domingo, outubro 18

A Cidade dos Livros


Desde a conquista da escrita, poucas coisas modificaram tanto quanto nossa maneira viver, como a popularização dos livros. Na sociedade de consumo a indústria colocou nas mãos de todo o cidadão da classe média, confortos comparáveis somente a que tiveram os imperadores na antiguidade. E é verdade que os automóveis, a refrigeração para os alimentos, os meios de comunicação, a avalanche de informação, os sistemas da provisão de bens ao consumidor, o projeto industrial e o conforto são vantagens notáveis para aqueles que podem ter acesso a elas. Mas poucas coisas foram tão radicalmente inovadoras como ter-se evoluído das bibliotecas medievais restritas, nas quais tinha-se que reter o conhecimento na memória (o livro não podia ser tirado de lá), a menos que fosse o bispo ou o abade, à biblioteca pessoal ou à biblioteca pública próxima e acessível.

Ler não é necessariamente uma garantia de sensatez e sabedoria. Muitos confundem a capacidade de soletrar, de encadear as sílabas, de decifrar um texto, com a arte de ler. Mas a leitura verdadeira consiste em liberar a carga de emoção, a imaginação, sensibilidade, sentido, e o ritmo que há em um texto, e os textos mais ricos são certamente os textos literários. Toda a língua é inicialmente um exercício dos sons e sua origem é confundida com a música. E a escrita é uma invenção tardia, já que toda a escrita consiste em extrair sons.

Por essa razão, muito antes da técnica para decifrar a escrita, éramos criaturas orais, e se enganam aqueles que pensam que a tradição oral é um estágio ultrapassado da cultura, que agora nós estamos na época da memória escrita. Estas duas tradições, a verbal e a escrita são complementares, e não podemos renunciar a nenhuma das duas, já que será necessário sempre o som das palavras para apreciar o enigmático prazer da leitura.

É compreensível. A humanidade aprendeu falar milênios antes de aprender a escrever. Todo a humanidade fala e somente alguns seres humanos dedicam-se à escrita como atividade fundamental. Nós escrevemos mais para os oradores do que para escritores. E os maiores autores da história foram aqueles que estiveram em contato com seu público através da língua falada, seja no campo da poesia épica, declamada ante suas audiências, da poesia dos trovadores, cantada nos pátios dos castelos, ou do teatro, representada ante numerosa platéia. Significa que autores como Homero, Sófocles, Shakespeare, Oscar Wilde e Bernard Shaw, estavam em contato contínuo com o público, sentindo-o vibrar ao ritmo de suas criações, se alimentado da linguagem desse público, a quem se destinavam seus trabalhos.


Hoje se discute se o livro como objeto físico vai perdurar, e sobre isso, todas as hipóteses são arriscadas. O poeta Humberto Marín recorda que chegou a crer que realmente os livros iam ser substituídos pelas telas eletrônicas, até o dia em que soube que Bill Gates havia publicado um livro. Só esse feito leva-nos a pensar que a saúde futura do livro está garantida.

Contudo ainda pairam algumas preocupações, e a mais importante é que a estrutura do livro de papel requer tal consumo da matéria vegetal, que parece pouco provável que no futuro continuem as edições gigantescas de qualquer livro que se publica. Talvez chegue o dia em que somente os livros clássicos, aquele que são de valor comprovado para povos de muitas culturas e de muitas idades distintas, mereçam edições em papel. Para todo o resto haverá livros eletrônicos, menos agradáveis em termos naturais, embora mais adequados em termos ambientais. Mas o livro, como nós o conhecemos, é tão belo, tão prático, tão portátil, tão simples de usar-se, tão dócil, tão misterioso, que nós podemos dizer que com seu achado a humanidade encontrou um objeto mágico, algo que lhe custará a renunciar.

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Erich Wolfsfeld (1884-1956) - The writer, oil on canvas, 74,9 x 54,6 cm.
Erich Wolfsfeld (1884-1956)

Todo fato importante de nossa vida merece transformar-se numa história, e poucas coisas causam tanto prazer e respeito como ouvir a narração de um bom fato histórico ou de um evento familiar. Uma grande leitora amiga minha disse-me que o livro ideal é aquele que não é tão somente maravilhoso, mas um que nunca se acabe.

Uma cadeira não é mais do que uma cadeira, uma rosa não é mais do que uma rosa, mas um livro é sempre muito mais que um livro, muito mais que um objeto, muito mais que um volume composto por vários planos nos quais são impressos caracteres. Um livro pode ser viagens, crimes, descobertas, guerras, incêndios, amores inesquecíveis, naufrágios, milagres, medos, semanas inteiras de beleza, de terror ou de sabedoria. Neste mundo há muitas coisas maravilhosas e a leitura é somente uma delas.

Ousaria eu dizer que ler é melhor do que assistir televisão? Claro que sim, ler é melhor! Porque ler é uma atividade criativa e assistir televisão nem sempre o é. Durante um breve tempo, durante a hora e meia que dura um filme, e se o filme for bom, ver televisão pode ser um exercício criativo. Mas aquele que assiste televisão por muitas horas, logo se converte em um receptor ocioso de informações que nem sequer se processam, daí a estranha sensação de vazio que se tem quando se passa horas vendo televisão. Voltaire dizia que a melhor forma de ser tedioso é dizer tudo de uma vez, e esse é talvez o problema da televisão, que nos dá tudo, que não deixa qualquer coisa à imaginação, à criatividade pessoal. Dá-nos as palavras, os cenários, os rostos e as ações. Em um filme, tudo isso precisa ser controlado de modo que nós contribuamos com a sutileza, a emoção e o sentimento. Mas esses compridos e inúteis programas que não tem sequer a tentação de ser arte, que não são mais do que mercadorias absurdas para encher o tempo alheio, não interagem delicadamente com nossos sentidos, invadindo-nos com trivialidades e estupidez sem o menor conteúdo artístico, às vezes sem a menor preocupação estética.

Pois um livro é como uma partitura, uma série de sinais em um fundo branco, e somos nós quem colocamos a música. É bom dizer, em nossa homenagem, que um bom leitor é como um intérprete musical elegante, como um pianista ou um violinista capaz de converter em sons gloriosos, os sinais estáticos que estão na página. Quando fechamos o livro, lembramos dos barcos, dos cavalos, dos castelos, dos tesouros, das donzelas suspirando nas sacadas, lembramos das batalhas, das lanças perfurando os peitos, das carruagens caindo no abismo, dos incêndios, dos assassinatos, dos tigres. Mas o mais espantoso é que no livro não havia nada disso. No livro havia umas letras e palavras. Nós não nos recordamos das letras e palavras, nós não nos recordamos de uma página impressa, mas de uma sucessão de aventuras e de infortúnio, dos povos, dos cenários, dos objetos e dos acontecimentos.


Se a televisão fosse um instrumento eficaz de ensino, seríamos a geração mais sábia da história, e todos nós seríamos eruditos. Dia e noite nós somos expostos à informação sofisticada em todos os assuntos, história, biologia, engenharia, física, os programas sobre a natureza são de uma meticulosidade e de uma beleza extraordinária. O surpreendente é que nós não recordamos quase nada de tudo o isso. Um intervalo publicitário deveria ser o bastante para que nós fôssemos interados das virtudes de um produto. Mas os publicitários sabem que embora uma marca de refrigerante tenha sido anunciada por setenta anos, basta um mês sem anunciar e as vendas cairiam dramaticamente. Tão fraco parece ser o efeito no longo prazo dessas telas, que às vezes almas ingênuas chegam a propô-las como os educadores do futuro. Talvez o segredo verdadeiro das palavras está em sua maneira de fixar na memória. Você deve ter observado que nós somente recordamos no longo prazo, dos sonhos que convertemos em palavras. Os outros se apagam com uma facilidade espantosa.

Ao fechar o livro nós não recordamos as palavras, mas o que as palavras contém. Platão já havia sugerido que a linguagem é o mundo, e assim dizia Borges em seus versos sobre o argumento do pensador grego:

Se como o grego afirma no Crátilo
O nome é arquétipo da coisa,
Nas letras de rosa está a rosa
E todo o Nilo na palavra Nilo.


Nós lemos “a rosa” mas nós não nos recordamos das quatro letras pretas e sim do vermelho vibrante ou cor-de-rosa das pétalas perfumando o jardim ou na mão de uma menina. Nós estamos então no ponto de compreendermos o segredo da linguagem, essa invenção abstrata, que não somente copia o mundo, mas que às vezes parece substituí-lo.

E também é por isso que nas mãos de quem não aprendeu a arte ler, um livro é somente o que o Hamlet dizia: um monte de palavras, uniformes, quietas, monótonas, que dão forma às linhas de uma página. Para aquele que ainda não foi agraciado com a mágica e a paixão da leitura, um livro é somente “palavras, palavras, e mais palavras”. Para quem se deleita com a beleza da língua, a nitidez das imagens, o rigor dos pensamentos, o vôo da fantasia, a paixão da história, a verdade dos personagens, um livro é tão vasto quanto uma cidade, tão misterioso quanto um ser humano, tão intenso quanto uma vida.

Isso é algo que a televisão não sabe fazer. Um livro é composto de uma única substância infinita, e renasce com cada leitor. Uma televisão é uma coisa em que tudo acontece e tudo desaparece. É menos do que um espelho. Um poeta disse certa vez, falando dos espelhos:

Tudo acontece e nada se registra
Naqueles armários cristalinos.


Mas ao menos a imagem do espelho somos nós mesmos, forçando-nos a nos vigiar, a pensar, mostrando-nos como nós nos tornamos doentes, como nós envelhecemos, sendo uma resposta muito franca do que lhe interrogamos. Já a televisão não fala para nós, não segue nosso ritmo, impõe-nos o seu, e quando nos distraímos, continua falando para o nada. A televisão, como existe hoje, é feita para o ouvido. Cada livro é um mundo diferente. E dialoga com cada um de seus leitores, e diz a cada um, coisas que ele não poderia dizer aos demais. Na realidade, o que nós recordamos dos livros é, secretamente, o que nós somos.

Há uma escola filosófica que sustenta que o universo é fruto de nossa percepção, que se vemos as coisas é porque elas emanam de nós. Um escritor francês, Leon Bloy, disse certa vez: “Se eu vejo a Via Láctea, é porque ela existe verdadeiramente, na alma”. De acordo com essa filosofia, quando nós chegamos a uma cidade, nós estamos inventando-a, e um escritor famoso, jogando com essa idéia, quando viu Nova Iorque pela primeira vez, virou-se para a pessoa que o acompanhava e disse-lhe: “Que bem me ficou...”. Essa teoria, que é indemonstrável e escandalosa no mundo físico, é entretanto rigorosamente verdadeira na cidade das palavras. “Aquele que pronuncia uma frase de Shakespeare, disse Borges, é, literalmente, Shakespeare”. E aquele que lê uma obra de qualquer autor, e se comove, e conserva os sentimentos, as paisagens, os personagens e as maravilhas da obra, pode perfeitamente exclamar, sem faltar com a verdade: “Que bem me ficou...”.
William Ospina na abertura da 2ª Ata Internacional da Língua Espanhola em Bogotá, na Colômbia. (Tradução e adaptação feita por Pedro Biondo)

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