e quando a máquina parece receber um empurrão suplementar por baixo, algo parecido com uma carícia, a mesma sensação que tínhamos quando pequenos, na balança de um playground.

As colinas ainda estão cobertas de neve. Isso empresta à paisagem um aspecto bastante gráfico; árvores nuas buriladas sobre um fundo alvo, às vezes mais que isso se torna supérfluo. Mas ela já não olha para fora. Apanha o livro novamente e volta a ler a dedicatória, com a mesma impaciência de antes. Tento imaginar seu conteúdo - essa é afinal de contas a minha profissão -, mas sem muito êxito. Seria de autoria de algum homem tentando remediar um erro? No que se refere a livros, recomenda-se prudência. Se nos enganamos de livro ou de escritor ao presentearmos alguém, entramos numa zona de risco.

Põe-se a folhear o livro, atendo-se vez ou outra a alguma página. Uma abundância de capítulos, considerando-se a espessura do livro. O que significa um novo início a curtos intervalos, algo que forçosamente pressupõe uma justificativa reiterada de leitura. Quem arruína o começo ou o final de um livro o faz porque não compreendeu nada do processo de escritura, e isso vale igualmente para os capítulos. Quem quer que seja o autor em questão, fato é que corre bastantes riscos. Ela volta a depositar o livro a seu lado, desta vez com o título voltado para cima, mas a luz de leitura faz com que o plástico da capa brilhe de tal maneira que ainda não consigo distinguir as palavras: para enxergar, teria de me levantar. Cruising altitude, sempre adorei a expressão. Espero ver esquiadores, afinal estamos sobrevoando nuvens com declives e vertentes espantosos, algo que sempre me impressionou. O mundo a tal altura se reduz a páginas vazias, adquirimos liberdade de ação. Mas ela não olha para fora, apanha a revista de bordo e a folheia de trás para a frente. Passa voando por São Paulo, atém-se longamente a um parque vasto e cheio de verde, para fitar agora as pinturas dos aborígenes; a intervalos aproxima alguma folha dos olhos. Chego até a ver como as pontas de seus dedos longos traçam os contornos da estranha figura de uma serpente sobre uma das pinturas. Fecha então a revista e adormece no mesmo instante. Algumas pessoas têm a habilidade de dormir um sono contido. Uma das mãos pousada sobre o livro, a outra amparando a nuca, por debaixo da cabeleira algo arruivada. Ando desde sempre às voltas com um enigma que os outros desistem de tentar elucidar. Sei que por trás se oculta uma história, uma história que jamais chegarei a conhecer. Esse livro permanece fechado, assim como o outro. No momento em que nos preparamos para aterrissar no aeroporto de Tempelhoff, já tenho escrito um quarto da introdução para um livro de fotografias sobre anjos de cemitérios. Abaixo de nós se encontram os quarteirões residenciais cinzentos de Berlim, o enorme rasgo da história que ainda perpassa a cidade. Ela penteia os cabelos e apanha o celofane carmesim para embrulhar o livro outra vez. Alisa o papel sobre as coxas e, não sei por quê, o gesto me comove. Apanha o livro e, ainda que por um breve momento, brande-o no ar de uma maneira tal que me permite ler o título.

Trata-se deste livro, um livro do qual ela desaparece, seguida por mim. Enquanto espero pela minha bagagem no hall oblongo, vejo-a dirigir-se para fora, onde um homem a espera. Ela lhe dá um beijo leve, com a mesma fugacidade com que lia o livro, do qual, de momento, só conhece a dedicatória, que eu nem li nem escrevi.

A bagagem vem ligeira; quando alcanço o andar de cima, vejo-a entrar num táxi com o homem para então desaparecer de vista. Fico para trás, como sempre, com um par de palavras não ditas e numa cidade que me cinge como um torniquete.