Estava eu em busca de emprego, aos 18 anos e ao final de um período de estudos conturbados no colégio, repeti duas vezes o mesmo primeiro colegial, na mesma época em que descobria o rock e o "lelegol" na porta da igreja do Embaré na companhia de amigos que mantenho até hoje. Precisava trabalhar, ter uma renda que ajudasse a pagar uma faculdade de arquitetura. Sempre desenhei bem e achava que a arquitetura era mais importante do que ser ilustrador, pelo menos era o que eu acreditava naquela altura, hoje não mais. Também buscava o emprego por pura falta de dinheiro. Meu pai teve uma falência múltipla decorrente do vício do jogo, e colocou a nossa família numa situação delicada, anos antes, quando era pré-adolescente.
Pois lá ia eu caminhando sem grandes planos, entrando nos lugares que achava ter alguma afinidade, munido da minha pasta de desenhos debaixo do braço, que era o meu currículo, meu mesmo, porque só tinha desenhos lá dentro. Preenchi fichas de emprego em vários lugares, um dos primeiros foi uma agência de publicidade, fui recusado por não ter experiência, no que respondi: "Mas se não começar aí que não terei mesmo". Tendo o silêncio como resposta continuei tentando, lojas de departamento, locadoras de filme e até de equipamentos fotográficos.
Uma das últimas tentativas foi uma simpática livraria no coração do bairro do Gonzaga [na cidade de Santos, no Litoral Paulista]. Não apenas simpática, ela também havia me salvado de uma enrascada, quando no meio de uma matinê no cinema que fazia parte do complexo onde ficava esta livraria estourou uma briga feia entre moleques, eu incluído. Fugi em disparada para dentro da livraria, que se chamava Iporanga (Rio Bonito, em Tupi), despistando a molecada.
Também nessa livraria descobri as HQs, Príncipe Valente, Flash Gordon e Asterix, para citar alguns. Estava no caixa da livraria um cabeludo de óculos, fui com a cara dele na hora.
Como não tinha telefone deixei um de recados. Alguns dias depois a Dona Cida, a vizinha, me avisa que fui chamado para trabalhar. Fiquei contente e já perguntei quem havia chamado. A vizinha simplesmente falou que um tal de Zé Pedro, Zé...sei lá! Vai e se vira, menino, deixa de ser preguiçoso, palavras gentis da vizinha. Depois de rogar uma praga endereçada à Dona Cida decidi refazer o percurso, inteiro, é claro.
Recebi uma dezena de negativas, quase sempre sem nenhuma emoção. E por último passei na Iporanga. O cabeludo lá estava, também acho que não se lembrou de mim, mas ele cedeu à ladainha e a minha cara de cansado. Falei novamente que gostava de ler e desenhar, que a minha mãe professora me dava livros da série Vaga-Lume para ler em casa, empaquei no caixa da livraria falando pelos cotovelos. No meio do monólogo o Luigi Marnoto, esse é o seu nome, me interrompe e fala pra eu começar no dia seguinte, mesmo sem exatamente precisar de um novo funcionário. Entrei no vestibular para a Arquitetura, o Luigi quebrou o meu galho permitindo dividir meu horário para que pudesse cursar as aulas à tarde, gente fina, o cabeludo.
A vida na livraria me interessava muito mais do que o curso, além do trabalho desenvolvi amizade com o Luigi e outros caras que mais ou menos me ajudaram a entender um monte de coisas, dos livros e da vida. Ao final do primeiro ano como balconista me vem a proposta inusitada, a de entrar de sócio da Iporanga. Passei uns quatro anos sem receber, repassando o dinheiro que compraria uma cota da casa, entramos eu e o César Luiz Gonçalves da Costa, um também amigo da livraria, que trabalhava em um banco na semana e ajudava os Marnotos todos os dias, após o expediente, grande figura, o César. Essa era a minha nova vida, desde os 19 anos, habitando uma livraria de rua, em Santos. Abandonei a faculdade logo depois, mantendo sempre o desenho nas brechas, e mergulhei no ofício de livreiro, orgulhando certamente os avós árabes, eu tocava um tipo de armarinho. O Luigi e o César eram mais velhos, o primeiro dez anos, e o segundo, uns 15. Foram meus orientadores, o Luigi dionisíaco, o César, metódico, os dois ótimos caras.
Mas as aulas intensivas do Luigi em botequins prevaleceram sobre o sempre ótimo caderno da Gazeta Mercantil que o César me passava às sextas, contendo o ótimo caderno Fim de semana. E numa dessas noitadas, depois de algumas rodadas de chope, a revelação vem. O Luigi comenta, sempre distraído que é, de como foi incrível o meu começo na Iporanga, coisa maluca que foi. Claro que discordei, apenas fui chato, teimoso. No que ele me fala, será então que não te contei? Eu mudo fiquei, olhando pra ele, com a cara de Garopa de freezer, cara que conquistávamos ao final de algumas rodadas de geladas.
Pois bem, ele com a mesma tranquilidade me conta que, da primeira vez em que visitei a livraria, um amigo, o Armando Catunda estava também na livraria, de papo com o Luigi. Vendo o pedido de emprego ele pede o fone de recados e liga, me chamando para que fosse garçom no seu bar em São Vicente, o nome do bar? Zé...Pelin. ZÉPELLIN!
Tudo que contei é verdade, e me faz pensar sempre quando alguém comenta que eu nasci pra ser livreiro, essa história me toma de assalto. Taí o causo, espero que tenham gostado.
José Luiz Tahan, dono da livraria Realejo em Santos
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