Tem uma alma de pássaro.
Claro está que nos não referimos ao carrancudo português que, em meio de uma chusma de folhas metodicamente dispostas, passa os dias sentado, com as pernas cruzadas no ponto de reunião da Rua do Ouvidor com o Largo de São Francisco, na Brahma, nas portas dos cafés da Avenida, em toda a parte. Não aludimos tampouco ao grave italiano de bigodeira espessa nem ao "carcamano" que, de bolsa a tiracolo, apregoa uma algaravia "à la diable", a Nôtizia e o Zêculo.
Está sempre a rir, sempre a cantar. Canta o dia inteiro, num tom arrastado, apregoando as revistas que vende.
Por aqui, por ali, vai, vem, corre, galopa, atravessa as ruas com uma rapidez de raio, persegue os veículos, desliza entre os automóveis como uma sombra. Parece invulnerável.
É assim uma espécie de pensionista do público - arrebata as pontas de charuto que se jogam à rua e surrupia, para revender, os jornais que se deixa esquecidos nos bancos dos passeios. Se pode à socapa, deita a mão a alguma dessas pirâmides de frutos que sedutoramente se elevam às portas das mercearias.
É extraordinária a celeridade com que ele se transporta de um lugar para outro. Anuncia no Leme, na Tijuca, em Niterói, um jornal que a gente pensa ainda estar no prelo. Dir-se-ia que tem asas.
Fuma, bebe aguardente, pragueja, solta pilhérias torpes, pisca os olhos maliciosamente à passagem das mulheres, canta trovas obscenas com a música da "Cabocla de Caxangá".
Torna-se importuno às vezes, quando, a correr pelas plataformas dos bondes, fazendo reviravoltas de símio para escapar à sanha de algum condutor rabugento, nos atordoa os ouvidos com estupendos gritos estridentes.
Nada lhe empana a limpidez de espírito, nada. Está tão habituado a anunciar todos os dias "um grande atentado, um pavoroso incêndio, a prisão do célebre bandido Fulano", que afinal acaba por encarar todos esse fatos indeferentemente.
Tem gestos próprios e expressões peculiares. Para ele um assassínio ou um suicídio é simplesmente uma "encrenca". Um conflito é um "robo". Sua interjeição predileta é uê, que aliás é usada por toda a gente carioca.
Parece que desconhece hierarquias e vaidades tolas, porque não empresta títulos a nenhum nome. Diz: "O partido do Pinheiro, discursos do Ruy Barbosa, o governo do Nilo Peçanha", como se todos os cabecilhas da República fossem apenas vendedores de jornais.
Fala sobre política, conhece o valor de nossos parlamentares, discute os principais episódios da conflagração européia, critica os atos do poder e emprega imoderadamente esses vistosos adjetivos que figuram nos cabeçalhos dos artigos importantes para engodar o público incauto.
Detesta a monotonia dos tempos de paz. Gosta das revoluções, dos motins, das grossas "mixórdias" que lhe proporcionam ocasiões de ver todas as folhas arrebatadas, sem que haja necessidade de ele gritar como nos dias ordinários.
Não é somente o jornalista que explora vantajosamente os crimes - ele, o garoto endiabrado, também sabe tirar partido das mais insignificantes perturbações da ordem, revestindo todos os fatos de acessórios que lhes dão proporções extraordinárias. Parece que tem o dom de pôr um grande vidro de aumentar em cima dos acontecimentos.
É astucioso, impostor, velhaco.
Com uma finura de comerciante velho, emprega artimanhas de mestre, complicados ardis, artifícios que são uma obra-prima de sutileza, tudo para embair os transeuntes. Mente apregoando sedutoras notícias fantásticas.
Enfim, sob certos pontos de vista, o pequeno garoto vendedor de jornais é uma espécie de jornalista em miniatura...
Graciliano Ramos (crônica publicada no jornal Paraíba do Sul, em 20 de maio de 1915)
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