Ilustrações de Ksenia Svincova
sábado, outubro 31
Combo de leitura
Para leitores de primeira classe que sofrem de problemas de primeiro mundo, esse descanso de cama combo inclui um avançado sistema de massagem, bolsos laterais grandes para livros, um suporte de copo embutido, e até mesmo uma luz de leitura ajustável.
"Serve para você e sua cama. Projetado para caber toda a cama e apoiar todas as formas e tamanhos de corpo", anuncia o fabricante.
"Serve para você e sua cama. Projetado para caber toda a cama e apoiar todas as formas e tamanhos de corpo", anuncia o fabricante.
Bengalas e bigodes
Churchill é quem mais símbolos usou para ornar a própria imagem: com o chapéu, mostrava-se britânico; macho com o charuto; com os dedos anunciando vitória. E ainda usava bengala, embora não tão bem quanto Ghandi.
Chamado a Londres para negociar a libertação da Índia, Ghandi se hospedou em casa de indiano, recusando hospedagem oficial, e, para ir às conferências cruzava a cidade com bengala, manto e sandálias, simbolizando a pobreza e a resolução de seu povo. Com ele iam repórteres e fotógrafos de todo o mundo, fazendo de cada caminhada um comício global.
Charlie Chaplin criou Carlito com chapéu côco, também bengala e fraque com botinas esfrangalhadas, traje nobre com calçados pobres, contraditória síntese visual do seu cativante personagem.
Já Sherlock Holmes usa tripé de símbolos: a nobreza da bengala, a introspecção do cachimbo, o britânico chapéu de camurça.
Temos bigodes famosos como o pontudo de Stalin, a simbolizar seu caráter ferrenho; o bigodão do líder polonês Lech Walessa, expressão visual de sua rebelde bonomia (bigode que Leminski adotaria, a simbolizar a transformação que muitos socialistas recusaram). E, claro, há Hitler, que no quesito bigodes é até hoje invencível, mesmo diante dos bigodes surreais de Salvador Dali.
Há os que adotaram como símbolos peças de vestuário. O colete de Lênin, a indicar a origem burguesa da maioria dos líderes do socialismo dito proletário… A boina estrelada de Guevara, a indicar sua maestria em criar frases de efeito. A farda de Fidel, a simbolizar o regime cubano sempre em guerra contra o futuro. O macacão-uniforme de Mao, símbolo da padronização mental do socialismo.
E há os gestuais. O aceno de Getúlio Vargas. O sorriso de Juscelino. O sorriso de Kennedy encimado pelo topete.
Recentemente, houve líderes políticos com o gesto de levantar o braço com punho cerrado, mas depois passaram a andar cabisbaixos, até porque algemados nas costas.
Ao contrário, símbolo de alegria e confiança era a camisa colorida de Mandela, fora das calças enquanto ele se mostrava primeiro e único estadista a dançar em cerimônias públicas.
Há também, nessa galeria de imagens, os belos e doces olhos de Jesus, que tanto vemos pintados e impressos – e que ninguém sabe como realmente eram; imagem pública feita não pela pessoa mas pelo público.
Os olhos de Jesus simbolizam nossa crença em melhorar a realidade. Não deve ser por outra razão que caprichamos nas roupas, usamos jóias e penteados, pedicure e manicure, tatuagens e piercings. Todos, menos os loucos, queremos parecer melhores ou únicos para os outros.
Mas Einstein apenas botou a língua para fora.
Domingos Pellegrini
Charlie Chaplin criou Carlito com chapéu côco, também bengala e fraque com botinas esfrangalhadas, traje nobre com calçados pobres, contraditória síntese visual do seu cativante personagem.
Já Sherlock Holmes usa tripé de símbolos: a nobreza da bengala, a introspecção do cachimbo, o britânico chapéu de camurça.
Temos bigodes famosos como o pontudo de Stalin, a simbolizar seu caráter ferrenho; o bigodão do líder polonês Lech Walessa, expressão visual de sua rebelde bonomia (bigode que Leminski adotaria, a simbolizar a transformação que muitos socialistas recusaram). E, claro, há Hitler, que no quesito bigodes é até hoje invencível, mesmo diante dos bigodes surreais de Salvador Dali.
Há os que adotaram como símbolos peças de vestuário. O colete de Lênin, a indicar a origem burguesa da maioria dos líderes do socialismo dito proletário… A boina estrelada de Guevara, a indicar sua maestria em criar frases de efeito. A farda de Fidel, a simbolizar o regime cubano sempre em guerra contra o futuro. O macacão-uniforme de Mao, símbolo da padronização mental do socialismo.
E há os gestuais. O aceno de Getúlio Vargas. O sorriso de Juscelino. O sorriso de Kennedy encimado pelo topete.
Recentemente, houve líderes políticos com o gesto de levantar o braço com punho cerrado, mas depois passaram a andar cabisbaixos, até porque algemados nas costas.
Ao contrário, símbolo de alegria e confiança era a camisa colorida de Mandela, fora das calças enquanto ele se mostrava primeiro e único estadista a dançar em cerimônias públicas.
Há também, nessa galeria de imagens, os belos e doces olhos de Jesus, que tanto vemos pintados e impressos – e que ninguém sabe como realmente eram; imagem pública feita não pela pessoa mas pelo público.
Os olhos de Jesus simbolizam nossa crença em melhorar a realidade. Não deve ser por outra razão que caprichamos nas roupas, usamos jóias e penteados, pedicure e manicure, tatuagens e piercings. Todos, menos os loucos, queremos parecer melhores ou únicos para os outros.
Mas Einstein apenas botou a língua para fora.
Domingos Pellegrini
sexta-feira, outubro 30
Livros à mão na cama
Apaixonados por livros adoram ler em dois lugares: ou em uma cama quentinha, ou em uma biblioteca. É o que oferece o hotel Book and Bed, em Tóquio. No sétimo andar do prédio, há uma biblioteca com 1,7 mil livros em inglês e japonês e camas entre as estantes.
A diária varia de acordo com o tamanho do “quarto” : 3,8 mil ienes ( R$ 122 reais) para o compacto e 6 mil ienes para o quarto standard (aproximadamente R$ 193).
De acordo com o Bored Panda, o ambiente foi projetado por Makoto Tanjiri e Ai de Yoshida e será inaugurado no dia 5 de novembro. A meta é que a biblioteca tenha, pelo menos, 3 mil títulos.
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Primeiras leituras
A primeira sentença cujo segredo consegui decifrar até o fim dava a mim uma importância que a psicanálise explica: "A bola é de Paulo". Estava escrito debaixo do cartão colorido, na parede do primeiro ano primário do Grupo Barão do Rio Branco. Naquele tempo, o trabalho maior da professora era fazer com que olhássemos para a parte inferior do cartão, onde estavam as letras misteriosas, e não para cima, onde se estampava a figura do menino de calção azul e do cachorrinho correndo atrás da bola, vendo-se mais longe uma casa rodeada de árvores e de cuja chaminé saía uma fumacinha feliz. Aprender é uma mutilação.
No exame de admissão, tive a sorte de ler e analisar gramaticalmente um trecho de Coelho Neto que sabia de cor: "Selva augusta, de velhos troncos intactos, jamais ferida pelo gume dos ferros...".Veio depois o ginásio, no qual considerava o florilégio um livro à parte, encapado no papel mais bonito, para contrabalançar o volume de matemática de Jácomo Stavale. Eram as flores que enfeitavam as horas de estudo, compridas e desertas Com o tempo, Machado de Assis foi melhorando de estilo e de ideias. Vez por outra, no entanto, dava para escrever frases intransponíveis como esta: "O destino é o seu próprio contrarregra". Durante muitos anos, todas as vezes que deixava de entender uma situação, repetia comigo a fórmula incompreensível: "O destino é o seu próprio contrarregra"! Duro era encontrar motivos que justificassem nossa admiração por Rui Barbosa, o homem mais inteligente do mundo. Bonito mesmo era a última corrida de touros em Salvaterra, que não é de Alexandre Herculano, como lembram os ingratos, mas de Rebelo da Silva. Bonito era o sertanejo, antes de tudo, um forte. Bonito era o suave milagre ("longos são os caminhos da Galiléia e curta a piedade dos homens").
Quase tão bonito era o cerco de Leyde, com aquela dúvida atroz, que permaneceu até hoje, de saber se o mar era o único túmulo digno de um almirante bátavo ou batavo. Bonito era a virgem dos lábios de mel. Bonito foi o descobrimento de O coração de d'Amicis. Bonito foi quando achei na antologia de Carvalho Mesquita uma poesia esquisita, a história de uma boneca de olhos de conta cheinha de lã, que rolou na sarjeta e foi levada pelo homem do lixo, coberta de lama, nuinha, como quis Nosso Senhor; Jorge de Lima foi o meu primeiro frisson nouveau. Feio foi o que veio depois. A vida não é antológica, não tem gramática, não tem adjetivos bonitos, não tem pontuação. Foi o que aprendi um século mais tarde em um livro besta.Paulo Mendes Campos
Jan Steen |
Só no quarto ano trocamos os livros ilustrados por um volume mais grosso, sem enfeites: era a antologia de Olavo Bilac e Manuel Bonfim. Já a essa altura, sem contar as silabadas, líamos correntemente. Mistério era descobrir por que motivo tanta gente havia escrito tanta coisa sem graça. Logo na primeira página, embirrei com o tal de Machado de Assis. Aquele lobriguei luz por baixo da porta me aborreceu. Lobriguei lembrava lombriga; lombriga lembrava vermífugo... Não topei Machado de Assis, a não ser aquele diabo velho, sentado entre dois sacos de moedas.
No exame de admissão, tive a sorte de ler e analisar gramaticalmente um trecho de Coelho Neto que sabia de cor: "Selva augusta, de velhos troncos intactos, jamais ferida pelo gume dos ferros...".Veio depois o ginásio, no qual considerava o florilégio um livro à parte, encapado no papel mais bonito, para contrabalançar o volume de matemática de Jácomo Stavale. Eram as flores que enfeitavam as horas de estudo, compridas e desertas Com o tempo, Machado de Assis foi melhorando de estilo e de ideias. Vez por outra, no entanto, dava para escrever frases intransponíveis como esta: "O destino é o seu próprio contrarregra". Durante muitos anos, todas as vezes que deixava de entender uma situação, repetia comigo a fórmula incompreensível: "O destino é o seu próprio contrarregra"! Duro era encontrar motivos que justificassem nossa admiração por Rui Barbosa, o homem mais inteligente do mundo. Bonito mesmo era a última corrida de touros em Salvaterra, que não é de Alexandre Herculano, como lembram os ingratos, mas de Rebelo da Silva. Bonito era o sertanejo, antes de tudo, um forte. Bonito era o suave milagre ("longos são os caminhos da Galiléia e curta a piedade dos homens").
Quase tão bonito era o cerco de Leyde, com aquela dúvida atroz, que permaneceu até hoje, de saber se o mar era o único túmulo digno de um almirante bátavo ou batavo. Bonito era a virgem dos lábios de mel. Bonito foi o descobrimento de O coração de d'Amicis. Bonito foi quando achei na antologia de Carvalho Mesquita uma poesia esquisita, a história de uma boneca de olhos de conta cheinha de lã, que rolou na sarjeta e foi levada pelo homem do lixo, coberta de lama, nuinha, como quis Nosso Senhor; Jorge de Lima foi o meu primeiro frisson nouveau. Feio foi o que veio depois. A vida não é antológica, não tem gramática, não tem adjetivos bonitos, não tem pontuação. Foi o que aprendi um século mais tarde em um livro besta.Paulo Mendes Campos
quinta-feira, outubro 29
Best-seller, só em dose moderada
Sempre houve literatura popular, para entretenimento. E é bom que haja. O que é terrível é quando isso passa a substituir o que era tradicionalmente a verdadeira literatura. E essa é uma característica contemporânea. E por isso os leitores leem o quê? Não leem Proust. Não leem Kafka. Não leem Joyce. Não leem Guimarães Rosa (sou um grande admirador de Guimarães Rosa). Mas se aquilo de que você gosta são os best-sellers, já não pode ler Guimarães Rosa porque está sem condições de fazer o esforço intelectual para poder ler "Grande sertão: Veredas". ImpossívelMario Vargas Llosa
'Urupês': memórias da liberdade
O primeiro livro que li inteiro, além das cartilhas de escola, foi “A chave do tamanho”, de Monteiro Lobato, um volume ensebado que escolhi na Biblioteca Pública para inaugurar minha carteirinha de sócio. Não sei bem por que peguei logo esse livro, um dos mais espessos, e com poucas gravuras em preto e branco. Um momento histórico da minha pequena história: não fui amante de livros de nascença (alguns vivem essa dádiva) e nos aniversários sofria antecipadamente com a perspectiva de receber, de presente, não uma espingarda de rolha, uma kombi de plástico ou um time de futebol de botão, mas um livro, um livro certamente edificante que eu largaria na segunda página.
Pior que isso, só ganhar um pulôver, ou, o fim, uma calçadeira para o sapato vulcabrás da promoção. Assim, foi com certo orgulho e algum exibicionismo que levei aquele exemplar para casa -talvez ainda houvesse salvação para mim. Tempos antes eu havia sido reprovado em redação, prova eliminatória, no exame de admissão ao ginásio do Colégio Estadual do Paraná, o que me obrigara a freqüentar o famigerado quinto ano primário, reduto de marmanjos incapazes e desqualificados em geral.
Li “A chave do tamanho” em um dia e meio, num estado de encantamento: tudo ali me dizia respeito. Não era só Monteiro Lobato que eu descobria: eu descobria, afinal, o poder transcendente da leitura. O velho chavão de alguém que por um fato qualquer “se torna outra pessoa” foi verdadeiro para mim, terminada a leitura do livro. E lá estava eu de novo na Biblioteca Pública, carteirinha na mão, para ler tudo que houvesse de Monteiro Lobato na prateleira. Metódico -talvez o termo “febril” seja mais adequado-, segui o roteiro que a própria coleção da Editora Brasiliense oferecia, uma espécie de página-guia com o título “Obras completas de Monteiro Lobato”, em 43 volumes.
Ao lado, a fotografia do meu herói, com aquelas sobrancelhas monumentais. Comecei pela chamada 2ª série, “Literatura Infantil”, em 17 volumes, um a um, só pulando a seqüência quando o volume da vez já havia sido emprestado. Muito da minha concepção de literatura derivou desse conjunto: a literatura entendida como um corpus integrado de narrações, uma “coleção”, uma família literária -nenhum livro está sozinho no mundo. Uma paixão que se estendeu ao teatro; nessa época, montei um teatrinho de papelão, criei fantoches com os personagens do Sítio do Picapau Amarelo e reescrevi algumas histórias de modo que só houvesse duas figuras em cena de cada vez -só tenho duas mãos, e o sentimento pela vizinha da minha idade que, desgraçadamente, não se interessava por Monteiro Lobato nem pelo meu teatro de fantoches. Um papelão, afinal, sem público, mas não me importava, dramatizando sozinho, eu, Emília e o Visconde de Sabugosa, minha tragédia adolescente.
Terminada a série infantil e o terceiro conjunto da coleção, de traduções e adaptações –“Contos de Andersen”, “Robinson Crusoe” etc.-, era hora de entrar na parte principal, “Literatura Geral”, o que seria, enfim, minha passagem ao mundo adulto. Mais que isso: era hora de comprar um livro, de ser proprietário de um livro, de começar a minha coleção, a minha biblioteca. (Suponho que quando Bill Gates colocou no Windows essas etiquetas ridículas -“meu computador”, “meus documentos”, “meu porta-arquivos”- certamente tocou numa das chaves da adolescência perpétua, o imaginário dos 13 anos de idade como a utopia mental do universo.)
Dinheiro para comprar livro não havia, naqueles tempos difíceis. Assim -milagre!- sugeri à minha mãe que, de aniversário, me desse um livro. E anotei o título num papel: “Urupês”, de Monteiro Lobato, o volume 1 da “Literatura Geral”. Tenho até hoje esse exemplar, uma brochura com um desenho geométrico, azul, na capa, que padronizava a coleção (tempos depois comprei o número 2, “Cidades mortas”, que tinha o mesmo desenho em verde), com a dedicatória esperançosa da minha mãe, e a data: 21 de agosto de 1965, os meus 13 anos. Era a 12ª edição de “Urupês”, de 1962, e o meu exemplar traz o número 1864 -naquele tempo os livros eram numerados.
Na página de rosto, carimbei -eu tinha um joguinho de carimbos, com tipos cambiáveis- o nome da minha coleção nascente: Biblioteca Liberdade, de acordo com a visão de mundo dominante na época, dominante porém derrotada, e no canto superior direito o número do exemplar: 1. O volume tem 300 páginas -na página 150, exatamente na metade, está minha rubrica adolescente, imitando o hábito misterioso de meu pai, que costumava assinar os seus livros exatamente na página central. O engraçado é que, abaixo da rubrica, escrevi “nº 5”, o que indica talvez que eu já fosse proprietário de quatro livros, dos quais não tenho memória -mas na classificação muito mais importante da Biblioteca Liberdade que eu acabava de fundar, “Urupês” seria o volume inaugural.
O livro era uma edição crítica de “Urupês”, muito bem editada, contendo uma breve biografia de José Bento Monteiro Lobato, por Edgard Cavalheiro (mais tarde eu leria a biografia completa, em dois volumes, escrita pelo mesmo autor), relação de obras, fontes bibliográficas para o estudo de Lobato, observação sobre a ortografia lobatiana, nota sobre a relação dele com a Academia Brasileira de Letras e até as homenagens da geografia -em São Paulo, há uma cidade de nome Urupês, e outra chamada Monteiro Lobato. Além disso, trazia as ilustrações em bico-de-pena das primeiras edições do livro, de autoria do próprio Lobato. E, é claro, a coletânea de contos, acrescida do prefácio da segunda edição, com o artigo “Velha Praga” e o breve ensaio que dá título ao livro, “Urupês”.
Enfim, eu tinha diante de mim não um pacífico livro de contos, uma tranqüila obra de ficção a ser degustada ou um objeto a ser avaliado estritamente pelo seu caráter artístico, essa perspectiva que nas décadas seguintes seria dominante -para mim, “Urupês”, meu primeiro livro adulto, representava na verdade uma declaração de guerra. Lobato não escrevia livros; ele tomava atitudes. Tudo nele era problemático, agressivo, opiniático, independente, solitário. Claro que não é o caso aqui de analisar “Urupês” na frieza histórica, no seu papel no modernismo brasileiro, um trabalho de especialistas. O que estou tentando reconstituir com os cacos da memória, mais de 30 anos depois, é a natureza dessa influência na minha formação, a partir de um livro difícil para uma criança.
Primeiro, o choque com a linguagem -saído do coloquial vivíssimo de sua obra infantil, eu dava de cara com um vocabulário que a cada duas linhas me obrigava a uma viagem ao dicionário, sem falar da sintaxe com fortes traços lusitanos. Na segunda linha do primeiro conto, aparecia um “dava azo á dúvida”, com a crase ao contrário; adiante, um “sabe-lo-ás em tempo”. E, em cada parágrafo, o narrador tomava uma posição concreta e agressiva sobre as coisas do mundo, para o que a literatura propriamente dita servia de escada, sempre fiel à sua ortografia pessoal (que aqui transcrevo fielmente): “Toda gente” é um monstro com orelhas d’asno e miolos de macaco, incapaz duma ideia sensata sobre o que quer que seja.
No ensaio “Urupês”, de fato um manifesto que dispensava o truque da ficção, Lobato avança a dizer o contrário de “toda gente”, fazendo do nosso exótico caboclo, essa glória de um Brasil puro, autêntico e não contaminado pela corrupção civilizada, um “Jéca Tatú” cujo “grande cuidado é espremer todas as consequencias da lei do menor esforço -e nisto vai longe”. A ponto de preferir banquinho de três pernas -“inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão”.
O instinto crítico de Monteiro Lobato vai se misturando com um humor irritado e irresistível, um amontoar de paradoxos em que o tema de seu texto será sempre a transformação do Brasil inteiro. Lamentando as “benerencias sem conta da mandioca”, que afinal mantêm o Jéca vivo, Lobato diz que se a mandioca medrasse na Inglaterra, “talvez os vissemos hoje, os ingleses, tolhiços, de pé no chão, amarelentos, mariscando de peneira no Tamisa”. E quanto à arte do nosso Jéca? “Nada”. Menos que o homem das cavernas, que “entalhava perfis de mamutes em chifres de rena”. Em suma, “o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas”.
Impossível ficar indiferente a Monteiro Lobato. Ao mesmo tempo em que ele faz da vítima o culpado -há quem diga que seu ódio ao caboclo refletia apenas seu fracasso como fazendeiro-, e de certo modo deixa transparecer os preconceitos de raça e de um darwinismo social típicos da ciência da época (que impregnaram uma obra do porte de “Os Sertões”, por exemplo), há nele, mais que tudo, como uma ética, esse horror de vísceras à cultura do “coitadinho” que afinal permeava e permeia grande parte das relações sociais brasileiras, do caboclo ao senador.
O prazer da independência era o que eu apreendia, muito mais que um ideário estético. Uma independência que chegava ao ponto de contestar a grafia oficial da língua padrão, esse último reduto do sagrado na nossa cultura leiga. Hoje, quando tudo que se discute nos meios de comunicação a respeito da língua brasileira são as regrinhas que caem no vestibular, repetidas com veneração em meio a uma profunda ignorância lingüística que às vezes sequer distingue língua de grafia, a figura de Monteiro Lobato -a sua nitidez- dá saudade.
Mais que a leitura de um livro de contos, eu encontrava naquela edição de “Urupês” uma espécie de rumo existencial, uma biografia, um pacote completo para pensar o Brasil e o mundo, da ortografia pessoal ao horror à Academia; dos grandes projetos fracassados, editoras e poços de petróleo, à denúncia social; do profundo americanismo, como valor, ao profundo nacionalismo, como prática; do modernismo de “Urupês” ao conservadorismo obtuso do crítico de arte -em suma, um herói da adolescência, com todas as pontas e as contradições que isso significava.
Finalmente, havia em “Urupês” -isto é, naquela biografia literária, na imagem de Monteiro Lobato que eu absorvia apaixonado- um ideário político, uma exigência de escolhas, de opções, de decidir o que fazer como projeto existencial. O livro caía na minha mão um ano depois do golpe de 64, em breve haveria o sobre-golpe de 68, e o Brasil afundaria em suas duas décadas de atraso militar, enquanto a alternativa mais radical -mas é como se não houvesse alternativa- era, vista de hoje, um totalitarismo também militar. Assim, a solidão lobatiana, a atitude implícita na sua arte, aquela independência ranheta -porque, de fato, Monteiro Lobato é um dos grandes solitários na nossa história- representou uma ótima companhia para a minha passagem à vida adulta.
Cristovão Tezza
quarta-feira, outubro 28
Um monte de pedaços
BN terá biblioteca no Porto Maravilha
Imagem do projeto de Hector Vigliecca para o novo edifício da Biblioteca Nacional, no Porto Maravilha (Divulgação) |
Todos os meses, cerca de 25.000 peças são doadas para alimentar o acervo de 10 milhões de itens da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Nesta quinta, quando a Biblioteca completa 205 anos, mais algumas peças passarão a integrar a coleção. Em vez de ajudarem a manter vivo o passado, elas apontarão para o futuro. São 6 croquis e um caderno de esboços do edifício anexo da Biblioteca que será construído no Porto Maravilha, o programa de revitalização da zona portuária carioca.
Quem assina os croquis é o responsável por projetar o novo prédio, o uruguaio Hector Vigliecca. No ano passado, seu escritório venceu o concurso de arquitetura promovido por uma parceria entre Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp) e Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ). Na ocasião, foram avaliados 38 trabalhos de profissionais de todas as regiões do país. Vigliecca é autor da arena Castelão, em Fortaleza, entre outros projetos.
A proposta de Vigliecca se destacou pela conexão com a cidade, feita a partir de uma praça coberta e um vão livre. “Não é um objeto isolado nem de ostentação”, diz o material descritivo. Dentro da Biblioteca Nacional do Cais do Porto, como deverá se chamar, haverá teatro, salas multimídia, café, galeria de exposições, restaurante e livraria, distribuídas entre a praça, o térreo e o mezanino. Existirá ainda uma biblioteca pública para pegar livros emprestados ou apenas ter alguns momentos de sossego com vista para o mar. Os volumes raros continuarão guardados no edifício principal.
Quem assina os croquis é o responsável por projetar o novo prédio, o uruguaio Hector Vigliecca. No ano passado, seu escritório venceu o concurso de arquitetura promovido por uma parceria entre Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp) e Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ). Na ocasião, foram avaliados 38 trabalhos de profissionais de todas as regiões do país. Vigliecca é autor da arena Castelão, em Fortaleza, entre outros projetos.
Praça aberta da Biblioteca Nacional do Cais do Porto, como deve se chamar o prédio |
Vendas de e-books caem e impressos estão longe de morrerem
A Penguin Random House dobrou no último ano o espaço do centro de distribuição em Crawfordsville |
Há cinco anos, o mundo dos livros foi dominado pelo pânico coletivo diante do futuro incerto. À medida em que os leitores nos EUA migravam para os dispositivos digitais, as vendas de e-books cresciam vertiginosamente, crescendo de 1.260% entre 2008 e 2010, alarmando livreiros. Com isso, as vendas de livros impressos caíram, as livrarias enfrentaram dificuldades para manter suas portas abertas, e autores e editores temeram a possibilidade de os e-books, mais baratos que os livros em papel, devorassem a própria indústria. Agora, há sinais que indicam que aqueles que adotaram os e-books estão voltando para o formato impresso, ou se tornando leitores híbridos. As vendas de e-books tiveram queda de 10% nos primeiros cinco meses de 2015, de acordo com a Association of American Publishers. O declínio da popularidade dos livros digitais pode indicar que, embora não sejam imunes às revoluções tecnológicas, as editoras suportarão o maremoto da tecnologia digital melhor do que outras indústrias, como a música ou a TV.
(Fonte: The New York Times)
terça-feira, outubro 27
O livro bem escrito
Que ridículo e mesmo estúpido dizer-se de um livro que está bem escrito. Não é "bem escrito" que está. Está é sentido originalmente, original nas observações, inteligente na reflexão. É por isso que não se pode imitar. Pode-se é ser original de outra maneira. Há realmente livros que são apenas "bem escritos". São os livros banais, com palavras trabalhadas ao torno, frases que se pretendem "despojadas", reduzidas ao "essencial", e cruas. Mas como o que nelas está não representa um sentir originário, nem uma observação imprevista, nem uma reflexão que nos surpreenda pela justeza e profundidade, o que delas resulta é uma construção pretensiosa, estéril e quase sempre irritante. Decerto um romance (como a poesia segundo Mallarmé e como creio já ter dito), faz-se com palavras. Pois com que é que havia de fazer-se? Mas antes disso faz-se com o impulso animador a essas palavras e que assim não passa bem por elas mas por entre elas, fazendo delas apenas um apoio para passar além, como o som passa pelas cordas mas existe por entre elas e é nesse som o indizível que nos emociona. O que nos fica de um livro "bem escrito" é essa emoção que já não lembra as palavras e vive por si.
Eis porque tal livro é inimitável e apenas poderá repetir-se, ou seja plagiar-se. Imitar verdadeiramente esse livro é recompor uma emoção afim e inventar outras palavras que traduzam esse sentir, ou seja que lhe sirvam de pretexto ou estratagema para que esse sentir (e pensar/sentir) se realize como a música nas cordas de um instrumento. O escritor medíocre imagina que todo o seu trabalho deve incindir no trabalhar uma frase. Ora não é a frase que tem de se trabalhar: é aquilo que há-de passar por ela. Os autores célebres que trabalharam a frase, na realidade trabalharam apenas aquilo que haviam de exprimir; testaram na frase a realização de uma expressão. O escritor medíocre dá como já adquirido o que haveria a dizer e todo o seu esforço é secar o período, burilar ou envernizar o vocábulo. E no fim de contas, este é que
Eis porque tal livro é inimitável e apenas poderá repetir-se, ou seja plagiar-se. Imitar verdadeiramente esse livro é recompor uma emoção afim e inventar outras palavras que traduzam esse sentir, ou seja que lhe sirvam de pretexto ou estratagema para que esse sentir (e pensar/sentir) se realize como a música nas cordas de um instrumento. O escritor medíocre imagina que todo o seu trabalho deve incindir no trabalhar uma frase. Ora não é a frase que tem de se trabalhar: é aquilo que há-de passar por ela. Os autores célebres que trabalharam a frase, na realidade trabalharam apenas aquilo que haviam de exprimir; testaram na frase a realização de uma expressão. O escritor medíocre dá como já adquirido o que haveria a dizer e todo o seu esforço é secar o período, burilar ou envernizar o vocábulo. E no fim de contas, este é que
"escreve bem". Mas quem assim escreve bem, escreve bastante mal. Não digo rasamente que o "conteúdo" preceda a sua "expressão". Mas o que preexiste à expressão não é um puro nada. Exprimir é operar e concretizar esse algo. Mas esse algo existe. Escrever bem, como se diz, é realizar pela escrita um «bem» que aí se revela mas que está antes e depois disso em que se revela. Escreve-se bem com o espírito e a sensibilidade - não com um dicionário. Embora seja no dicionário que está toda a obra-prima. Como na pedra está toda a melhor escultura.
Vergílio Ferreira (1916 - 1996)
Biblioteca vira depósito
A falta de uma biblioteca municipal em Boa Esperança do Sul (SP) gera reclamação de moradores. O espaço reservado para os livros está fechado há 4 anos e virou um depósito de alimentos. Segundo a Secretaria da Educação, a inauguração de um novo acervo deve ocorrer no começo de 2016.
A população faz questão de manter o costume saudável da leitura, mas o grande problema é a limitação de livros. “O pouco que a gente tem é esse, se tivesse uma biblioteca, você iria lá ou levava as crianças, elas escolheriam os livros que queriam e trariam para lermos em casa”, contou a dona de casa Alessandra da Costa Furlan.
Em julho, mais de 3 mil livros foram levados para o prédio da Secretaria da Educação, mas o lugar não está aberto ao público. Apesar de conseguir salvar alguns volumes, cerca de 100 exemplares acabaram estragando.
A população faz questão de manter o costume saudável da leitura, mas o grande problema é a limitação de livros. “O pouco que a gente tem é esse, se tivesse uma biblioteca, você iria lá ou levava as crianças, elas escolheriam os livros que queriam e trariam para lermos em casa”, contou a dona de casa Alessandra da Costa Furlan.
Em julho, mais de 3 mil livros foram levados para o prédio da Secretaria da Educação, mas o lugar não está aberto ao público. Apesar de conseguir salvar alguns volumes, cerca de 100 exemplares acabaram estragando.
A atual secretária de Educação, Daniela Furlan Barreto, assumiu a pasta há um ano e meio e só começou a trazer os livros para um novo prédio há três meses. Segundo ela, a culpa pela demora em reabrir o lugar é da gestão anterior.
“Quando nós assumimos em maio de 2014, nós ficamos sabendo deste espaço lá embaixo, que os livros estavam todos amontoados. A partir disso visamos um novo projeto, trazendo esses livros para cá e arrumando tudo direito, agora só falta a catalogação para abrir para a população”, explicou Daniela Barreto.
Com um novo espaço, a inauguração da biblioteca deve ser realizada em janeiro de 2016, porém, mesmo com o não funcionamento da biblioteca municipal, todas as unidades oferecem mini bibliotecas dispostas a suprir as necessidades dos alunos.
“Quando nós assumimos em maio de 2014, nós ficamos sabendo deste espaço lá embaixo, que os livros estavam todos amontoados. A partir disso visamos um novo projeto, trazendo esses livros para cá e arrumando tudo direito, agora só falta a catalogação para abrir para a população”, explicou Daniela Barreto.
Com um novo espaço, a inauguração da biblioteca deve ser realizada em janeiro de 2016, porém, mesmo com o não funcionamento da biblioteca municipal, todas as unidades oferecem mini bibliotecas dispostas a suprir as necessidades dos alunos.
(Fonte: G1)
segunda-feira, outubro 26
Viver e outros verbos
Em certos dias parece belo viver, se conseguimos nos esquecer de que sóis tão majestosos e pássaros tão alvissareiros brilharam e cantaram para Romeu e Julieta, quando os induziram àquele horrível final.
Viver é sempre a mais temerária de nossas atividades.
Viver é o tipo de jogo do qual saímos sabendo menos do que quando entramos.
Viver não é tão difícil. Vamos lá, você já conseguiu outras vezes. Recorra à memória. Algo deve ter ficado nela, desse tempo. Ao menos um pouco daquela esperança, que era feita da errônea interpretação que você dava às intenções de certo sorriso e de certos traiçoeiros olhos verdes.
Foi só quando ela lhe disse bom dia que ele notou como o sol saltitava entre as flores, no parque, para beber as últimas gotas da chuva da madrugada.
Refugiou-se em casa e, quando tocavam a campainha, ele agora não ia nem espreitar pela cortina, com medo de que o amor viesse tentá-lo sob a forma de uma vendedora de yakult, de uma carteira entregando sedex ou, como acontecera na última vez, de uma pregadora disposta a tudo para divulgar sua seita.
Gato é o tipo de palavra que fica bem em qualquer frase.
Já que é preciso morrer, caprichemos. Não há uma segunda chance.
Olhando disfarçadamente as mãos da mulher, ele avaliava o que elas poderiam fazer se, dando-lhes liberdade, ela as deixasse passear nos cabelos dele, nas orelhas, no pescoço, na nuca, nos, nas, no, na…
No almoço de família, o tio viúvo contou tantas calamidades amorosas e chorou tantas feridas que o menino lhe perguntou: “Tio, amor morde?”
A maioria dos que vivem para escrever não vive de escrever.
Que generoso é o amor. Nunca recusa lágrimas aos nossos olhos, quando nos lembramos dele.
No porão mais escuro e frio da memória, os frutos não colhidos e o mel não provado abraçam-se tão tristemente quanto um bando de meninos órfãos.
Quando viu, era de novo primavera. E precisou explicar mais uma vez ao corpo cansado que acreditar naquilo que o coração e a alma sugeriam podia ser belo, mas impossível.
E contudo, e apesar de tudo, pulsa ainda o coração, e os olhos veem, e as pernas se movem, mas pulsa para quê, mas olham para o quê, mas para onde se movem?
***
Viver é sempre a mais temerária de nossas atividades.
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Viver é o tipo de jogo do qual saímos sabendo menos do que quando entramos.
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Viver não é tão difícil. Vamos lá, você já conseguiu outras vezes. Recorra à memória. Algo deve ter ficado nela, desse tempo. Ao menos um pouco daquela esperança, que era feita da errônea interpretação que você dava às intenções de certo sorriso e de certos traiçoeiros olhos verdes.
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Foi só quando ela lhe disse bom dia que ele notou como o sol saltitava entre as flores, no parque, para beber as últimas gotas da chuva da madrugada.
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Refugiou-se em casa e, quando tocavam a campainha, ele agora não ia nem espreitar pela cortina, com medo de que o amor viesse tentá-lo sob a forma de uma vendedora de yakult, de uma carteira entregando sedex ou, como acontecera na última vez, de uma pregadora disposta a tudo para divulgar sua seita.
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Gato é o tipo de palavra que fica bem em qualquer frase.
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Já que é preciso morrer, caprichemos. Não há uma segunda chance.
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Olhando disfarçadamente as mãos da mulher, ele avaliava o que elas poderiam fazer se, dando-lhes liberdade, ela as deixasse passear nos cabelos dele, nas orelhas, no pescoço, na nuca, nos, nas, no, na…
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No almoço de família, o tio viúvo contou tantas calamidades amorosas e chorou tantas feridas que o menino lhe perguntou: “Tio, amor morde?”
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A maioria dos que vivem para escrever não vive de escrever.
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Que generoso é o amor. Nunca recusa lágrimas aos nossos olhos, quando nos lembramos dele.
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No porão mais escuro e frio da memória, os frutos não colhidos e o mel não provado abraçam-se tão tristemente quanto um bando de meninos órfãos.
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Quando viu, era de novo primavera. E precisou explicar mais uma vez ao corpo cansado que acreditar naquilo que o coração e a alma sugeriam podia ser belo, mas impossível.
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E contudo, e apesar de tudo, pulsa ainda o coração, e os olhos veem, e as pernas se movem, mas pulsa para quê, mas olham para o quê, mas para onde se movem?
Amar o livro é do coração
Assim começa o livro...
Conseguimos roubar quatro horas para nós. Mas o que é “roubar” quatro horas? Niels Petter não achou a menor graça. Só em Førde dignou-se a me dirigir a palavra.
Nós simplesmente subimos o morro a partir do vale.
Meia hora depois, estávamos diante do bosquezinho de bétulas.
Outra vez...
Não dissemos uma palavra no caminho. Sobre aquilo, digo. Falamos de tudo, mas daquilo não. Tal como antigamente. Não fomos capazes de nos posicionar quanto ao acontecido. E assim nós fomos para o brejo, talvez não você enquanto você, nem eu enquanto eu, mas nós dois enquanto nós dois. Não conseguimos nem mesmo trocar um boa-noite. Lembro que passei a última noite no sofá. E me lembro do cheiro do cigarro que você fumava sentado no outro cômodo. Através da parede e da porta fechada, cheguei a ver a sua cabeça inclinada. Você ficou lá, debruçado na escrivaninha, fumando. No dia seguinte eu parti, e nós não voltamos a nos ver. E lá se vão mais de trinta anos. Não dá para entender.
Mas eis que acordamos subitamente de anos de sono de Bela Adormecida — como que sacudidos pelo mesmo sinal milagroso. E, independentemente um do outro, tornamos a nos hospedar lá. No mesmo dia, Steinn, num outro século. Num mundo inteiramente novo. Caramba, depois de mais de trinta anos.
E não me diga que foi mera casualidade. Não diga que não foi orquestrado!
O mais surrealista foi a dona do hotel aparecer subitamente na varanda, ela que naquele tempo era a jovem filha da casa. Também para ela passaram-se trinta anos. Acho que essa foi a grande experiência de déjà-vu da sua vida. Lembra o que nos disse? Que bom saber que vocês continuam juntos, foi o que disse. Essas palavras doeram. Mas não deixaram de ter graça, já que a mulher não nos via desde aquela manhã, na metade dos anos 1970, em que ficamos tomando conta das suas três filhinhas. Esse favor nós lhe fizemos porque ela nos havia emprestado duas bicicletas e um rádio portátil.
domingo, outubro 25
Tesouro eterno
Passei a noite recitando textos que estavam na biblioteca de minha memória, e me aliviou o fato de saber que eu não tinha esquecido de nada, nos diferentes idiomas que falo. Mas na minha biblioteca eu tinha atesourado os textos clássicos e também um montão de porcarias que eu tinha aprendido não sei por quê. Não tenho uma resposta certa para isso, mas posso inventar uma: está ligada a certas recordações da minha infância e da adolescência. E à medida que vamos lendo nossa memória vai construindo certos edifícios que depois passam a nos pertencerAlberto Manguel
Jardim da Glória à beira-mar plantado
Como traduzir? mais corretamente honest. Por honesto, evidentemente, e por extensão, analogia, também por verdadeiro, autêntico, genuíno, natural, intrínseco, básico, fiel, direito, verossímil. Quem tem dessas qualidades é correto e puro. E se é assim, tem vergonha. Então é lícito verter o texto shakespeariano:
— Que horas são?
— São horas de ter vergonha.
É o que penso no dia em que completo setenta e cinco anos de vida e começo este meu quinto volume de memórias. E por que? a epígrafe. Para minha encucação durante o trabalho que empreendo, querendo ser sincero, veraz e probo. Usando brio e vergonha. Estou escrevendo no meu escritório, olhando lá fora o dia molhado, frio e gris que cobre o Aterro, a baía e, do outro lado, a linha de montanhas daqui visível — o horizonte que vai da ponta de Jurujuba à ilha da Boa Viagem. Namoro a paisagem áspera de outono que se Matisse tivesse visto traduziria com seus car vões mais compactos, seus cinza mais chumbo, seus brancos mais desérticos.
E é de hoje? esse meu namoro com a paisagem natural, civil e humana do Rio. Por mais longe que olhe dentro em mim — vejo-o presente. Essa cidade, lembro-a de sempre. Mais particularmente em quadros que ficaram fixados pela memória — indeléveis fotografias instantâneos passados. Dentro da noite de veludo azul-marinho chego de Minas e contemplo, olhos ávidos, as ruas iluminadas a gás sem ouvir o tílburi que desliza rodas de borracha ao longo do Mangue de tinta negra, minhas mãos num joelho de meu pai, num joelho amigo do dr. Duarte. Na manhã de Visconde de Figueiredo a primavera toda úmida tem gosto ácido e cheira a flores de laranjeira, presa nas mãos de tia Eugênia Ennes — cujo vulto rosa e branco, na varanda tilintante, também se dissolve como a serralheira de prata dentro do banho de ouro do dia que chegou dos lados do Estácio. Na tarde açucarada de Aristides Lobo os bondes sobem e descem, derramando dos estribos pencas de baleiros tabuleiros multicores cheios do gosto verde da hortelã, claro das tangerinas, cortante dos abacaxis e pastoso dos nugás. Na treva de São Cristóvão, janela aberta sobre o Campo, inauguro luares argênteos e descubro o bólide ciclope do Cascadura (direto) cortando a escuridão me fazendo estremecer primeira vez à revelação repentina da eterna solidão.
Esse encanto pelo Rio, eu o encontro em cada bairro que morei. Infância em Visconde de Figueiredo e Aristides Lobo. Depois Haddock Lobo e São Cristóvão. Voltei a Minas para ficar meus anos de faculdade, meus anos de indecisão. Fui à aventura do Oeste Paulista. Reconquistei minha Beira-Mar definitivamente, quando para aqui voltei no dia 10 de março de 1933. Desde meu nascimento subindo e descendo o Caminho Novo — morei vinte anos em Minas. Dois, em São Paulo. Finalmente cinquenta e três nesta Muy Leal e Heroica. Sou mineiro dos que dizem — mineiro graças a Deus! Mas por minha mãe tenho origens paulistas, montanhesas, baianas e cearenses. Por meu pai, maranhenses e outra vez cearenses. Sou um brasileiro integrado na tricromia da raça. Com tantos sangues provincianos de que me orgulho tenho aspiração a mais: quero ser ainda — carioca amador. Ao mesmo jeito de meu amigo o pernambucano Luís Jardim. E o que é? o Rio para mim. São aquelas quatro paisagens que encheram minha infância e albores da adolescência e que têm cor azul-escuro noturno, ouro rosazul e prata dos seus dias gradis; som de ondas batendo, notas argentinas de vareta raspada contra serralherias e as sete da escala do siringe de tantos tubos dos doceiros passando. E seu velho perfume de frutas, flores, folhas, madeiras, resinas dos jardins suburbanos, da subida da Tijuca, das chácaras de São Clemente, das maresias da baía e dos ares salgados de Copacabana. A permanência dessa vida passada que me entrou pelos olhos ouvidos narizes é que ponho nesta minha Glória para onde mudei com o casamento, a 28 de junho de 1943. Antes eu tinha morado em Copacabana, Tijuca, Ipanema, Urca e Laranjeiras.* Sempre pondo nesses bairros minhas impressões meninas.
— Que horas são?
— São horas de ter vergonha.
E é de hoje? esse meu namoro com a paisagem natural, civil e humana do Rio. Por mais longe que olhe dentro em mim — vejo-o presente. Essa cidade, lembro-a de sempre. Mais particularmente em quadros que ficaram fixados pela memória — indeléveis fotografias instantâneos passados. Dentro da noite de veludo azul-marinho chego de Minas e contemplo, olhos ávidos, as ruas iluminadas a gás sem ouvir o tílburi que desliza rodas de borracha ao longo do Mangue de tinta negra, minhas mãos num joelho de meu pai, num joelho amigo do dr. Duarte. Na manhã de Visconde de Figueiredo a primavera toda úmida tem gosto ácido e cheira a flores de laranjeira, presa nas mãos de tia Eugênia Ennes — cujo vulto rosa e branco, na varanda tilintante, também se dissolve como a serralheira de prata dentro do banho de ouro do dia que chegou dos lados do Estácio. Na tarde açucarada de Aristides Lobo os bondes sobem e descem, derramando dos estribos pencas de baleiros tabuleiros multicores cheios do gosto verde da hortelã, claro das tangerinas, cortante dos abacaxis e pastoso dos nugás. Na treva de São Cristóvão, janela aberta sobre o Campo, inauguro luares argênteos e descubro o bólide ciclope do Cascadura (direto) cortando a escuridão me fazendo estremecer primeira vez à revelação repentina da eterna solidão.
Esse encanto pelo Rio, eu o encontro em cada bairro que morei. Infância em Visconde de Figueiredo e Aristides Lobo. Depois Haddock Lobo e São Cristóvão. Voltei a Minas para ficar meus anos de faculdade, meus anos de indecisão. Fui à aventura do Oeste Paulista. Reconquistei minha Beira-Mar definitivamente, quando para aqui voltei no dia 10 de março de 1933. Desde meu nascimento subindo e descendo o Caminho Novo — morei vinte anos em Minas. Dois, em São Paulo. Finalmente cinquenta e três nesta Muy Leal e Heroica. Sou mineiro dos que dizem — mineiro graças a Deus! Mas por minha mãe tenho origens paulistas, montanhesas, baianas e cearenses. Por meu pai, maranhenses e outra vez cearenses. Sou um brasileiro integrado na tricromia da raça. Com tantos sangues provincianos de que me orgulho tenho aspiração a mais: quero ser ainda — carioca amador. Ao mesmo jeito de meu amigo o pernambucano Luís Jardim. E o que é? o Rio para mim. São aquelas quatro paisagens que encheram minha infância e albores da adolescência e que têm cor azul-escuro noturno, ouro rosazul e prata dos seus dias gradis; som de ondas batendo, notas argentinas de vareta raspada contra serralherias e as sete da escala do siringe de tantos tubos dos doceiros passando. E seu velho perfume de frutas, flores, folhas, madeiras, resinas dos jardins suburbanos, da subida da Tijuca, das chácaras de São Clemente, das maresias da baía e dos ares salgados de Copacabana. A permanência dessa vida passada que me entrou pelos olhos ouvidos narizes é que ponho nesta minha Glória para onde mudei com o casamento, a 28 de junho de 1943. Antes eu tinha morado em Copacabana, Tijuca, Ipanema, Urca e Laranjeiras.* Sempre pondo nesses bairros minhas impressões meninas.
'Chego aos 80 em um estado maravilhoso'
Esse é Mario Vargas Llosa de corpo inteiro, o escritor de ficções e o homem. Em março vai fazer 80 anos; sua vida pessoal passou por uma transformação radical, que inclui uma nova relação sentimental que deu mais o que falar do que ele imaginou, e agora sua editora, Alfaguara, anunciou que no aniversário do Prêmio Nobel de Literatura peruano será publicado em todo o mundo de língua espanhola seu mais recente livro, o romance Cinco Esquinas. Nesse trabalho, como em Conversa no Catedral ou A Cidade e os Cachorros, Vargas Llosa retorna à sua terra natal, o Peru, o fundamento de sua narrativa e o grande pesar e grande alegria do seu coração e da sua memória. Esta entrevista aborda os principais temas de sua escrita, para que serviu e serve escrever para ele, e aspectos atuais da sua vida pessoal. Foi concedida a EL PAÍS, o jornal para o qual colabora há anos, no último domingo no apartamento onde vive em Nova York, onde leciona na Universidade de Princeton. Antes e depois da conversa, que é reproduzido aqui sem edição e sem cortes, o personagem e a pessoa se unem em um exercício extraordinário de memória, de pequenos detalhes, de histórias que descreve, oralmente, com a mesma precisão conhecida em sua obra completa: com extrema eficácia narrativa e descritiva.
Leia entrevista
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sábado, outubro 24
Os livros móveis
Impresso no final do século XVI, esse pequeno livro da Biblioteca Nacional da Suécia é um exemplo de seis livros unidos em uma única publicação, mas que podem ser lidos individualmente com a ajuda de seis fechos perfeitamente colocados.
Mãe leitora
Heise Presse |
Minha mãe salvara vários livros do confisco e os trouxera para casa para mim. Os livros ficavam atrás de uma tábua solta na parede do meu quarto. Era um quarto de sótão com uma pequena janela pela qual eu só podia enxergar se ficasse de joelhos. Eu estudava aqueles livros avidamente, antologias francesas e inglesas, manuais de matemática e histórias da civilização européia. Apreciava livros das classes mais adiantadas e gostava de dominá-los. Minha mamãe passava deveres com estes livros e até testes para eu fazer. Eu adora testes. Amava sua voz enquanto lia meu trabalho e dava-lhe notas e adovarava quando nos debruçávamos juntos sobre meus livros escolares à noitinha depois de ter preparado nosso jantar.E. L. Doctorow, "Deus, um fracasso amoroso"
Escritores jovens
Em entrevista concedida ao “El País”, o escritor britânico Martin Amis, indagado sobre o motivo pelo qual não lê a nova literatura, respondeu: “É senso comum. Ler escritores jovens ou mais jovens do que eu não é uma maneira eficiente de usar o tempo de leitura”. Recebi o link da entrevista por e-mail, enviado por um leitor desta coluna, que fez a provocação perguntando minha opinião sobre o assunto.
Posso falar da minha experiência como jovem autor, claro. Comecei a escrever aos 12 anos. Meu primeiro romance publicado, “Suicidas”, foi escrito entre os 16 e os 19. Todo mundo dizia que tinha tudo para dar errado. Era um livro policial adulto, com temática de suicídio, com mais de quinhentas páginas, escrito por um garoto cheio de sonhos. Acontece que o livro chamou atenção dos jurados do Prêmio Benvirá de Literatura justamente por essas características incomuns. Lembro-me até hoje da ligação que recebi do Thales Guaracy, editor da Benvirá na época, para informar que meu romance de estreia seria publicado. De forma bem direta, ele disse: “Você quer mesmo ser escritor? Você é jovem, escreve algumas infantilidades, peca pelo excesso, precisa ser lapidado, mas tem talento. Vou ajudá-lo a melhorar.”
O editor estava certo. Minha inexperiência pesava. É natural que um escritor jovem seja um escritor em formação, descobrindo seus interesses, sua voz própria, seu estilo. Trágico imaginar que alguém aos vinte e poucos anos tenha chegado ao auge — o que ele fará com os anos de vida que lhe restam?
Além disso, é inegável que há certa bagagem que só a idade traz. A boa literatura investiga a alma humana e seus desejos mais recônditos. Com o avançar da idade, o escritor vai ganhando vivência, adicionando impressões e reflexões ao seu arsenal criativo, o que ajuda na construção de uma literatura mais sólida e profunda. Costumo brincar que não sou a pessoa mais apta a narrar as angústias de um casal de meia-idade em crise no casamento, pois não cheguei à meia-idade e jamais fui casado. Naturalmente, é um exagero. Num exercício criativo, qualquer escritor pode se colocar na posição do outro e imaginar suas sensações e atitudes.
Outro aspecto de “imaturidade” do jovem escritor está na linguagem. A linguagem é a principal ferramenta da literatura. Ter passado pelas mãos de um bom editor foi essencial para o amadurecimento do meu texto. Com o Thales, aprendi a limar adjetivos e advérbios excessivos; diálogos repetitivos; descrições deliciosas, porém inúteis ao texto; e aprendi principalmente a valorizar a força da palavra escrita. Esse também é um aspecto que se constrói com os anos, através da leitura de mais livros e do exercício diário da escrita.
Apesar do que foi dito acima, Martin Amis está errado ao julgar “perda de tempo” ler os mais jovens. Acompanhar o processo de formação e o desenvolvimento de um escritor é muito interessante, uma maneira eficiente, sim, de entender a construção de sua obra. Por vezes, justamente por ser jovem, o escritor tem uma visão muito particular e especial de determinado ponto ou momento da vida. A inocência e a ambição juvenis também são elementos interessantes que temperam algumas narrativas de estreia, cheias de ousadia e livres da pressão da mídia, das editoras e dos leitores. Não bastasse, há casos especiais e raros de pessoas de vinte e poucos anos que escreveram verdadeiras obras-primas, como Emily Brontë (falecida aos 30 anos), Castro Alves (24 anos), Álvares de Azevedo (21 anos) e Sylvia Plath (30 anos).
Em sua declaração, Martin Amis continua: “O modo de julgar o valor de um romance, uma pintura ou um poema é quanto perdura. O único juiz de uma obra é o tempo. Se um livro perdura um século, provavelmente é bom; se dura dez anos, não muito. Então, costumo ler obras de autores mortos porque suas obras sobreviveram, enquanto que ler o romance de um autor de 25 anos é uma aposta... e não muito sensata.”
Essa observação também me parece um tanto enganada. Ora, afinal, ler um livro é arriscar-se, não? A graça da literatura é justamente o risco, a descoberta. Quando fui publicado, prometi a mim mesmo nunca deixar de atentar ao que vem sendo produzido de novo. Graças a pessoas inteligentes e interessadas na produção dos jovens autores é que a maioria dos escritores conseguiu começar sua carreira. Eu mesmo não teria conseguido nada sem a curiosidade do meu editor, Thales Guaracy, sem a sensibilidade do querido Clifford Landers, entre tantos outros que me abriram portas. Hoje em dia, sempre que posso, faço questão de ler originais e aconselhar amigos em início de carreira.
Uma pessoa que não lê o que se produz de novo, o que é escrito por jovens autores, é uma pessoa desligada de seu tempo. Ler os clássicos é essencial, óbvio. Mas ignorar a produção contemporânea, com frescor juvenil, é mania ultrapassada, com toques de conservadorismo barato e com cheiro de mofo. Na sua estante, tem espaço para todo mundo. Eis aí meus dois centavos sobre o assunto.
Raphael Montes
Posso falar da minha experiência como jovem autor, claro. Comecei a escrever aos 12 anos. Meu primeiro romance publicado, “Suicidas”, foi escrito entre os 16 e os 19. Todo mundo dizia que tinha tudo para dar errado. Era um livro policial adulto, com temática de suicídio, com mais de quinhentas páginas, escrito por um garoto cheio de sonhos. Acontece que o livro chamou atenção dos jurados do Prêmio Benvirá de Literatura justamente por essas características incomuns. Lembro-me até hoje da ligação que recebi do Thales Guaracy, editor da Benvirá na época, para informar que meu romance de estreia seria publicado. De forma bem direta, ele disse: “Você quer mesmo ser escritor? Você é jovem, escreve algumas infantilidades, peca pelo excesso, precisa ser lapidado, mas tem talento. Vou ajudá-lo a melhorar.”
Além disso, é inegável que há certa bagagem que só a idade traz. A boa literatura investiga a alma humana e seus desejos mais recônditos. Com o avançar da idade, o escritor vai ganhando vivência, adicionando impressões e reflexões ao seu arsenal criativo, o que ajuda na construção de uma literatura mais sólida e profunda. Costumo brincar que não sou a pessoa mais apta a narrar as angústias de um casal de meia-idade em crise no casamento, pois não cheguei à meia-idade e jamais fui casado. Naturalmente, é um exagero. Num exercício criativo, qualquer escritor pode se colocar na posição do outro e imaginar suas sensações e atitudes.
Outro aspecto de “imaturidade” do jovem escritor está na linguagem. A linguagem é a principal ferramenta da literatura. Ter passado pelas mãos de um bom editor foi essencial para o amadurecimento do meu texto. Com o Thales, aprendi a limar adjetivos e advérbios excessivos; diálogos repetitivos; descrições deliciosas, porém inúteis ao texto; e aprendi principalmente a valorizar a força da palavra escrita. Esse também é um aspecto que se constrói com os anos, através da leitura de mais livros e do exercício diário da escrita.
Apesar do que foi dito acima, Martin Amis está errado ao julgar “perda de tempo” ler os mais jovens. Acompanhar o processo de formação e o desenvolvimento de um escritor é muito interessante, uma maneira eficiente, sim, de entender a construção de sua obra. Por vezes, justamente por ser jovem, o escritor tem uma visão muito particular e especial de determinado ponto ou momento da vida. A inocência e a ambição juvenis também são elementos interessantes que temperam algumas narrativas de estreia, cheias de ousadia e livres da pressão da mídia, das editoras e dos leitores. Não bastasse, há casos especiais e raros de pessoas de vinte e poucos anos que escreveram verdadeiras obras-primas, como Emily Brontë (falecida aos 30 anos), Castro Alves (24 anos), Álvares de Azevedo (21 anos) e Sylvia Plath (30 anos).
Em sua declaração, Martin Amis continua: “O modo de julgar o valor de um romance, uma pintura ou um poema é quanto perdura. O único juiz de uma obra é o tempo. Se um livro perdura um século, provavelmente é bom; se dura dez anos, não muito. Então, costumo ler obras de autores mortos porque suas obras sobreviveram, enquanto que ler o romance de um autor de 25 anos é uma aposta... e não muito sensata.”
Essa observação também me parece um tanto enganada. Ora, afinal, ler um livro é arriscar-se, não? A graça da literatura é justamente o risco, a descoberta. Quando fui publicado, prometi a mim mesmo nunca deixar de atentar ao que vem sendo produzido de novo. Graças a pessoas inteligentes e interessadas na produção dos jovens autores é que a maioria dos escritores conseguiu começar sua carreira. Eu mesmo não teria conseguido nada sem a curiosidade do meu editor, Thales Guaracy, sem a sensibilidade do querido Clifford Landers, entre tantos outros que me abriram portas. Hoje em dia, sempre que posso, faço questão de ler originais e aconselhar amigos em início de carreira.
Uma pessoa que não lê o que se produz de novo, o que é escrito por jovens autores, é uma pessoa desligada de seu tempo. Ler os clássicos é essencial, óbvio. Mas ignorar a produção contemporânea, com frescor juvenil, é mania ultrapassada, com toques de conservadorismo barato e com cheiro de mofo. Na sua estante, tem espaço para todo mundo. Eis aí meus dois centavos sobre o assunto.
Raphael Montes
sexta-feira, outubro 23
Os livros vivos
Robert Romanowicz |
Tenho encontrado bastante pessoas maçantes e vazias como livros ruins, e muitos livros tão vivos como pessoas cheias de flama e sabedoria. (...) Não gosto dos homens que falam como um livro, mas adoro os livros que falam como um homemClaude Roy
Por mais leitura e educação
Educação e cultura são dois aspectos essenciais para a construção de uma sociedade melhor, e foi pautado por esses temas tão importantes que a Associação Viva e Deixe Viver nasceu e se desenvolveu. São 18 anos recém-completados de atuação em hospitais de oito Estados do Brasil, levando mais cultura, por meio da contação de histórias e brincadeiras, para crianças e adolescentes.
O trabalho do Viva é orientado por uma atuação séria e comprometida dos contadores de histórias que passam por processos de treinamento e capacitação para ajudar (e humanizar) o trabalho de profissionais da saúde e o tratamento dos pacientes.
Levar alegria e conhecimento ao ambiente hospitalar é, certamente, um desafio. Uma missão que requer constante atenção e aprimoramento para atuarmos com seriedade e respeito dentro das instituições.
Algo que considero ser de extrema importância neste processo é ouvir a criança. Por isso, costumo dizer que quando nossos pequenos pacientes dizem que não querem escutar uma história já estamos contribuindo para o bem-estar e a autoestima deles. Mais do que promover a contação de histórias, nossos voluntários sabem que têm uma missão muito mais relevante: respeitar a vontade das crianças. Isso é algo que sempre reforçamos nos cursos de formação e reciclagem que oferecemos todos os anos na sede do Viva.
Como o passar do tempo, notamos que faltava conteúdo adequado para falar sobre a prevenção da saúde e não apenas sobre a doença. Necessidade que resultou na criação da Editora Viva e Deixe Viver, com a missão de lançar publicações infantis sobre a cultura e as histórias de nosso Brasil. Temos um acervo extenso de publicações que foram desenvolvidas especialmente para a contação de história nos hospitais.
Sempre reforçando o nosso compromisso com a promoção da leitura, buscamos lançar títulos em parceria com diversos autores. O mais recente, a coleção de livros Eu, a Célula, escrito e ilustrado por Dulce Rangel, é um trabalho excepcional para estimular as crianças a adotar cuidados importantes com o próprio corpo, mesmo quando não estão doentes.
Em uma sociedade em que as pessoas estão cada vez mais distantes umas das outras, o voluntariado busca oferecer benefícios para todos. A arte de contar histórias pode melhorar a relação entre pessoas e traz consigo uma série de benefícios para todos os participantes: com uma boa história, um bom conteúdo e uma boa narração, conseguimos sensibilizar a criança e os pais.
Prova disso são os resultados de diversas pesquisas que realizamos nos últimos anos. O estudo Perfil das Crianças atendidas no Hospital Menino Jesus, realizado pela Fundação Itaú Social, aponta que 100% dos entrevistados disseram acreditar que a contação de histórias ajuda a melhorar o bem-estar da criança ou adolescente. A atuação dos contadores também auxilia no relacionamento entre pais e filhos: 98% consideram a contação de histórias um caminho de aproximação e 95% acredita que a leitura ajuda no relacionamento entre a figura paterna e os filhos. São números que comprovam que estamos empoderando o pai para que ele seja terapeuta de seu próprio filho. Eles levam os textos, leem para as crianças e depois nos mostram relatórios.
A experiência e o aprendizado que a Associação fornece para a contação de histórias também consegue transcender as paredes dos hospitais em que os voluntários do Viva atuam, de acordo com pesquisa realizada pela Qualibest. Para 48% dos voluntários, os conhecimentos e informações são utilizados e transmitidos em outros espaços, que não ONGs ou associações.
Ao longo de nossa história, já realizamos diversos projetos que contaram com o apoio dos Ministérios da Saúde, da Educação e da Cultura. Como resultado dessas iniciativas, os números são positivos: 832.186 crianças e adolescentes foram atendidos; 628.776 familiares foram impactados e 628.776 profissionais da saúde auxiliados.
Quando eu vejo educação e saúde em sintonia, sei que estamos falando de grandes possibilidades de promovermos, de fato, uma virada em nossa sociedade. Ainda segundo a pesquisa da Qualibest, o trabalho de nossos voluntários, caso fosse remunerado, demandaria um valor adicional de R$ 2,5 milhões. Penso que são dados tão explícitos que comprovam a importância de buscarmos constantemente políticas públicas que apoiem projetos como o Viva.
Só assim é possível fazer nascer histórias como a da Mary Pietro, uma menina que conheci na AACD quando ela tinha apenas quatro anos e estava em tratamento. Aos oito anos, ela me pediu um livro e eu a presenteei com O Mundo de Sofia, que despertou o seu interesse por filosofia.
Hoje, aos 22, está fazendo faculdade de jornalismo e já está escrevendo o seu segundo livro.
Valdir Cimino, presidente da Associação Viva e Deixe Viver
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