Um dia destes estive a falar com um rapaz de quem não sei a idade (chamo-lhe rapaz por causa disso, mas pode ter perto de trinta anos). Pelas poucas conversas que já trocámos, descobri que, embora seja um «escravo» das contas, gosta das letras de um modo muito sério e tem, além disso, bom gosto literário. Na verdade, talvez seja exactamente por trabalhar com números que a sua experiência de leitura é muito diferente da minha – começou pelos autores vivos e agora anda a degustar alguns mortos de respeito, Borges, por exemplo. Sugeri-lhe que lesse Pedro Páramo, de Juan Rulfo, pois pareceu-me que fazia o seu género, mas, como não nos conhecemos bem, espero não ter feito asneira. Sei, contudo, que o lerá mais cedo ou mais tarde, porque me confidenciou que descobriu uma imensidão de autores assim, através de um mero conselho. De qualquer modo, achei graça quando um leitor como ele me contou que começou a interessar-se por livros muito tarde, explicando que uma das suas professoras de Português chegou a expulsá-lo da sala de aula por falta de interesse e que a família não tinha hábitos de leitura, embora comprasse livros do Círculo de Leitores para decorar as estantes. E aqui acrescentou um detalhe fabuloso: que o pai uma vez lhe bateu por ele ter retirado o celofane que cobria um volume de uma dessas colecções (e, violência à parte, vejo nesse acto um respeito enorme pelo livro, que não se podia estragar de maneira nenhuma); ao ouvi-lo narrar esse episódio, consegui ver o rapaz em miúdo a fazer aquela «patifaria»; e depois fui para casa a perguntar-me se não terá sido nesse preciso instante que começou o seu fascínio pela leitura, um mistério que era preciso desvendar: que estaria ali dentro de tão intocável? Já no fim da conversa, ele disse-me uma coisa belíssima: que não entendia como é que algumas pessoas podiam recusar um acto tão generoso como o de um autor ao escrever um livro para tanta gente que não conhece. Ora, é dessa dádiva de tantos que tenho feito as minhas Horas Extraordinárias, mas nunca me tinha ocorrido esta formulação tão simples. Agradeço-a ao rapaz. Se o seu trabalho fossem as letras, em vez dos números, se calhar não teria sido tão claro.
Maria do Rosário Pedreira
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