quinta-feira, julho 14

Livros demais: prazer e dever

Moramos em um apartamento grande, comprado quando os filhos ainda estavam conosco. Agora grande demais. Então, decidimos tentar vender e comprar algo um pouco menor, mais manejável. Com as atuais circunstâncias de mercado, não está fácil. Mas queremos fazer isso.

Mudar de uma casa maior para outra menor significa desapegar, diminuir o peso e o tamanho da carga.

A verdade é que, nesses anos todos, o que mais cresceu foi nossa biblioteca. Como eu e Maria José somos ligados ao mercado editorial, digo sempre que livro, na nossa casa, não dá filhote: dá ninhada. Só na semana passada, por exemplo, o correio entregou dois novos livros do filósofo Gabriel Zaid, gentilmente enviados por ele. Como sou um admirador (e tradutor) do Zaid, Cronología del progreso e El secreto de la famasaltam para o topo da pilha. Some-se ainda o exemplar de O exílio do homem cordial, ensaio sobre Sérgio Buarque de Hollanda escrito pelo meu amigo João Cézar de Castro Rocha. Também para o alto da pilha, além do romance Cabo de guerra, da Ivone Benedetti, que tem como tema os “cachorros” infiltrados pelos militares nas organizações de esquerda durante a ditadura.


Assim, apesar da tentativa sempre presente de esvaziá-las, as prateleiras vão se enchendo, e todos os cômodos da casa acabam tendo que ceder espaço para os livros. Apesar de sermos leitores compulsivos desde a adolescência e sempre termos orgulho de nossos livros, não temos “espírito de colecionador” e muito menos disposição de construir uma biblioteca de modo sistemático.

Dessa maneira, no decorrer dos anos, várias “baixas” foram sendo dadas. Os livros de antropologia, por exemplo. Fiz uma lista de tudo que sabia que não mais leria ou releria, e mandei para a biblioteca do PPGAS – Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional / UFRJ, onde fiz o mestrado. Falei com a bibliotecária que escolhesse os que queria. Só tinham que conseguir mandar buscar. Foi quase tudo, salvo os muito comuns, dos quais já havia vários exemplares por lá. Depois fiz uma grande lista de livros para Maria Zenita, bibliotecária que na época chefiava o Departamento de Bibliotecas Públicas da Prefeitura Municipal de São Paulo, escolher os que achava úteis para incorporar ao acervo do sistema de bibliotecas públicas da cidade. Quis todos.

(Diga-se de passagem, fico sempre com pena das pobres bibliotecárias que fazem campanhas de doação de livros, diante da penúria de recursos para adquiri-los. Na maioria absoluta dos casos, o que as pessoas fazem – conscientes ou não – é tirar o livro velho e inútil, o lixo, de casa, e deixar na porta das bibliotecas. Já vi cada coisa...). Mas não era esse o caso. Modestamente, os livros eram bons e tive o cuidado de perguntar se seriam bem-recebidos.

Mas não há como evitar que as prateleiras voltem a se encher.

Outra solução são os sebos. Só que, várias vezes, levo um tanto e em vez de vendê-los (pelos poucos caraminguás que os donos dos sebos oferecem), acabo trocando. Essa de trocar seis por meia dúzia não é uma boa para quem quer diminuir a quantidade.

Não sabemos quantos livros temos. Nunca consegui catalogá-los e nem mesmo contá-los. A arrumação é precária, já que a preguiça nem sempre faz que o livro tirado da prateleira volte ao mesmo lugar.

E, claro, há muitos e muitos não lidos.

Livros recebidos de presente, enviados pelas editoras, comprados no impulso. Coisas que os que gostam de ler conhecem muito bem.

Outro dia, ponderando essa tarefa sísifica, fui-me interrogando.

Nessas alturas da vida, evidentemente, nem que a única coisa que fizesse até morrer fosse ler, não conseguiria ler (ou reler os que quero) todos que temos. Como diz o Zaid no seu delicioso ensaio, Livros demais, que traduzi e foi editado pela Summus, essa é uma verdade. Absoluta, diria. Existem mesmo livros demais.

No papel de leitor, tenho algumas clarezas.

Leio por prazer, certamente. Aliás, um livro chato só é enfrentado – quando o é – por absoluta necessidade ou interesse profissional ou acadêmico. Mas, mesmo não sendo chatos ou mal escritos, há livros – e são muitos – lidos por razões profissionais e de formação. Nesses casos, o prazer decorre do conhecimento adquirido e do uso que dele se faz.

O “ler por prazer”, entretanto, nunca se esgota em um prazer abstrato, um prazer “metafísico”. Ler responde, sempre, inevitavelmente, a uma apropriação da leitura que passa desde o inconsciente até aquela meio indefinível “bagagem cultural” ou instrumental de percepção do mundo, que faz parte do nosso ser. Nesse sentido específico, a distinção entre “ler por prazer” e “ler por obrigação” é, de fato, não apenas irrelevante, como falsa.

Essa percepção do fenômeno da leitura tem importância variada, e consequências diversas. A primeira, e talvez a mais importante, diz respeito ao ensino da leitura (e da escrita), na escola.

Recentemente, Pedro Almeida, que produz alguns textos bem instigantes sobre o prazer de ler e o trabalho editorial, teceu alguns comentários sobre o assunto, considerando os dados do último Retrato da leitura no Brasil. Particularmente o aspecto das influências – ou não – recebidas pelos entrevistados para que gostem de literatura. Atenção: literatura, não simplesmente leitura.

Essa interpolação de termos (ler = dever # prazer) me pareceu sempre complicada. Certamente, para gostar de literatura escrita é preciso saber ler. Mas o antropólogo em mim lembra: sociedades ágrafas têm literatura, transmitida oralmente.

Assim, na verdade, tratamos de problemas distintos: o primeiro é que, na nossa sociedade letrada e capitalista avançada, saber ler e escrever se torna, cada vez mais essencial; o segundo é “gostar de ler literatura”. As duas coisas não devem ser confundidas.

Se o primeiro aspecto é essencialmente funcional (ler = dever), entretanto, isso não quer dizer que possa ser mecanicamente separado do segundo (ler = prazer). Aprender alguma coisa – seja leitura, tabuada ou mecânica – se transforma em algo insuportável se não houver tanto uma compreensão da necessidade de aprender, seja lá qual for a questão em pauta, como também a descoberta de um prazer (ainda que utilitário) nisso. Como fazer essa simbiose está no âmbito da pedagogia.

Se o professor não está capacitado para transmitir conhecimento de forma eficiente, o fracasso está à porta. É importante reconhecer que o estímulo à leitura de literatura deve ser, realmente, parte disso. A transmissão mecânica de técnicas certamente não proporcionará a ninguém a capacidade de entender, compreender, desfrutar (ainda que utilitariamente) o texto, e muito menos de se expressar por escrito.

Só que despertar o prazer pela literatura não é, necessariamente, o objetivo da leitura. Até porque existem pessoas cujas formas de expressão não passam necessariamente pelo desfrute da leitura. Pode se expressar visualmente, musicalmente, ou... pelos números. Tenho um conhecido levemente disléxico. Ele lê, certamente, mas a leitura de mais de um parágrafo o deixa praticamente nauseado. Entretanto, colocado diante de números, ele os lê, e com uma fluência que revela a minha “dislexia” matemática.

Consideremos, no entanto, que o ensino da leitura – e da escritura – esteja umbilicalmente ligado à leitura de literatura.

Isso se torna particularmente importante com a abertura pedagógica para a aceitação – principalmente na escrita – de normas consideradas “não cultas”. É a polêmica do “ensinar errado”, que volta e meia reaparece na imprensa, inclusive de forma escandalosa. Penso que a utilização mais intensa da leitura das (no plural) literaturas, em paralelo ao ensino do escrever e à compreensão de que “nós pega o peixe” não é “errado”, é fundamental para que se estabeleça um equilíbrio nessa questão. Mencionei literaturas no plural exatamente para que se possa ver como a expressão literária pode incluir falares regionais, e do “falar errado”, mas a percepção da eficácia na comunicação escrita depende também da compreensão e do uso da chamada norma “culta” (não gosto da expressão, com seu tom elitista, como se as demais fossem “incultas” e não apenas diferentes, e a uso aqui tão somente por comodidade). Afinal, a multiplicidade de formas de expressão usadas pelos autores – em particular dos contemporâneos – acrescenta esse repertório aos que os alunos adquirem em casa e na rua, e não se contrapõe à importância do ensino “funcional” da leitura e da escrita (e não esqueçamos que a linguagem técnica, que é um idioleto específico, também faz parte desse universo). Ou será que alguém acha que ler “La Divina Increnca”, do Juó Bananere (Alexandre Ribeiro Marcondes Machado), fará que os alunos escrevam “errado”? E nem falemos da peculiar ortografia que o Mário de Andrade usava...

A exposição bem motivada, dos alunos à imensa diversidade das expressões literárias é que irá construir a ponte entre a obrigação (funcional) e o prazer da leitura, da qual sempre se extraem elementos que enriquecem a percepção do mundo dos leitores.

É por isso mesmo que leremos até o final da vida, mesmo que não consigamos ler tudo que queremos. Leremos, desfrutaremos dessas leituras, ainda que o enriquecimento, com o passar do tempo, seja cada vez mais subjetivo e tenhamos menos capacidade de aplicá-lo no “ser no mundo” de cada um de nós.

Felipe Lindoso

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