O cântico que ouvi pelo telefone nessa manhã era a paixão condensada, destilada - e era tão cego e tão inútil como a paixão sempre é. Durante aquelas ocasiões (felizmente de breve duração) em que soava como um grito pleno, tinha o poder de abalar a edificação da história e da geografia, da razão e da política. Tinha o poder de fazer até o mais endurecido de nós ponderar, mesmo que momentaneamente, que diabo estávamos fazendo na Caxemira, governando um povo que odiava de forma tão visceral.
Os chamados "funerais dos mártires" eram sempre uma guerra de nervos. A polícia e as forças de segurança tinham ordem de permanecer em alerta, mas longe das vistas. Não só porque nessas ocasiões os ânimos naturalmente se exaltavam e um confronto levaria de maneira inevitável a outro massacre - isso tínhamos aprendido com a marga experiência. A ideia era que a permissão para a população externar seus sentimentos e gritar suas palavras de ordem de quando impediria que essa raiva acumulasse e se transformasse em um abismo de ódio incontrolável. Até agora, neste mais de quarto de século de conflito na Caxemira, tem valido a pena. Os caxmíris enlutados choraram e gritaram suas palavras de ordem, mas no fim sempre voltaram para casa. Gradualmente, ao longo dos anos, quando se tornou um hábito, um ciclo previsível e aceitável, eles começaram a desconfiar e desrespeitar a si mesmos, a seus súbitos fervores e suas fáceis capitulações. Era um benefício não planejado que nos favoreciam.
Mesmo assim, permitir que meio milhão, às vezes mesmo um milhão, de pessoas tomassem às ruas em qualquer situação, ainda mais durante uma insurgência, é uma aposta arriscadíssima.
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