domingo, julho 31

A literatura brasileira muito além do futebol e do samba



Em meados de julho, todo ano, a linda cidade de Paraty, no estado do Rio de Janeiro, abriga o festival literário mais importante do Brasil. Os casarões de mais de 300 anos da época do comércio do ouro e as ruas de traçado colonial, calçadas de pedras quase assassinas para os tornozelos dos transeuntes, se transformam em uma espécie de radiografia não de todo infiel do panorama do livro brasileiro. É o melhor lugar para tentar descobrir para onde vai a literatura brasileira —se é que vai para algum lugar. Também para saber se os romances e ensaios de hoje ou de depois de amanhã refletem ou refletirão o convulso e depressivo estado que atravessa o país: às portas dos Jogos Olímpicos, com uma presidenta, Dilma Rousseff, afastada de seu cargo por um processo ainda em andamento de impeachment e semi-exilada em seu próprio palácio residencial, e outro presidente em exercício, Michel Temer, à espera de tomar as rédeas do poder de forma definitiva em um mês. Quando a história entra pela porta, a literatura se joga pela janela?

Rodrigo Lacerda (Rio de Janeiro, 1969), editor, historiador e escritor, é um dos romancistas que passeiam por Paraty. É autor, entre outros, de um romance celebrado, Outra vida, no qual relata o desmoronamento de um casamento enquanto espera um ônibus que vai levá-los para fora de São Paulo. Lacerda afirma que o chacoalhada político e social do Brasil “é muito recente para que já apareça nos romances”. Mas acrescenta: “Apesar disso, hoje há um interesse pelos tempos da ditadura, e isso sim se pode aproximar do tema da crise que estamos vivendo, como se se sobrepusessem”. E acrescenta: “Nesta nova queda de autoestima que agora estamos sofrendo, os dois temas se unem na sensação de que estivemos perto de chegar lá, mas que o chão voltou a se abrir e caímos de novo no inferno. O trem passou. Temos que esperar outro. Não tem jeito”.

O escritor acrescenta então outra característica da atual literatura brasileira: “Há alguns anos, uma especialista elaborou um censo dos personagens de ficção e 90% eram homens, universitários, que moravam em grandes cidades (Rio de Janeiro e mais ainda São Paulo) e que tinham problemas típicos dessa classe social. Ou seja: escrevemos sobre nós mesmos”.

Isso é especialmente cruel em um país tão diverso social, racial, geográfica e até climaticamente como o Brasil: uma geografia cruzada de mundos e até de épocas diferentes que se justapõe e se retroalimenta em um território mágico. A vida de um professor da Universidade de São Paulo não tem absolutamente nada a ver com a de um trabalhador sem terra do estado do Maranhão, nem a deste com a de um índio de um dos mil rios amazônicos ou com a de um boiadeiro do Sul ou do Oeste do país.

Luiz Ruffato, de 55 anos, escritor e articulista na imprensa, autor, entre outros, de Eles eram muito cavalos, um romance experimental que descreve, em capítulos curtos e eletrizantes, a vida na interminável São Paulo, tem uma explicação triste: “A ficção atual brasileira reflete os problemas, a vida e as preocupações da classe social que teve acesso aos estudos no Brasil. Cada um escreve sobre sua aldeia, sua cidade, seu entorno, e com isso tenta ser universal. Mas no Brasil, no entanto, não há escritores vindos de outro mundo além do nosso e isso diz muito sobre a desigualdade que impera do país”.



LIVROS, LEITORES E ANALFABETOS


-Habitantes do Brasil: 205 milhões.
-Índice de analfabetismo: o Brasil é o oitavo país do mundo com mais analfabetos (cerca de 14 milhões, segundo dados da Unesco de 2014). 38% dos analfabetos latino-americanos são brasileiros.
-Número de títulos editados: 60.829 em 2014 e 52.427 em 2015 (uma redução de 13,81%).
 -Tiragem média: 4.500 cópias para uma tiragem média inicial a nível nacional.
 -Porcentagem de traduções de línguas estrangeiras: 4.781 títulos traduzidos; 47.646 nacionais (9,11% do total em 2015).
 -Número de editoras: Mais de 750 segundo o último estudo da Câmara Brasileira do Livro.
 -Número de livrarias: 3.095, uma por cada 64.954 habitantes em 2014 (a Unesco recomenda 1 pela cada 10.000). 55% estão no Sudeste, 19% no Sul, 16% no Nordeste, 6% no Centro-Oeste e 4% no Norte.
 -Número de bibliotecas públicas: 6.949 espalhadas nos 26 Estados e no Distrito Federal.
 -Títulos mais vendidos em 2015: ­Ficção: Cinquenta Tons de Cinza , de E. L. James (174.796 cópias). Não ficção: Jardim secreto, de Johanna Basford (719.626 cópias).

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