quinta-feira, agosto 31
Sobre uma porção de coisas
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No pecado do amor, o que há de melhor é o risco de reincidir.
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O que será de nós no dia em que os verbos se conjugarem e se voltarem contra nós?
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Meninos moradores de rua não costumam fugir de casa.
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O amor era um costume bastante disseminado até meados do século XIX.
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Quando pensamos estar nos dando bem com a gramática e enfiamos a mão por dentro de sua saia, ela nos espeta com uma crase.
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Foi pena você não ter querido me ouvir naquela tarde. Eu julgava ser um passarinho. Talvez você concordasse.
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Quem nasce em Cuba é cubano, quem nasce em Chipre é cipriota, quem sofre de amor é humano, quem morre de amor é idiota.
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A categoria dos poetas infiltrou-se no governo e conseguiu o monopólio das lágrimas.
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A poesia deve ser usada como último truque, quando o amor tiver desdenhado todos os outros com aquele seu sarcasmo.
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As coisas do amor são sempre as mais esfareláveis.
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Não há nada mais triste do que um gerúndio velho: está sempre sofrendo, chorando, morrendo.
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Algazarra era aquilo que as pombas faziam quando sobrevoavam a casa de Raimundo Correia.
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Dizem que Ruy Barbosa falava muito bem o inglês. Acredito. Mas fico imaginando o sotaque.
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Às vezes o melhor que podemos fazer pela poesia é não fazê-la.
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O primeiro escritor e o segundo, na abertura da bienal, falam mal do terceiro.
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Tudo de Clarice virou mantra – até o que ela não disse.
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Receando ser contaminados pelo lirismo, os poetas concretistas só tocavam uma rosa com as mãos enluvadas.
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Se um poeta quiser encantar sua amada com poesia, a recomendação é dar a ela um livro do Quintana.
Raul Drewnick
O revólver do Senador
O Senador ainda estava na cama, lendo calmamente os jornais, e eram dez horas da manhã. Súbito ouve a voz do netinho de quatro anos de idade por detrás da folha aberta, bem junto de sua cabeça:
– Vovô, eu vou te matar.
Abaixou o jornal e viu, aterrorizado, que o menino empunhava com as duas mãos o revólver apanhado na gaveta da cabeceira. Sempre tivera a arma ali ao seu alcance, para qualquer eventualidade, carregada e com uma bala na agulha. Nunca essa eventualidade se dera na longa seqüência de riscos e tropeços que a política lhe proporcionara. No entanto, ali estava, agora, apanhado de surpresa, sob a mira de um revólver. O menino começou a rir de sua cara de espanto.
– Eu vou te matar – repetiu, dedinho já no gatilho.
O menor gesto precipitado e a arma dispararia.
Pensou em estender o braço e ao menos afastar o cano de sua testa, que já começava a porejar suor.
Mas temeu o susto da criança, o dedo se contraindo no gatilho... Tentou falar e de seus lábios saíram apenas sons roufenhos e mal articulados.
– Não me mata não – gaguejou, afinal: – você é tão bonzinho...
– Pum! Pum! – e o demônio do menino sempre a rir, só fez dar um passo para trás; que o colocou fora de seu alcance. Agora estava perdido.
– Cuidado, tem bala... – deixou escapar, e a voz de novo lhe faltou. Toda uma vida que terminava ali, estupidamente nas mãos de uma criança – de que adiantara? Tudo aflição de espírito e esforço vão. Se alguém entrasse no quarto de repente, a mãe, a avó do menino... Que é isso, menino! Você mata seu avô! Com o susto... Senti o pijama já empapado de suor. Era preciso fazer alguma coisa, terminar logo com aquela agonia. Estendeu mansamente o braço trêmulo:
– Me dá isso aqui...
– Mãos ao alto! – berrou o menino, ameaçador, dando passo para trás, e as mãos pequeninas se firmaram ainda mais no cabo da arma. O Senador não teve outra coisa a fazer senão obedecer.
E assim se compôs o quadro grotesco: o velho com os braços erguidos, o guri a dominá-lo com o revólver. De repente, porém, o telefone tocou.
– Atende aí – pediu o Senador, num sopro.
Estava salvo: o menino tomou do fone, descobrindo brinquedo novo, e abaixou o revólver. O Senador aproveitou a trégua para apoderar-se da arma. Então pôs-se a tremer, descontrolado, enquanto retirava as balas com os dedos aflitos. O menino começou a chorar:
– Me dá! Me dá!
A mulher do senador vinha entrando:
–O que foi que você fez com ele? Está com uma cara esquisita... Que aconteceu?
– Acabo de nascer de novo – explicou simplesmente.
Fernando Sabino
terça-feira, agosto 29
Paraíso lembrado
Não havia ostentação na casa grande. Todo o luxo, o exagero todo ficavam no jardim que se estendia atrás. Gramados de veludo com a sombra das árvores crescendo no fim da tarde; o roseiral, onde aprendi a sensualidade dos perfumes, e fazia besouros pretos e amarelos rastejarem na minha mão; a cerca de araçá e outras frutas vagamente proibidas: a mãe queria que a gente só comesse maçã argentina, sem saber da delícia das pitangas, ou das jabuticabas da árvore alta de onde um dia o jardineiro teve de me tirar com escada na mão.
O balanço, onde eu cantava histórias com letra e música inventadas na hora, certamente ainda balançaria ao peso das minhas memórias, se estivesse ali.
Mais adiante, o lago, talvez um pequeno açude brotando incansável de algum olho-d’água submerso, onde pesquei tanto lambari com anzol de alfinete. O puxão, susto e alegria, o risco de prata saltando sobre a água, vitória e compaixão. Mais tarde a avó preparava a fritada com o balde cheio, que eu comia com o pai, cúmplice dessas brincadeiras.
A casa dessa avó era parte do paraíso: casinhola quase antiga, com avarandado, por onde ainda caminho muitas vezes em sonho. Tudo motivo de felicidade: biscoito feito na hora, refrescos coloridos e sempre as velhas histórias. “Vó, conta a história de quando você caiu da goiabeira e quebrou o braço.” O melhor era imaginá-la criança como a gente, num tempo incalculável. O pomar eram as bergamoteiras escuras, as laranjeiras cheirosas, as espécies que se contavam nos dedos: a do céu, a ntal, a de umbigo, a tangerina.
Meu pai plantara o matinho de eucaliptos, quase uma alameda, onde a gente corria entre um cheiro bom que nenhum spray do mundo conseguiria reproduzir. Muitas vezes no fim de tardes quentes o jardineiro queimava um monte dessas folhas, enquanto, deitada no capim morno, eu olhava os bichos, castelos, caretas, que as nuvens formavam no alto.
Do outro lado da sebe, um terreno meio abandonado, que chamávamos charco ou pântano, não sei. Sei que era a morada dos meus medos e fascinação mais secretos e intensos: à noite, ou nas madrugadas de uma criança insone, roncos, bufidos, gargalhadas, gemidos e cantorias de mil sapos e seres fantásticos me chamavam.
O mundo naquele tempo, e naquele local, era encantado: cada flor tinha o seu elfo, cada cogumelo o seu não tortinho, cada recanto de folhas a sua divindade. Os morros azuis ao redor eram habitados por Rapunzel e Bela Adormecida, havia ali cavernas com tesouros de Ali Babá.
Mas era certamente no lago o meu reino. Rodeado de salgueiros, com a labareda de uma corticeira velha, tinha no centro uma ilhota onde se chegava por um pontilhão muito precário. Houve um tempo em que ali morou um casal de veadinhos. Seus focinhos úmidos, os flancos ariscos e ternos olhos faziam parte do meu cotidiano, dentro dos muros de minha vida, quando eu ainda não era cidadã de uma capital, longe do paraíso traído. Um dia, o macho fugiu, e os empregados vaticinaram que a fêmea “morreria de saudade”. Eu a visitava todos os dias, ansiosa, e, realmente, ela se deixou morrer. Foi a primeira vez, talvez única morte por amor que testemunhei, naqueles tempos românticos, em que o coração da gente e as histórias de família, não as novelas de televisão, proviam nosso imaginário.
Na memória, tudo aquilo ainda existe, é meu ainda: cheiros, passos, ruídos, segredos. Foi aquele o chão da minha alma. Não sei como permitir que fosse vendido, que passasse a mãos estranhas, e que transformasse num monte de edifícios. Acho que eu não teria podido impedir, mas hoje me parece que não me esforcei bastante. Essa foi a única, a minha imperdoável traição.
Talvez eu seja perdoada um pouco, porque ainda levei meus filhos para viverem longas e repetidas férias naquele universo, porque me deitei com eles no capim para olharmos os castelos de nuvem, porque lhes mostrei os bichos e lhes ensinei os nomes das plantas, pesquei com eles os peixes, e andei com eles na minha própria infância. Talvez esse seja o legado mais vital que lhes deixarei.
Se houvesse como voltar, eu voltava: derrubava os edifícios que construíram sobre meus sonhos, refazia o jardim, e naturalmente traria também de volta as pessoas todas, que na lembrança ainda são, tão, lindamente, cotidianas.
E quando, com meus filhos agora uma mulher e dois homens, um dos quais morando e trabalhando em uma fazenda remota em Minas, lembro a antiga casa e o perdido paraíso, sinto que tudo aquilo, embora em mãos estranhas e transformando, ainda é nosso. Que, em qualquer lugar onde a gente esteja, ainda caminhamos naquelas trilhas de pedra, rolamos naquela grama, ainda comemos aquelas frutas, e ainda podemos sonhar aquelas fantasias.
Lya Luft
O balanço, onde eu cantava histórias com letra e música inventadas na hora, certamente ainda balançaria ao peso das minhas memórias, se estivesse ali.
Mais adiante, o lago, talvez um pequeno açude brotando incansável de algum olho-d’água submerso, onde pesquei tanto lambari com anzol de alfinete. O puxão, susto e alegria, o risco de prata saltando sobre a água, vitória e compaixão. Mais tarde a avó preparava a fritada com o balde cheio, que eu comia com o pai, cúmplice dessas brincadeiras.
A casa dessa avó era parte do paraíso: casinhola quase antiga, com avarandado, por onde ainda caminho muitas vezes em sonho. Tudo motivo de felicidade: biscoito feito na hora, refrescos coloridos e sempre as velhas histórias. “Vó, conta a história de quando você caiu da goiabeira e quebrou o braço.” O melhor era imaginá-la criança como a gente, num tempo incalculável. O pomar eram as bergamoteiras escuras, as laranjeiras cheirosas, as espécies que se contavam nos dedos: a do céu, a ntal, a de umbigo, a tangerina.
Meu pai plantara o matinho de eucaliptos, quase uma alameda, onde a gente corria entre um cheiro bom que nenhum spray do mundo conseguiria reproduzir. Muitas vezes no fim de tardes quentes o jardineiro queimava um monte dessas folhas, enquanto, deitada no capim morno, eu olhava os bichos, castelos, caretas, que as nuvens formavam no alto.
Do outro lado da sebe, um terreno meio abandonado, que chamávamos charco ou pântano, não sei. Sei que era a morada dos meus medos e fascinação mais secretos e intensos: à noite, ou nas madrugadas de uma criança insone, roncos, bufidos, gargalhadas, gemidos e cantorias de mil sapos e seres fantásticos me chamavam.
O mundo naquele tempo, e naquele local, era encantado: cada flor tinha o seu elfo, cada cogumelo o seu não tortinho, cada recanto de folhas a sua divindade. Os morros azuis ao redor eram habitados por Rapunzel e Bela Adormecida, havia ali cavernas com tesouros de Ali Babá.
Mas era certamente no lago o meu reino. Rodeado de salgueiros, com a labareda de uma corticeira velha, tinha no centro uma ilhota onde se chegava por um pontilhão muito precário. Houve um tempo em que ali morou um casal de veadinhos. Seus focinhos úmidos, os flancos ariscos e ternos olhos faziam parte do meu cotidiano, dentro dos muros de minha vida, quando eu ainda não era cidadã de uma capital, longe do paraíso traído. Um dia, o macho fugiu, e os empregados vaticinaram que a fêmea “morreria de saudade”. Eu a visitava todos os dias, ansiosa, e, realmente, ela se deixou morrer. Foi a primeira vez, talvez única morte por amor que testemunhei, naqueles tempos românticos, em que o coração da gente e as histórias de família, não as novelas de televisão, proviam nosso imaginário.
Na memória, tudo aquilo ainda existe, é meu ainda: cheiros, passos, ruídos, segredos. Foi aquele o chão da minha alma. Não sei como permitir que fosse vendido, que passasse a mãos estranhas, e que transformasse num monte de edifícios. Acho que eu não teria podido impedir, mas hoje me parece que não me esforcei bastante. Essa foi a única, a minha imperdoável traição.
Talvez eu seja perdoada um pouco, porque ainda levei meus filhos para viverem longas e repetidas férias naquele universo, porque me deitei com eles no capim para olharmos os castelos de nuvem, porque lhes mostrei os bichos e lhes ensinei os nomes das plantas, pesquei com eles os peixes, e andei com eles na minha própria infância. Talvez esse seja o legado mais vital que lhes deixarei.
Se houvesse como voltar, eu voltava: derrubava os edifícios que construíram sobre meus sonhos, refazia o jardim, e naturalmente traria também de volta as pessoas todas, que na lembrança ainda são, tão, lindamente, cotidianas.
E quando, com meus filhos agora uma mulher e dois homens, um dos quais morando e trabalhando em uma fazenda remota em Minas, lembro a antiga casa e o perdido paraíso, sinto que tudo aquilo, embora em mãos estranhas e transformando, ainda é nosso. Que, em qualquer lugar onde a gente esteja, ainda caminhamos naquelas trilhas de pedra, rolamos naquela grama, ainda comemos aquelas frutas, e ainda podemos sonhar aquelas fantasias.
Lya Luft
segunda-feira, agosto 28
Feito de livros
Subúrbio
O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central.
Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. Passamos por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por acaso, o fundo de uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá damos com um casebre tosco, que, para ser alcançado, torna-se preciso descer uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar para um canto do horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um ou mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira vista com a ladeira de acesso.
Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para estas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas, há sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráticas: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se por vezes, “correres” de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos “avenida”.
As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até a noite, ficam povoadas de toda espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam.
Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o “toque de reunir”: “Mimoso”! É um bode que a dona chama. “Sereia”! É uma leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim por diante.
Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus – tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos.
Se acontece faltar um dos seus “bichos”, a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.
A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.
O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que passam, a incapacidade de encontrar fora de seu habitual campo de visão motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que possa se julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro. Um “belchior” de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito.
Em geral essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia.
Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhes cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.
Lima Barreto, "Clara dos Anjos'
Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. Passamos por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por acaso, o fundo de uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá damos com um casebre tosco, que, para ser alcançado, torna-se preciso descer uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar para um canto do horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um ou mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira vista com a ladeira de acesso.
Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para estas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas, há sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
Di Cavalcanti |
As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até a noite, ficam povoadas de toda espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam.
Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o “toque de reunir”: “Mimoso”! É um bode que a dona chama. “Sereia”! É uma leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim por diante.
Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus – tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos.
Se acontece faltar um dos seus “bichos”, a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.
A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.
O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que passam, a incapacidade de encontrar fora de seu habitual campo de visão motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que possa se julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro. Um “belchior” de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito.
Em geral essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia.
Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhes cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.
Lima Barreto, "Clara dos Anjos'
domingo, agosto 27
Da vida pequena
Temos o hábito de olhar para o mundo assim: o mundo todo, a totalidade do mundo. “As pessoas” quer dizer: todas as pessoas, a Humanidade. Como se o nosso fosse o olho infinito de Deus. Pensamos no macro. “Pensar grande” é mesmo um mandamento, e significa: veja a floresta, não se prenda a uma árvore só. E está bem, isso. É como se podem fazer as grandes análises e diagnósticos necessários. Que movem, depois, as ações com que vamos, puxando a esperança dos desvãos onde ela ainda resiste, mudar para melhor uns pedacinhos de mundo. Tudo bem.
Mas existem as árvores. Uma árvore. Duas. Uma pequena vizinhança de árvores. Dão suas sombras pequenas, às vezes misturam sombras, fazem dossel para os bichos e as gentes passarem. São, vamos dizer assim, dotadas de uma bondade particular. Microbondades. — E se um pedaço da esperança estiver nas árvores individuais, nas suas vidas pequenas? — Uma coluna para as vidas pequenas. Podemos nos alegrar no fim.
É assim. Há uma pessoa. Pode ou não ter uma casa que seja seu lugar de estar na vida. Quando não, pode viver em lugares precários, um teto pouco, ou ao Deus dará. E aí é triste e revoltante. Mas vamos só um pouquinho, o espaço de um palmo de escrita, esquecer as macrorrevoltas. Existe essa pessoa aqui. Chama-se Celso e dorme encostado no edifício aqui ao lado. Esse lugar é dele. Triste, mas seu, lugar. As pessoas dormem e acordam. Tomam ou não um café da manhã. Têm em casa as provisões para ele ou as conseguem com vizinhos ou passantes. (Uns vão apressados; outros oferecem um pão. Não é mentira: há quem ofereça o pão. Não são poucos.) E, mais ou menos bem, mais ou menos mal alimentadas, vão à vida.
“A vida”. Dito assim parece uma coisa genérica. Uma ocupação do tempo. Diz o homem cheio de trabalho: tenho uma vida muito ocupada. Diz o que não tem emprego: estou com tempo na vida. Ou não: quem trabalha também tem tempo. Quem não trabalha procura, e isso toma tempo. A vida, vida mesmo, é a leveza e o peso com que as pessoas ocupam mais ou menos 16 horas de um dia. Depois vão dormir. Também é vida. Uma que se passa no escuro e nos sonhos. Vinte e quatro horas de fazer e não fazer coisas. De ver gente, de conversar, amar, se espantar com o belo e o feio. Um pôr de sol, uma vala negra. Um desastre de trem. Uns jovens tocando música no metrô. Coisas todas das vidas pequenas.
E nesse dia de vida acontecem coisas. Pessoas se apresentam diante de outras, por exemplo. Cena: alguém pede o que se chama “esmola”: tio, é pra comer... Alguém passa. Uns nem olham. Uns se afastam para a ponta da calçada: têm medo, ou nojo. Uns passam e o coração se aperta: pobrezinho, isso não devia acontecer. E vão embora, torturados por alguns segundos. Alguns minutos. Uns dão a esmola. “É pra comer, tio...”. Outros param.
Conversam. Informam-se da vida da pessoa que não tem e pede. Uns, poucos, vão até a padaria e trazem pão. E há os que, pouquíssimos, levam a pessoa que pede à padaria e dizem: “pegue o que você quer”. Depois pagam e saem. Uns cheios de bom coração realizado. Outros tristes. Merda de vida.
Nos bairros remediados, nas comunidades pobres há a bondade de vizinhança. Há quem dê aos vizinhos o pouco que tem, e, bem apertado, podia sobrar. Dividem. (Não é imagem de um coração idílico. Acontece mesmo.) Dividir o pouco é uma das formas mais belas da bondade humana. Chama-se solidariedade. A generosidade das pequenas vidas.
Sempre me surpreende, e me aperta o coração, ver que ao lado de um cadáver na rua aparecem logo quatro velas e um lençol por cima. E nos lugares das grandes tragédias, flores, velas, bilhetes. Pequenas montanhas de tristeza. Pessoas em volta, um grande silêncio. A televisão mostra, e é um espetáculo. Para quem está lá, é um abandono desconsolado. Uma pausa infeliz na pequena vida que iam levando. Já estive num lugar assim, eu e a minha família. O coração pequeno como uma casquinha de noz. Boca sem palavras. Para dizer o quê? Estava tudo lá.
Mas há também a hora de encontrar amigos, cantar, ficar alegre. Cantar para alguém é um ato de amor. Uma bondade pequena numa vida pequena. Depois ali acaba, as pessoas se separam, mas vai junto a memória do canto. E é bom. Eu venho para a minha boa casa. O Celso se encosta no edifício ao lado. É triste. É tristíssimo. Mas dormimos, e a noite abençoa tudo.
É assim. Há mais bondade e alegria nas vidas pequenas do que pensamos quando pronunciamos os macrojulgamentos. Vamos honrá-las. São tão bonitas! Merecem um olho bom, subitamente encantado.
Semana que vem voltamos às coisas sérias de intelectuais. E as vidas pequenas saem do nosso horizonte. Ou não, podemos conversar sobre poesia. Ou música. Amor. É o que fica no meio do grande e do pequeno. É um bom lugar para pensar sem esquecer.
Marcio Tavares D'Amaral
Mas existem as árvores. Uma árvore. Duas. Uma pequena vizinhança de árvores. Dão suas sombras pequenas, às vezes misturam sombras, fazem dossel para os bichos e as gentes passarem. São, vamos dizer assim, dotadas de uma bondade particular. Microbondades. — E se um pedaço da esperança estiver nas árvores individuais, nas suas vidas pequenas? — Uma coluna para as vidas pequenas. Podemos nos alegrar no fim.
É assim. Há uma pessoa. Pode ou não ter uma casa que seja seu lugar de estar na vida. Quando não, pode viver em lugares precários, um teto pouco, ou ao Deus dará. E aí é triste e revoltante. Mas vamos só um pouquinho, o espaço de um palmo de escrita, esquecer as macrorrevoltas. Existe essa pessoa aqui. Chama-se Celso e dorme encostado no edifício aqui ao lado. Esse lugar é dele. Triste, mas seu, lugar. As pessoas dormem e acordam. Tomam ou não um café da manhã. Têm em casa as provisões para ele ou as conseguem com vizinhos ou passantes. (Uns vão apressados; outros oferecem um pão. Não é mentira: há quem ofereça o pão. Não são poucos.) E, mais ou menos bem, mais ou menos mal alimentadas, vão à vida.
“A vida”. Dito assim parece uma coisa genérica. Uma ocupação do tempo. Diz o homem cheio de trabalho: tenho uma vida muito ocupada. Diz o que não tem emprego: estou com tempo na vida. Ou não: quem trabalha também tem tempo. Quem não trabalha procura, e isso toma tempo. A vida, vida mesmo, é a leveza e o peso com que as pessoas ocupam mais ou menos 16 horas de um dia. Depois vão dormir. Também é vida. Uma que se passa no escuro e nos sonhos. Vinte e quatro horas de fazer e não fazer coisas. De ver gente, de conversar, amar, se espantar com o belo e o feio. Um pôr de sol, uma vala negra. Um desastre de trem. Uns jovens tocando música no metrô. Coisas todas das vidas pequenas.
E nesse dia de vida acontecem coisas. Pessoas se apresentam diante de outras, por exemplo. Cena: alguém pede o que se chama “esmola”: tio, é pra comer... Alguém passa. Uns nem olham. Uns se afastam para a ponta da calçada: têm medo, ou nojo. Uns passam e o coração se aperta: pobrezinho, isso não devia acontecer. E vão embora, torturados por alguns segundos. Alguns minutos. Uns dão a esmola. “É pra comer, tio...”. Outros param.
Conversam. Informam-se da vida da pessoa que não tem e pede. Uns, poucos, vão até a padaria e trazem pão. E há os que, pouquíssimos, levam a pessoa que pede à padaria e dizem: “pegue o que você quer”. Depois pagam e saem. Uns cheios de bom coração realizado. Outros tristes. Merda de vida.
Nos bairros remediados, nas comunidades pobres há a bondade de vizinhança. Há quem dê aos vizinhos o pouco que tem, e, bem apertado, podia sobrar. Dividem. (Não é imagem de um coração idílico. Acontece mesmo.) Dividir o pouco é uma das formas mais belas da bondade humana. Chama-se solidariedade. A generosidade das pequenas vidas.
Sempre me surpreende, e me aperta o coração, ver que ao lado de um cadáver na rua aparecem logo quatro velas e um lençol por cima. E nos lugares das grandes tragédias, flores, velas, bilhetes. Pequenas montanhas de tristeza. Pessoas em volta, um grande silêncio. A televisão mostra, e é um espetáculo. Para quem está lá, é um abandono desconsolado. Uma pausa infeliz na pequena vida que iam levando. Já estive num lugar assim, eu e a minha família. O coração pequeno como uma casquinha de noz. Boca sem palavras. Para dizer o quê? Estava tudo lá.
Mas há também a hora de encontrar amigos, cantar, ficar alegre. Cantar para alguém é um ato de amor. Uma bondade pequena numa vida pequena. Depois ali acaba, as pessoas se separam, mas vai junto a memória do canto. E é bom. Eu venho para a minha boa casa. O Celso se encosta no edifício ao lado. É triste. É tristíssimo. Mas dormimos, e a noite abençoa tudo.
É assim. Há mais bondade e alegria nas vidas pequenas do que pensamos quando pronunciamos os macrojulgamentos. Vamos honrá-las. São tão bonitas! Merecem um olho bom, subitamente encantado.
Semana que vem voltamos às coisas sérias de intelectuais. E as vidas pequenas saem do nosso horizonte. Ou não, podemos conversar sobre poesia. Ou música. Amor. É o que fica no meio do grande e do pequeno. É um bom lugar para pensar sem esquecer.
Marcio Tavares D'Amaral
Natal no Porto Iguaçu
Para Daniel Mordzinski
É um homem que está só mas não espera. Nota-se que não espera. Tem uma expressão nos lábios que tenta ou pretende ser um sorriso, mas não é. Com as mãos entrelaçadas sobre a mesa, vè a garota de vestido longo azul cantar. Todo o restaurante olha para ela, e também olha para ele. Mas não parece que seja por uma história de amor.
No "Jardin Iguazu" a fauna dessa noite, 24 de decembro, é pelo menos chamativa. Os chineses estão na ampla mesa do fundo, contra as colunas, e de lá chega um murmúrio suave de pombos. Sua língua estranha mistura palavras de guarani e de castelhano, particularmente entre os menores, que chamam a atenção pelo comportamento sério, quase adulto.
O pátio é grande, para umas cinqüenta pessoas ou mais. Quase todas estão ocupadas por uma legião de rostos peculiares que tagarelam como pássaros de falar diverso: as garotas que parecem alemãs, ou austríacas, comem discretas como as loiras; os dois franceses de camiseta e short que parecem gèmeos, ou casal gay, bebem como se esta fosse a última ceia antes de subir ao patíbulo; um grupo de cordobeses grita perto dos chineses e solta provocações a toda hora, pedindo que a menina de vestido longo azul cante sucessos de Mona Jimenez.
Pietro Magni (1856) |
A garota canta agora boleros de Luis Miguel e é dificíl dizer se é melhor olhar as pernas que aparecem pelo talho do vestido longo azul, ou acompanhar a conduta tão esquisita de Solari, como batizamos o homem de rictus na boca que parece sorriso mas não é sorriso. Seu comportamento é por demais educado, ou talvez haveria que dizer contido. Como uma encenação discreta, não é tristeza o que define seu estado. É mais um atravessar na contramão de todos, o que, ao fim, se torna patético.
É um homem de boa aparència, certamente: deve andar pelos quarenta anos, quem sabe cinqüenta bem conservados, com alguns fios grisalhos sobre as orelhas, peito malhado em academia, mãos de colono ou operário: amplas, fortes, grandes. Veste-se com simplicidade, como quase todos nesta noite abrasadora de Natal e neste ponto quente da fronteira: jeans e camisa de mangas curtas em tom pálido, nada para destacar. O que se nota é que está só e sua solidão é absoluta, insólita para esta noite e este lugar, uma solidão, diga-se, chamativa como a corcunda do Corcunda de Notre Dame, indiscreta como um comentário do inesquecível Max Ferrarotti de Soriano.
Impossível não olhar para ele. É quase agressiva sua desolação. Preside uma mesa vazia com restos de peru e um pão doce pela metade. Pediu agora uma garrafa de vinho branco que beberá só, talvez como tenha feito toda sua vida, bebe parcimoniosa e lentamente como se fosse para durar até a meia-noite, quando a garota do vestido longo azul anuncia que é a hora do grande brinde, dos beijos e das felicitações, e explodem as mesas dos argentinos, dos cordobeses e de uns rio-negrinos de longe, e também de uma turma de brasileiros que começam a dançar como sempre fazem os brasileiros para que todo mundo goste deles, e de modo mais contido os europeus, e com frieza asiática os chineses: todos se beijam, se abraçam, se cumprimentam, nos beijamos, brindamos de mesa em mesa, levantamos os cálices, alguns dizem piadas a garota de vestido longo azul que canta algo de Caetano, Chun Li vigia a caixa e que tudo esteja em ordem, e cinco minutos depois eu noto, e acho que todos notamos, que o homem só continua sozinho, impávido, levantando sua taça até a altura dos lábios sem brindar com ninguém.
De uma mesa vizinha um casal de velhos se aproxima para brindar com ele, quem sabe comovidos pelo seu desamparo; trocam saudações, e outra mulher, de uns quarenta anos, que imagino solteirona, vai e tasca um beijo e um abraço como se dissesse aí, cara, não enche o saco, vem te divertir um pouco que estou aqui e a noite é propícia. Mas o homem, depois de devolver, gentil e educado, os cumprimentos, volta para sua mesa, a sua soberba, a sua patética solidão sem esperanças.
Até uma da manhã e depois de tangos, cumbias e inclusive chacareras a pedido, a garota do vestido longo azul faz uma pausa com seus músicos, alguns turistas se retiram para descansar, e com Daniel, que manteve suas càmeras penduradas no pescoço como um médico de terapia intensiva com seu estetoscópio, decidimos que é hora de ir dormir pois amanhã será um dia de trabalho. Pagamos Maria Paula e cumprimentamos Chun Li e os seus. Dou um beijo fraternal em Maria Paula, que não deixou de dançar cumbias desde que a ceia terminou, e antes de sair olho pela última vez o homem solitário e pergunto a Maria Paula qual é a dele, que continua ali, sentado, com a expressão que pretende ser sorriso mas não é e que tenta ser agradável sem conseguir.
"Esse cara?", diz, com desprezo, Maria Paula. "É um policial aposentado que torturou e matou um montão de gente. Há alguns anos era o homem mais temido da fronteira; agora é só isso que estás vendo: menos que um pobre infeliz, um merdinha."
E me dá um beijo e outro em Daniel, e continua dançando. Vamos para o hotel, pensando no dia seguinte. Sem olhar para trás.
Mempo Giardinelli
sábado, agosto 26
O vício de ler
Franziska Höllbacher |
O vício de ler tudo o que me caísse nas mãos ocupava o meu tempo livre e quase todo o das aulas. Podia recitar poemas completos do repertório popular que nessa altura eram de uso corrente na Colômbia, e os mais belos do Século de Ouro e do romantismo espanhóis, muitos deles aprendidos nos próprios textos do colégio. Estes conhecimentos extemporâneos na minha idade exasperavam os professores, pois cada vez que me faziam na aula qualquer pergunta difícil, respondia-lhes com uma citação literária ou com alguma ideia livresca que eles não estavam em condições de avaliar. O padre Mejia disse: «É um garoto afectado», para não dizer insuportável. Nunca tive que forçar a memória, pois os poemas e alguns trechos de boa prosa clássica ficavam-me gravados em três ou quatro releituras. Ganhei do padre prefeito a primeira caneta de tinta permanente que tive porque lhe recitei sem erros as cinquenta e sete décimas de «A vertigem», de Gaspar Núnez de Arce.
Lia nas aulas, com o livro aberto em cima dos joelhos e com tal descaramento que a minha impunidade só parecia possível devido à cumplicidade dos professores. A única coisa que não consegui com as minhas astúcias bem rimadas foi que me perdoassem a missa diária às sete da manhã. Além de escrever as minhas tolices, era solista no coro, desenhava caricaturas cómicas, recitava poemas nas sessões solenes e tantas coisas mais fora de horas e de lugar que ninguém entendia a que horas estudava. A razão era a mais simples: não estudava.
No meio de tanto dinamismo supérfluo, ainda não entendo por que razão os professores se interessavam tanto por mim sem barafustar com a minha má ortografia. Ao contrário da minha mãe, que escondia do meu pai algumas das minhas cartas para o manter vivo e outras mas devolvia corrigidas e às vezes com os parabéns por certos progressos gramaticais e o bom uso das palavras. Mas ao fim de dois anos não houve melhorias à vista. Hoje o meu problema continua a ser o mesmo: nunca consegui entender por que se admitem letras mudas ou duas letras diferentes com o mesmo som e tantas outras normas sem razão.
Gabriel García Marquez, "Viver para Contar"
A camisa do seu clube
Outro dia, um jogador de um grande clube marcou um belo gol e saiu vibrando. Como se tornou normal nessa comemoração, tirou a camisa e jogou-a pela linha de fundo – como um cozinheiro que atira o avental sujo num canto da cozinha depois de um dia à beira do fogão. Todas as TVs mostraram. Nenhum locutor fez tsk, tsk. Fica estabelecido, portanto, que, apesar de custar um cartão amarelo, a camisa de um clube é algo para ser jogada fora, como um trapo inútil.
Serve também para assoar o nariz, ao fim do jogo, antes da entrevista ao repórter. É levada com a mão ao nariz e este é colocado violentamente em erupção, com um som de ronco, seguido – calcula-se – de um derrame de mucos e defluxos que, por sorte, não chegamos a ver. É esta mesma camisa que costuma ser trocada com o adversário e, provavelmente, a do outro jogador virá assim também, viscosa. Somos todos uma grande família.
Os clubes não gostam que os atletas tirem a camisa ao comemorar um gol, mas apenas porque isto os deixa mal com os patrocinadores – em vez de exibir a marca que ajuda a pagar seus salários, os jogadores preferem desfilar suas tatuagens ou depilações. E não me consta que algum dirigente já tenha repreendido um jogador por se assoar na camisa diante das câmeras.
Nós, torcedores, preferimos quando o jogador faz o gol e sai beijando o escudo. Mesmo sabendo que, ano que vem, ele estará beijando o do inimigo.
Serve também para assoar o nariz, ao fim do jogo, antes da entrevista ao repórter. É levada com a mão ao nariz e este é colocado violentamente em erupção, com um som de ronco, seguido – calcula-se – de um derrame de mucos e defluxos que, por sorte, não chegamos a ver. É esta mesma camisa que costuma ser trocada com o adversário e, provavelmente, a do outro jogador virá assim também, viscosa. Somos todos uma grande família.
Portinari |
E há ainda outro gesto comum entre os jogadores e suas camisas: o de enxugar com elas o suor do rosto. Mas, este, sim, é o mais nobre dos gestos. Se é para receber o produto do esforço do atleta que se entregou em campo por suas cores, nenhum pano – nem mesmo a bandeira do clube – será mais adequado para reconhecer tal dedicação. A camisa encharcada é a prova material de sua luta.
Os clubes não gostam que os atletas tirem a camisa ao comemorar um gol, mas apenas porque isto os deixa mal com os patrocinadores – em vez de exibir a marca que ajuda a pagar seus salários, os jogadores preferem desfilar suas tatuagens ou depilações. E não me consta que algum dirigente já tenha repreendido um jogador por se assoar na camisa diante das câmeras.
Nós, torcedores, preferimos quando o jogador faz o gol e sai beijando o escudo. Mesmo sabendo que, ano que vem, ele estará beijando o do inimigo.
sexta-feira, agosto 25
Jesus na biblioteca
Venho escrevendo há tanto tempo que já deveria ter aprendido. Sou um cronista medíocre, se tanto. Esforço-me, empenho-me, tento novos jeitos, parece que vou finalmente descobrir o caminho, mas…
Não sei quantas crônicas escrevi. Duas mil, talvez. E me lembro de só nove ou dez com as quais fiquei satisfeito. Em uma delas eu falava de uma figura que apareceu num ano extremamente longínquo na Biblioteca Mário de Andrade. Eu era jovem e, com outros tolos da mesma idade, me preparava para revolucionar a literatura. Machado de Assis, Shakespeare e Proust seriam substituídos por nós, e os leitores não teriam motivos para sentir saudade de nenhum deles.
Não exagerarei se disser que morávamos na biblioteca. Nela e nos bares próximos, onde líamos, uns para os outros, nossas obras-primas. Um dia, surgiu como se tivesse caído do céu um tipo que se apresentou como Jesus e, para que não houvesse dúvida, acrescentou: Cristo.
Era interiorano no aspecto, nos modos e no sotaque. Passou a ser nossa sombra. Censurava o que líamos e o que bebíamos e nos dizia a todo instante que ao buscar a glória chegaríamos não a Estocolmo, para receber o Nobel, mas ao inferno, para arder na churrasqueira do Diabo.
Encarando-o como uma piada, uma fonte de boas gargalhadas, lhe pagávamos a água mineral e o sanduichezinho. Logo nos acostumamos com sua presença. Se ele demorava para iniciar um dos seus sermões, nós o provocávamos: Jesus, não tem ladainha hoje?
Ele passou a se tornar monótono. Seu assunto era sempre aquele: tinha como missão salvar a humanidade, começando por nós. Com o tempo, já não lhe dávamos muita atenção, mas ele não deixou de nos acompanhar, na biblioteca e nos bares.
Uma noite, bebemos demais e, já não sei por qual motivo, fomos parar na Praça da República. (Havia Praça da República, naquele tempo.) Acredito que o álcool tivesse despertado todos os nossos demônios. Talvez estivéssemos cantando uma canção particularmente obscena. O certo é que nosso Jesus começou a nos criticar com uma veemência que nunca havia demonstrado.
Irritados, nós o agarramos e, como se houvéssemos planejado tudo, dissemos que estava na hora de ele provar que era Cristo. Íamos crucificá-lo. Deve ter sido boa nossa encenação, porque ele se pôs a debater-se e a pedir socorro. Como justificativa para essa covardia, ele gritava: “Sou Jesus, sou Jesus, mas ainda não estou preparado!”
Não sei se hoje há um lago na Praça da República. Naquela época havia, e foi para lá que o empurramos. A última imagem que tivemos dele foi seu espanto ao se ver cercado pelos patos. Gritava palavras que nunca imaginaríamos ouvir de um santo homem.
Não sei quantas crônicas escrevi. Duas mil, talvez. E me lembro de só nove ou dez com as quais fiquei satisfeito. Em uma delas eu falava de uma figura que apareceu num ano extremamente longínquo na Biblioteca Mário de Andrade. Eu era jovem e, com outros tolos da mesma idade, me preparava para revolucionar a literatura. Machado de Assis, Shakespeare e Proust seriam substituídos por nós, e os leitores não teriam motivos para sentir saudade de nenhum deles.
Não exagerarei se disser que morávamos na biblioteca. Nela e nos bares próximos, onde líamos, uns para os outros, nossas obras-primas. Um dia, surgiu como se tivesse caído do céu um tipo que se apresentou como Jesus e, para que não houvesse dúvida, acrescentou: Cristo.
Era interiorano no aspecto, nos modos e no sotaque. Passou a ser nossa sombra. Censurava o que líamos e o que bebíamos e nos dizia a todo instante que ao buscar a glória chegaríamos não a Estocolmo, para receber o Nobel, mas ao inferno, para arder na churrasqueira do Diabo.
Encarando-o como uma piada, uma fonte de boas gargalhadas, lhe pagávamos a água mineral e o sanduichezinho. Logo nos acostumamos com sua presença. Se ele demorava para iniciar um dos seus sermões, nós o provocávamos: Jesus, não tem ladainha hoje?
Ele passou a se tornar monótono. Seu assunto era sempre aquele: tinha como missão salvar a humanidade, começando por nós. Com o tempo, já não lhe dávamos muita atenção, mas ele não deixou de nos acompanhar, na biblioteca e nos bares.
Uma noite, bebemos demais e, já não sei por qual motivo, fomos parar na Praça da República. (Havia Praça da República, naquele tempo.) Acredito que o álcool tivesse despertado todos os nossos demônios. Talvez estivéssemos cantando uma canção particularmente obscena. O certo é que nosso Jesus começou a nos criticar com uma veemência que nunca havia demonstrado.
Irritados, nós o agarramos e, como se houvéssemos planejado tudo, dissemos que estava na hora de ele provar que era Cristo. Íamos crucificá-lo. Deve ter sido boa nossa encenação, porque ele se pôs a debater-se e a pedir socorro. Como justificativa para essa covardia, ele gritava: “Sou Jesus, sou Jesus, mas ainda não estou preparado!”
Não sei se hoje há um lago na Praça da República. Naquela época havia, e foi para lá que o empurramos. A última imagem que tivemos dele foi seu espanto ao se ver cercado pelos patos. Gritava palavras que nunca imaginaríamos ouvir de um santo homem.
quinta-feira, agosto 24
Eu, leitor, confesso...
Para mim, a leitura transformou-se de obrigação em paixão, vício, fuga, etc, etc, etc. Obrigação porque agora me lembro que o pai (usando o tom de Carlos H. Cony) insistia, durante a infância/adolescência, na leitura – imaginem! – até de enciclopédias (Conhecer, com fascículos distribuídos em bancas nos anos 70). Como era maçante – mas também no campo, época de semear é feia, cheira mal, e, de repente, que transformação! Eis que chega a colheita – florida, cheirosa, rica e prazerosa.
Sim, sou um leitor amador, com certa lógica (minha), em que uma palavra puxa outra; um autor, outra autora; um filme, um livro; ou ao contrário, desde que essa leitura traga inflamação (calor, rubor, tumor e dor), que transporte não só para outros sítios, mas principalmente pra dentro de outras personalidades, atos (aqueles que não posso ou quero), pesquisa das sensações humanas. Ah! Que delírio ler um autor contando aquilo que passou ou gostaria de ter passado, por um lado tão inusitado que te joga contra as paredes do auto-conhecimento.
Bem, acima de tudo, leitura pra mim é pura distração, diversão, passatempo, hobby, "previdência privada" (pro futuro, tanto os não lidos quanto os lidos, que espero repetir em busca de sensações maiores).
Onze pequenos e grandes prazeres de um leitor amador:
1. Entrar numa livraria, abrir um livro de poesia, cair naquele poema que parece que foi escrito naquele momento e diretamente pra você. Ex.: Paulo Bonfim, "Epitáfio para o meu silêncio".
2. Ler Henry Miller, Trópico de Câncer, pensando ser livro de "sacanagem" e descobrir, no fim, talvez a melhor definição de pra que servem os artistas e a arte.
3. Nunca ter lido Rubem Braga e, na primeira vez, ler a crônica "Os Pés do Morto".
4. Não admitir sair de uma livraria sem comprar nada, comprar um autor desconhecido, capa interessante, chegar em casa, começar a ler, não parar, ir até o fim, adorar a simplicidade e a maravilha da estória (A Máquina, de Adriana Falcão).
5. Ter lido um romance (que era o único largado num rancho de pescaria), nunca mais encontrá-lo e após sete anos receber um telefonema de um sebo pra ir buscá-lo (Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sábato).
6. Imaginar-se no amor de Florentino Ariza e Fermina Daza naquele cruzeiro no caribe colombiano (O Amor nos Tempos do Cólera, Gabriel G. Marquez).
7. Sentir-se como se fosse o próprio Paul Auster em O Inventor da Solidão.
8. Saber que Martha Medeiros é viva, tem a mesma idade que você, está apenas a mil quilômetros e pode a qualquer momento lançar outro livro.
9. Abrir a Folha de S. Paulo de sexta-feira, procurar na ilustrada a crônica do Carlos H. Cony como primeira leitura da manhã, tendo certeza de que não será sobre o FHC.
10. Assistir a um filme argentino na TV, desconhecido, ser atraído por citações poéticas, gravar os créditos, descobrir Mario Benedetti. Na mesma hora comprar pela internet o que encontrou (Antologia Poética), receber depois de três dias, abrir, esganado, esfomeado, cair no poema "Intimidade".
11. Todos os próximos que certamente estão por vir...
Ricardo Wagner Modes
Bem, acima de tudo, leitura pra mim é pura distração, diversão, passatempo, hobby, "previdência privada" (pro futuro, tanto os não lidos quanto os lidos, que espero repetir em busca de sensações maiores).
Onze pequenos e grandes prazeres de um leitor amador:
1. Entrar numa livraria, abrir um livro de poesia, cair naquele poema que parece que foi escrito naquele momento e diretamente pra você. Ex.: Paulo Bonfim, "Epitáfio para o meu silêncio".
2. Ler Henry Miller, Trópico de Câncer, pensando ser livro de "sacanagem" e descobrir, no fim, talvez a melhor definição de pra que servem os artistas e a arte.
3. Nunca ter lido Rubem Braga e, na primeira vez, ler a crônica "Os Pés do Morto".
4. Não admitir sair de uma livraria sem comprar nada, comprar um autor desconhecido, capa interessante, chegar em casa, começar a ler, não parar, ir até o fim, adorar a simplicidade e a maravilha da estória (A Máquina, de Adriana Falcão).
5. Ter lido um romance (que era o único largado num rancho de pescaria), nunca mais encontrá-lo e após sete anos receber um telefonema de um sebo pra ir buscá-lo (Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sábato).
6. Imaginar-se no amor de Florentino Ariza e Fermina Daza naquele cruzeiro no caribe colombiano (O Amor nos Tempos do Cólera, Gabriel G. Marquez).
7. Sentir-se como se fosse o próprio Paul Auster em O Inventor da Solidão.
8. Saber que Martha Medeiros é viva, tem a mesma idade que você, está apenas a mil quilômetros e pode a qualquer momento lançar outro livro.
9. Abrir a Folha de S. Paulo de sexta-feira, procurar na ilustrada a crônica do Carlos H. Cony como primeira leitura da manhã, tendo certeza de que não será sobre o FHC.
10. Assistir a um filme argentino na TV, desconhecido, ser atraído por citações poéticas, gravar os créditos, descobrir Mario Benedetti. Na mesma hora comprar pela internet o que encontrou (Antologia Poética), receber depois de três dias, abrir, esganado, esfomeado, cair no poema "Intimidade".
11. Todos os próximos que certamente estão por vir...
Ricardo Wagner Modes
quarta-feira, agosto 23
Refresco
No exato momento em que eu entrava no botequim para comprar cigarros, ouvi a voz do homem perguntar por trás de mim:
— Tem refresco de cajá?
O outro, por trás do balcão, olhou espantado:
— De caju?
— Não senhor, de cajá mesmo.
Não tinha. Não tinha e ainda ficou danado. Ora essa, por que razão havia de ter refresco de cajá? Ainda se fosse de caju, vá lá. É verdade que refresco de caju também não havia, mas, de qualquer modo, era mais viável ter de caju do que de cajá, fruta difícil, que só de raro em raro se encontra e, assim mesmo, por um preço exorbitante.
E ainda irritado, disse:
— Por que não pergunta na Colombo? Aposto que lá também não vendem refresco de cajá. E o senhor sabe disso, o senhor está pedindo aqui para desmoralizar o estabelecimento.
Não era de briga e nem estava querendo desmoralizar ninguém. De repente — ao entrar ali para tomar café — sentira cheiro de cajá e, como na sua terra havia muito daquela fruta, ficara
com vontade de tomar um refresco.
O que servia caiu em si, esqueceu o seu complexo de trabalhar no café fuleiro e não na Colombo. Depois desculpou-se com um sorriso de poucos dentes e perguntou se não queria uma laranjada.
Uma laranjada sempre se pode arranjar.
O outro recusou com um abano de cabeça e saiu encabulado, talvez por ter revelado em público um tão puro sentimento íntimo — a saudade de sua terra.
Paguei os cigarros e saí atrás dele. Também eu, depois que assistira à cena, senti cheiro de cajá.
Há dez anos — pensei — eu poderia satisfazer a sua vontade. Era só andar aquele quarteirão, entrar à esquerda e procurar o número 53. Era a nossa casa. Ali nasci eu, nasceram meus irmãos e nasciam cajás todos os anos.
Fui caminhando e, por um momento, admiti que, se naquele tempo houvesse liquidificadores, o refresco seria mais gostoso. Depois sorri desse pensamento inconsequente e senti a injustiça que
fazia. Afinal, as mãos sábias de Ana faziam refrescos saborosíssimos.
Instintivamente dobrei à esquerda, atravessei a rua e olhei para o enorme edifício do 53. Por causa daquele monstrengo arquitetônico fora-se a linda árvore, a sua sombra, a casa, a varanda, a sombra da varanda. Nunca mais papai dirá orgulhoso, referindo-se ao quintal:
— Vai quase até a rua Copacabana!
O “quase” era a casa de Wilminha, tão bonita, que tomava banho de janela aberta. Pobre Wilminha que a mãe não deixava usar batom. Não fosse a morte da velha e mais a do noivo aviador e ela
não estaria se pintando tanto, como faz agora.
A casa de Wilminha também virou edifício, como a nossa. É verdade que, no 53, não morrera ninguém, graças a Deus. Mas havia uma hipoteca para pagar e urgia liquidá-la, senão perderíamos
tudo, inclusive o apartamento do quinto andar, onde mora o americano, e que é tudo que nos sobrou da incorporação.
Recordo os vizinhos de então. Foram-se todos, escondidos pelas sombras dos prédios grandes. A rua, de sua, conserva somente o nome. Perdeu aquele encanto que todas as ruas de bairro devem
ter. Sua história, o dia em que a asfaltaram, ou o outro, quando plantaram as árvores.
A saudade foi crescendo. De repente aquela vontade de tomar um refresco de cajá. Virei-me rápido, procurando com os olhos o homem que há pouco eu vira no café.
Ia lá longe, triste, de cabeça baixa.
(Manchete, 26/06/1954)
terça-feira, agosto 22
Cachaça inflacionada e literatura no Paiaiá
A dose de pinga com raízes, ervas medicinais e outras coisas que servem para dar um saborzinho especial, teve seu preço mais que dobrado: passou de dez centavos a dose para vinte e cinco centavos!
O seu Pedro, com seus 93 anos de idade, ainda se recuperando da chikungunya que o abateu há bem mais de um ano, não aguenta manter funcionando muito tempo depois que escurece a única porta de seu estabelecimento comercial, que tem uns dois metros de largura por um pouquinho mais de fundura. Mas enquanto tem fregueses ele não fecha a porta. Para lucrar quanto?
Bom… Um recém-conhecido que já esteve lá há três anos “reclama”: a inflação aqui foi de bem mais de cem por cento de lá pra cá. Como?! É que a dose de pinga com raízes, ervas medicinais e outras coisas que servem apenas para dar um saborzinho especial a ela, teve seu preço mais que dobrado: passou de dez centavos a dose para vinte e cinco centavos!
Estranhou? Sim: vinte e cinco centavos a dose. Tem pinga com umburana, com coquinho, pindaíba e um algumas outras coisas, que podem servir para dores de estômago, dor de não sei quê e até para levantar o “moral” dos homens. Ele indica para isso a pinga com mil-homens. Contestei esse uso, mas ele não acreditou (e um freguês também): fiz há muitos anos uma matéria sobre pinga com raízes e ervas medicinais e uma pesquisadora da Universidade de Ouro Preto me contou que o nome “cipó de mil-homens” é enganador, faz a gente pensar nele como um poder estimulante sexual, mas o efeito é exatamente o contrário: é broxante.
Esnobei bastante na birosca do seu Pedro. Acompanhado por cinco pessoas, entre moças e rapazes, paguei a primeira rodada, com cada um optando pela beberagem de sua preferência. Seis doses! Um real e cinquenta centavos. Paguei mais uma rodada, e mais uma, e mais uma… Quatro rodadas de pinga para seis pessoas, seis reais! Menos do que gastaria tomando uma dose de pinga razoável em São Paulo.
Isso aconteceu, acreditem, no início de agosto de 2017, este ano mesmo. Um dia desses. Eu estava em São José do Paiaiá, município de Nova Soure, no sertão baiano, perto de Sergipe.
Antes de ir tomar umas na birosca do seu Pedro, tinha ficado mais de três horas numa lanchonete na mesma rua (aliás, a única – há também algumas travessas), ao ar livre, debaixo de árvores, tomando cerveja. Lembrava dos meus tempos de criança numa cidadezinha minúscula do Sul de Minas: nesse tempo todo, não passou nenhum automóvel, caminhão ou qualquer outro veículo motorizado por ali. Silêncio gostoso! Só umas poucas pessoas a pé e outras a cavalo.
“Como é que você foi parar num lugar desses?”, podem me perguntar. Olha, como foi gostoso! Estava participando do III Encontro sobre livro, leitura e inclusão social no território do Nordeste II da Bahia.
Fiz uma conta: São José do Paiaiá tem cerca de 600 habitantes, e uma biblioteca comunitária com 120 mil volumes!!! São “200 volumes per capita”, poderia dizer um estatístico. Isso numa única biblioteca. E nessa conta não entram só os possíveis leitores: os 600 moradores, no caso, incluem até recém-nascidos. Onde mais tem isso? A Biblioteca Maria das Neves Prado é a maior do mundo, no gênero – biblioteca em comunidade rural.
Tudo começou quando um paiaiaense, o Geraldo Moreira Prado, que para seu desgosto não é conhecido como Paiaiá, mas como Alagoinhas, nome da “grande cidade” mais próxima do seu povoado, morando no Rio de Janeiro, se separou da mulher e teve que mudar para um apartamento menor. Dos 47 mil livros que tinha, 12 mil não cabiam na nova moradia. O que fazer? Apaixonado por livros, ele nunca optaria, por exemplo, por vender para um sebo impessoal.
Um sobrinho com 16 anos de idade, José Arivaldo, o Vadinho, propôs que criassem uma biblioteca no Paiaiá. Topou. Arrumou um caminhão e mandou os 12 mil livros para lá. Os livros chegaram no mesmo dia em que o Jornal Nacional noticiava o roubo de livros da biblioteca do Itamaraty. Claro, uma fofoqueira não deixaria isso passar em branco: tentou espalhar pelo povoado que aqueles livros que chegaram a Paiaiá eram os roubados do Itamaraty. Não convenceu ninguém, e isso serviu para divulgar a chegada dos livros. Foi em 2002.
Em seguida, o Geraldo comprou uma casa velha (“dois mil reais”, me contou), reformou, ampliou, e continuou mandando seus livros para lá. Teve apoios. Antônio Candido, por exemplo, mandou um montão de livros. O dono de um sebo mandou cerca de cinco mil revistas em quadrinhos, para alegria da criançada. E uns anos depois, Walnice Nogueira Galvão pesquisou e concluiu que era a “maior biblioteca em comunidade rural de todo o mundo”. Agora tem 120 mil volumes.
Vadinho, o sobrinho do Geraldo, formou-se em Letras, e agora estuda Biblioteconomia na Universidade Federal de Sergipe. Tem muitos planos para formar leitores. Aliás, a biblioteca do Paiaiá tem feito muitas atividades, como cursos para professores da região – mais de cem já participaram.
No Encontro deste ano, realizado à revelia de um contexto nacional anticultura, antitudo que preste, houve muitas palestras, debates, lançamentos de livros, rodas de conversa, minicursos e muitas atividades específicas para crianças. Entre os palestrantes, teve pesquisadores, professores, bibliotecários de várias universidades, da Bahia, Sergipe, Rio de Janeiro e Brasília, além da minha modesta presença como representante da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci), para falar da literatura envolvendo personagens do imaginário brasileiro.
E as crianças? Bem… Algumas das que começaram a frequentar a biblioteca e serem estimuladas pelas suas atividades, no seu início, já são hoje universitárias. Nos três dias de atividades do Encontro deste ano (3 a 5 de agosto), só num dia que tive a pachorra de calcular, com base nos ônibus vindos de Nova Soure e cidades vizinhas, chegaram mais de quatrocentas crianças. Eu olhava nos rostos delas e achava que tinham a sensação de descobertas, seja enquanto participavam das atividades do evento ou enquanto remexiam livremente nas estantes da biblioteca. Imagino que pelo menos algumas delas estejam “contaminadas” pela literatura. Cada pessoa dessas, a meu ver, é um lucro para o mundo.
Voltei de lá com uma alegria imensa, com a sensação de que a inércia que os vampiros do poder tentam nos fazer aceitar, não é tão aceita assim. Tem gente batalhando, não aceitando a ideia conformista de que o mundo (e o Brasil) é essa trolha que tentam nos impor, peitando os tempos sombrios, fazendo o que para muitos parece ser coisa de umas figuras quixotescas.
Geraldo Moreira Prado deixou Paiaiá já maior de idade, mas com apenas o curso primário. Veio de pau-de-arara pra São Paulo, para trabalhar e estudar. Gostava de ler e, trabalhando como faxineiro e porteiro de um prédio da Boca do Lixo, lia, lia muito. Quando tinha algum dinheiro, preferia comprar livros do que usar para suprir necessidades básicas.
Queria ser médico, mas como? Sem educação formal, fez um cursinho de madureza (com bolsa) durante pouco mais de um ano, para conseguir o diploma de nível ginasial e depois o de colegial. Prestou vestibular e não passou. Optou então por Letras Orientais, na USP. Estudou chinês e não aprendeu nada. Mas aproveitou que estava na universidade e fez muitas matérias optativas em outros cursos. E conseguiu se transferir para o curso de História, em 1967, mesmo ano em que entrei na Geografia, no mesmo prédio. Participamos da mesma turma de amigos de noitadas etílicas e companheiros de militância no movimento estudantil, moramos no Crusp e fomos tirados de lá pelos militares, depois do AI-5.
Depois disso, nossa turma toda se espalhou, morando em repúblicas, além das complicações políticas impostas pela ditadura, encaramos dificuldades típicas de quem não tem retaguarda de famílias ricas, mas a maioria seguiu nadando contra a corrente. Ele se destacou. Tornou-se mestre e doutor em História, trabalhou no CNPq, foi professor universitário, sempre mantendo sua paixão pelos livros. Hoje é aposentado… Quer dizer, aposentado entre aspas. É muito mais ativo do que um monte de gente que teoricamente está na ativa…
Mouzar Benedito
O seu Pedro, com seus 93 anos de idade, ainda se recuperando da chikungunya que o abateu há bem mais de um ano, não aguenta manter funcionando muito tempo depois que escurece a única porta de seu estabelecimento comercial, que tem uns dois metros de largura por um pouquinho mais de fundura. Mas enquanto tem fregueses ele não fecha a porta. Para lucrar quanto?
Bom… Um recém-conhecido que já esteve lá há três anos “reclama”: a inflação aqui foi de bem mais de cem por cento de lá pra cá. Como?! É que a dose de pinga com raízes, ervas medicinais e outras coisas que servem apenas para dar um saborzinho especial a ela, teve seu preço mais que dobrado: passou de dez centavos a dose para vinte e cinco centavos!
Estranhou? Sim: vinte e cinco centavos a dose. Tem pinga com umburana, com coquinho, pindaíba e um algumas outras coisas, que podem servir para dores de estômago, dor de não sei quê e até para levantar o “moral” dos homens. Ele indica para isso a pinga com mil-homens. Contestei esse uso, mas ele não acreditou (e um freguês também): fiz há muitos anos uma matéria sobre pinga com raízes e ervas medicinais e uma pesquisadora da Universidade de Ouro Preto me contou que o nome “cipó de mil-homens” é enganador, faz a gente pensar nele como um poder estimulante sexual, mas o efeito é exatamente o contrário: é broxante.
Esnobei bastante na birosca do seu Pedro. Acompanhado por cinco pessoas, entre moças e rapazes, paguei a primeira rodada, com cada um optando pela beberagem de sua preferência. Seis doses! Um real e cinquenta centavos. Paguei mais uma rodada, e mais uma, e mais uma… Quatro rodadas de pinga para seis pessoas, seis reais! Menos do que gastaria tomando uma dose de pinga razoável em São Paulo.
Isso aconteceu, acreditem, no início de agosto de 2017, este ano mesmo. Um dia desses. Eu estava em São José do Paiaiá, município de Nova Soure, no sertão baiano, perto de Sergipe.
Antes de ir tomar umas na birosca do seu Pedro, tinha ficado mais de três horas numa lanchonete na mesma rua (aliás, a única – há também algumas travessas), ao ar livre, debaixo de árvores, tomando cerveja. Lembrava dos meus tempos de criança numa cidadezinha minúscula do Sul de Minas: nesse tempo todo, não passou nenhum automóvel, caminhão ou qualquer outro veículo motorizado por ali. Silêncio gostoso! Só umas poucas pessoas a pé e outras a cavalo.
“Como é que você foi parar num lugar desses?”, podem me perguntar. Olha, como foi gostoso! Estava participando do III Encontro sobre livro, leitura e inclusão social no território do Nordeste II da Bahia.
Fiz uma conta: São José do Paiaiá tem cerca de 600 habitantes, e uma biblioteca comunitária com 120 mil volumes!!! São “200 volumes per capita”, poderia dizer um estatístico. Isso numa única biblioteca. E nessa conta não entram só os possíveis leitores: os 600 moradores, no caso, incluem até recém-nascidos. Onde mais tem isso? A Biblioteca Maria das Neves Prado é a maior do mundo, no gênero – biblioteca em comunidade rural.
Tudo começou quando um paiaiaense, o Geraldo Moreira Prado, que para seu desgosto não é conhecido como Paiaiá, mas como Alagoinhas, nome da “grande cidade” mais próxima do seu povoado, morando no Rio de Janeiro, se separou da mulher e teve que mudar para um apartamento menor. Dos 47 mil livros que tinha, 12 mil não cabiam na nova moradia. O que fazer? Apaixonado por livros, ele nunca optaria, por exemplo, por vender para um sebo impessoal.
Um sobrinho com 16 anos de idade, José Arivaldo, o Vadinho, propôs que criassem uma biblioteca no Paiaiá. Topou. Arrumou um caminhão e mandou os 12 mil livros para lá. Os livros chegaram no mesmo dia em que o Jornal Nacional noticiava o roubo de livros da biblioteca do Itamaraty. Claro, uma fofoqueira não deixaria isso passar em branco: tentou espalhar pelo povoado que aqueles livros que chegaram a Paiaiá eram os roubados do Itamaraty. Não convenceu ninguém, e isso serviu para divulgar a chegada dos livros. Foi em 2002.
Em seguida, o Geraldo comprou uma casa velha (“dois mil reais”, me contou), reformou, ampliou, e continuou mandando seus livros para lá. Teve apoios. Antônio Candido, por exemplo, mandou um montão de livros. O dono de um sebo mandou cerca de cinco mil revistas em quadrinhos, para alegria da criançada. E uns anos depois, Walnice Nogueira Galvão pesquisou e concluiu que era a “maior biblioteca em comunidade rural de todo o mundo”. Agora tem 120 mil volumes.
Vadinho, o sobrinho do Geraldo, formou-se em Letras, e agora estuda Biblioteconomia na Universidade Federal de Sergipe. Tem muitos planos para formar leitores. Aliás, a biblioteca do Paiaiá tem feito muitas atividades, como cursos para professores da região – mais de cem já participaram.
No Encontro deste ano, realizado à revelia de um contexto nacional anticultura, antitudo que preste, houve muitas palestras, debates, lançamentos de livros, rodas de conversa, minicursos e muitas atividades específicas para crianças. Entre os palestrantes, teve pesquisadores, professores, bibliotecários de várias universidades, da Bahia, Sergipe, Rio de Janeiro e Brasília, além da minha modesta presença como representante da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci), para falar da literatura envolvendo personagens do imaginário brasileiro.
E as crianças? Bem… Algumas das que começaram a frequentar a biblioteca e serem estimuladas pelas suas atividades, no seu início, já são hoje universitárias. Nos três dias de atividades do Encontro deste ano (3 a 5 de agosto), só num dia que tive a pachorra de calcular, com base nos ônibus vindos de Nova Soure e cidades vizinhas, chegaram mais de quatrocentas crianças. Eu olhava nos rostos delas e achava que tinham a sensação de descobertas, seja enquanto participavam das atividades do evento ou enquanto remexiam livremente nas estantes da biblioteca. Imagino que pelo menos algumas delas estejam “contaminadas” pela literatura. Cada pessoa dessas, a meu ver, é um lucro para o mundo.
Voltei de lá com uma alegria imensa, com a sensação de que a inércia que os vampiros do poder tentam nos fazer aceitar, não é tão aceita assim. Tem gente batalhando, não aceitando a ideia conformista de que o mundo (e o Brasil) é essa trolha que tentam nos impor, peitando os tempos sombrios, fazendo o que para muitos parece ser coisa de umas figuras quixotescas.
Geraldo Moreira Prado deixou Paiaiá já maior de idade, mas com apenas o curso primário. Veio de pau-de-arara pra São Paulo, para trabalhar e estudar. Gostava de ler e, trabalhando como faxineiro e porteiro de um prédio da Boca do Lixo, lia, lia muito. Quando tinha algum dinheiro, preferia comprar livros do que usar para suprir necessidades básicas.
Queria ser médico, mas como? Sem educação formal, fez um cursinho de madureza (com bolsa) durante pouco mais de um ano, para conseguir o diploma de nível ginasial e depois o de colegial. Prestou vestibular e não passou. Optou então por Letras Orientais, na USP. Estudou chinês e não aprendeu nada. Mas aproveitou que estava na universidade e fez muitas matérias optativas em outros cursos. E conseguiu se transferir para o curso de História, em 1967, mesmo ano em que entrei na Geografia, no mesmo prédio. Participamos da mesma turma de amigos de noitadas etílicas e companheiros de militância no movimento estudantil, moramos no Crusp e fomos tirados de lá pelos militares, depois do AI-5.
Depois disso, nossa turma toda se espalhou, morando em repúblicas, além das complicações políticas impostas pela ditadura, encaramos dificuldades típicas de quem não tem retaguarda de famílias ricas, mas a maioria seguiu nadando contra a corrente. Ele se destacou. Tornou-se mestre e doutor em História, trabalhou no CNPq, foi professor universitário, sempre mantendo sua paixão pelos livros. Hoje é aposentado… Quer dizer, aposentado entre aspas. É muito mais ativo do que um monte de gente que teoricamente está na ativa…
Mouzar Benedito
Assim começa o livro...
Glengrove Place. Não é um vale (glen) e não há nenhum arvoredo (grove). O nome certamente foi dado por algum escocês ou inglês em referência à sua terra, que ele deixou para trás quando ganhou dinheiro nesta cidade a mais de mil e quinhentos metros de altitude e entrou no mercado imobiliário.
Ela era negra, mas isso agora é muito mais complexo do que o início e o fim da existência conforme registrada num arquivo ultrapassado de um país ultrapassado, muito embora o nome permaneça o mesmo. Ela nasceu naquele tempo; seu nome é uma assinatura do passado de sua origem, batizada na igreja metodista em que um de seus avôs fora pastor, e seu pai, diretor de uma escola local para meninos negros, era presbítero, sendo sua mãe presidente da sociedade feminina da igreja. A Bíblia era a fonte do primeiro nome de batismo, seguido do segundo, africano, o qual as pessoas brancas — que a criança teria que aprender a agradar, e com quem teria de lidar neste mundo — não associavam a nenhuma identidade. Rebecca Jabulile.
Ele era branco. Mas também isso não é tão definitivo quanto era codificado nos arquivos antigos. Nascido na mesma época, uns poucos anos antes da mulher, ele é um branco misturado — uma mistura que não tinha nenhuma importância desde que os elementos fossem todos brancos. Na verdade, a mistura dele é bem complicada em certos termos de identidade que não são determinados pela cor. Seu pai era gentio, não religioso, cristão apenas nominal, e sua mãe era judia. A identidade da mãe é decisiva na identidade de um judeu, a mãe cuja relação com a criança concebida está acima de qualquer dúvida. Se a mãe é judia, então o filho também pertence à fé, o que naturalmente implica a circuncisão ritual. O pai, é claro, não fez nenhuma objeção, e talvez, como muitos agnósticos e até mesmo ateus, no fundo tivesse inveja daqueles que praticam a ilusão de uma fé religiosa — ou então estava apenas fazendo a vontade da mulher que amava. Se era isso que ela queria, se era importante para ela de uma maneira que fugia à sua compreensão… Que o prepúcio fosse cortado!
Mas era um lugar. Um lugar onde eles podiam morar juntos, num tempo em que em lugar nenhum era possível fazer isso legalmente. O aluguel do apartamento era alto para os dois na época, porém o preço incluía uma certa cumplicidade da parte do proprietário do prédio e do zelador; nada é de graça quando pessoas respeitadoras da lei correm algum risco de violá-la. Como locatário, ele tinha o tipo de nome inglês ou europeu que não diferia da maioria dos outros nomes nas caixas de correio dos moradores, ao lado do elevador na entrada; lá havia um cacto num vaso, em vez do arvoredo. Ela era apenas a “sra.” acrescentada como apêndice. Eles eram casados, de verdade, embora isso também fosse ilegal. No país fronteiriço onde ela se exilou para poder estudar, e ele, um jovem branco cuja militância política o obrigava a desaparecer da universidade da cidade por algum tempo, eles dois, afoitos, ignorando a consequência que seria inevitável quando voltassem para seu país, se apaixonaram e se casaram.
De volta à África do Sul, ela foi trabalhar como professora numa escola particular administrada pelos padres de uma ordem católica tolerada à margem da educação pública racialmente segregada, onde podia usar seu sobrenome de nascimento com base em princípios não raciais.
Ela era negra, ele era branco. Nada mais importava. Identidade era só isso, naquele tempo. Simples como as letras negras nesta página branca. Por causa dessas duas identidades, eles transgrediam. E conseguiram se dar bem, mais ou menos. Não eram tão visíveis, nem politicamente tão conhecidos, que valesse a pena processá-los nos termos da Lei da Imoralidade: melhor seria mantê-los em observação, segui-los, por um lado, na expectativa de que deixassem pistas que levassem a militantes de mais peso, ou pela possibilidade de que fossem recrutados para fazer relatórios referentes ao seu nível de envolvimento, fosse o de dissidentes ou o de revolucionários. Na verdade, ele era um daqueles que, quando estudante, fora abordado discretamente com indiretas sutis baseadas no patriotismo ou, talvez, na suposição igualmente natural de que os jovens precisam de dinheiro, tendo sido deixado claro que ele não deveria se preocupar, pois sua segurança pessoal estaria garantida, bem como sua situação financeira, se ele se lembrasse das coisas que eram ditas nas reuniões a que ele estava presente e desempenhava seu papel. Engolindo uma golfada de repugnância e imitando o tom da abordagem, ele recusou a oferta — sem que o homem se desse conta de que a rejeição não era apenas da oferta, mas também da pessoa que se prestava ao papel de cafetão da polícia política.
Ela era negra, ele era branco. Nada mais importava. Identidade era só isso, naquele tempo. Simples como as letras negras nesta página branca. Por causa dessas duas identidades, eles transgrediam. E conseguiram se dar bem, mais ou menos. Não eram tão visíveis, nem politicamente tão conhecidos, que valesse a pena processá-los nos termos da Lei da Imoralidade: melhor seria mantê-los em observação, segui-los, por um lado, na expectativa de que deixassem pistas que levassem a militantes de mais peso, ou pela possibilidade de que fossem recrutados para fazer relatórios referentes ao seu nível de envolvimento, fosse o de dissidentes ou o de revolucionários. Na verdade, ele era um daqueles que, quando estudante, fora abordado discretamente com indiretas sutis baseadas no patriotismo ou, talvez, na suposição igualmente natural de que os jovens precisam de dinheiro, tendo sido deixado claro que ele não deveria se preocupar, pois sua segurança pessoal estaria garantida, bem como sua situação financeira, se ele se lembrasse das coisas que eram ditas nas reuniões a que ele estava presente e desempenhava seu papel. Engolindo uma golfada de repugnância e imitando o tom da abordagem, ele recusou a oferta — sem que o homem se desse conta de que a rejeição não era apenas da oferta, mas também da pessoa que se prestava ao papel de cafetão da polícia política.
Ela era negra, mas isso agora é muito mais complexo do que o início e o fim da existência conforme registrada num arquivo ultrapassado de um país ultrapassado, muito embora o nome permaneça o mesmo. Ela nasceu naquele tempo; seu nome é uma assinatura do passado de sua origem, batizada na igreja metodista em que um de seus avôs fora pastor, e seu pai, diretor de uma escola local para meninos negros, era presbítero, sendo sua mãe presidente da sociedade feminina da igreja. A Bíblia era a fonte do primeiro nome de batismo, seguido do segundo, africano, o qual as pessoas brancas — que a criança teria que aprender a agradar, e com quem teria de lidar neste mundo — não associavam a nenhuma identidade. Rebecca Jabulile.
Ele era branco. Mas também isso não é tão definitivo quanto era codificado nos arquivos antigos. Nascido na mesma época, uns poucos anos antes da mulher, ele é um branco misturado — uma mistura que não tinha nenhuma importância desde que os elementos fossem todos brancos. Na verdade, a mistura dele é bem complicada em certos termos de identidade que não são determinados pela cor. Seu pai era gentio, não religioso, cristão apenas nominal, e sua mãe era judia. A identidade da mãe é decisiva na identidade de um judeu, a mãe cuja relação com a criança concebida está acima de qualquer dúvida. Se a mãe é judia, então o filho também pertence à fé, o que naturalmente implica a circuncisão ritual. O pai, é claro, não fez nenhuma objeção, e talvez, como muitos agnósticos e até mesmo ateus, no fundo tivesse inveja daqueles que praticam a ilusão de uma fé religiosa — ou então estava apenas fazendo a vontade da mulher que amava. Se era isso que ela queria, se era importante para ela de uma maneira que fugia à sua compreensão… Que o prepúcio fosse cortado!
segunda-feira, agosto 21
Eu não o conheci
Giovanni Giacometti (1868-1933) |
Meu filho foi embora e eu não o conheci.
Acostumei-me com ele em casa e me esqueci de conhecê-lo.
Agora que sua ausência me pesa, é que vejo como era necessário tê-lo conhecido.
Lembro-me dele. Lembro-me bem em poucas ocasiões.
Um dia, na sala, ele me puxou a barra do paletó e me fez examinar seu pequeno dedo machucado. Foi um exame rápido.
Uma outra vez me pediu que lhe consertasse um brinquedo velho. Eu estava com pressa e não consertei. Mas lhe comprei um brinquedo novo.
Na noite seguinte, quando entrei em casa, ele estava deitado no tapete, dormindo e abraçado ao brinquedo velho.
O novo estava a um canto.
Eu tinha um filho e agora não o tenho mais porque ele foi embora. E este meu filho, uma noite, me chamou e disse:
Fica comigo. Só um pouquinho, pai.
Eu não podia; mas a babá ficou com ele.
Sou um homem muito ocupado.
Mas meu filho foi embora. Foi embora e eu não o conheci.
Oswaldo França Júnior
Sacodem o pó
- Atira, Domingos, sacodem o pó e sai-lhes a bicheza.
De casaco branco e cara rapada, como estava na etiqueta dum flâmulo de embaixador, ?Domingos construía no chão a meda de calhamaços. E, feita ela, de volta a ilustrar dez doutores e a fornecer-me ocupação para todo o dia, ia-se para a varanda espanejá-los, catar-lhes a traça, batendo-os no balaústre,m passando-os ao esfregão, soprando-lhes. O seu recado era fazer guerra à poeira e grande sanha punha em servir. E, prosseguindo na sua teima idiossincrásica, de tudo lavar e brunir, ia vandalizando livros (...).
Aquilino Ribeiro (1885-1963), "Vida sinuosa"
sábado, agosto 19
O riso de Kafka
Se bater na mesma tecla for estilo, finalmente encontrei o meu.
Ando escrevendo seguidos textos falando sobre o que há de humor em artistas austeros. Foi assim com uma resenha discorrendo sobre Lima Barreto e outra em que mencionava James Joyce como um autêntico piadista.
A razão para que os vejam assim tão circunspectos – sem ressaltar esse aspecto em suas narrativas – é a mania da fortuna crítica de transformar em estatuária os autores clássicos.
Agora vou repisar a minha hipótese aqui na Rubem, desta vez mencionando Franz Kafka. Para mim, o criador de universos tão claustrofóbicos como os de A Metamorfose era um cultor da blague.
E não só para mim. Para seus amigos mais próximos também, já que admitiam que Franz, ao promover uma leitura de O Processo aos mais íntimos em primeira mão, caiu na gargalhada em inúmeras passagens.
É claro que o humor de Kafka não é o mesmo de um Paul Beatty, muito menos o dos Trapalhões.
Notem o que afirma o professor de literatura David Foster Wallace numa palestra sobre o tema:
“Em Kafka, não há jogos de palavras recorrentes nem acrobacias aéreas verbais, e pouco no que se refere a tiradinhas jocosas e sátiras mordazes. Não há humor baseado em funções corporais em Kafka, nem insinuações sexuais, nem tentativas estilizadas de se rebelar transgredindo as convenções. Nem comédia pastelão pynchonesca com cascas de banana ou adenoides fora de controle. Nem priapismo rothiano, metaparódia barthiana ou lamúrias à moda de Woody Allen. Não há sinal algum das viradas tum-tum-pá dos seriados cômicos modernos; tampouco crianças precoces, avós desbocados ou colegas de trabalho cinicamente insurgentes.”
Trata-se de um riso muito singular o de K. É, como já se disse, aquele esgar que se dá após presenciarmos um tombo. E, com certeza, ninguém, depois de um dia de trabalho vai abrir um livro seu, junto com uma latinha de cerveja, e dar umas boas gargalhadas para relaxar. O que não significa que não haja naquelas páginas fina ironia e pessimismo em altas dosagens.
Um exemplo é a miniestória “Camundonguinho”, presente no livro “Oportunidade para um Pequeno Desespero” (Martins Fontes), com contos e parábolas de Franz Kafka e ilustrações de Nikolaus Heidelbach:
David Foster Wallace nos ensina em sua palestra que o humor de Kafka não é para ser “sacado” feito uma piada. E isto, no fundo, talvez seja o mais engraçado de tudo.
Carlos Castelo
Ando escrevendo seguidos textos falando sobre o que há de humor em artistas austeros. Foi assim com uma resenha discorrendo sobre Lima Barreto e outra em que mencionava James Joyce como um autêntico piadista.
A razão para que os vejam assim tão circunspectos – sem ressaltar esse aspecto em suas narrativas – é a mania da fortuna crítica de transformar em estatuária os autores clássicos.
Agora vou repisar a minha hipótese aqui na Rubem, desta vez mencionando Franz Kafka. Para mim, o criador de universos tão claustrofóbicos como os de A Metamorfose era um cultor da blague.
E não só para mim. Para seus amigos mais próximos também, já que admitiam que Franz, ao promover uma leitura de O Processo aos mais íntimos em primeira mão, caiu na gargalhada em inúmeras passagens.
: “Nós, os amigos, morremos de rir quando ele nos fez conhecer o primeiro capítulo de O Processo. E ele mesmo ria tanto que por momentos não podia continuar lendo. Bastante assombroso, se se pensa na terrível seriedade desse capítulo. Mas acontecia assim.”
Max Brod
É claro que o humor de Kafka não é o mesmo de um Paul Beatty, muito menos o dos Trapalhões.
Notem o que afirma o professor de literatura David Foster Wallace numa palestra sobre o tema:
“Em Kafka, não há jogos de palavras recorrentes nem acrobacias aéreas verbais, e pouco no que se refere a tiradinhas jocosas e sátiras mordazes. Não há humor baseado em funções corporais em Kafka, nem insinuações sexuais, nem tentativas estilizadas de se rebelar transgredindo as convenções. Nem comédia pastelão pynchonesca com cascas de banana ou adenoides fora de controle. Nem priapismo rothiano, metaparódia barthiana ou lamúrias à moda de Woody Allen. Não há sinal algum das viradas tum-tum-pá dos seriados cômicos modernos; tampouco crianças precoces, avós desbocados ou colegas de trabalho cinicamente insurgentes.”
Trata-se de um riso muito singular o de K. É, como já se disse, aquele esgar que se dá após presenciarmos um tombo. E, com certeza, ninguém, depois de um dia de trabalho vai abrir um livro seu, junto com uma latinha de cerveja, e dar umas boas gargalhadas para relaxar. O que não significa que não haja naquelas páginas fina ironia e pessimismo em altas dosagens.
Um exemplo é a miniestória “Camundonguinho”, presente no livro “Oportunidade para um Pequeno Desespero” (Martins Fontes), com contos e parábolas de Franz Kafka e ilustrações de Nikolaus Heidelbach:
“Quando o pequeno camundongo, que fora amado no mundo dos camundongos como nenhum outro, em uma madrugada caiu na ratoeira e com um alto berro deu sua vida pela visão de um toicinho, todos os camundongos das redondezas foram tomados por um tremor e uma agitação em suas tocas, olharam-se um aos outros em série, com os olhos piscando incontrolavelmente, enquanto a cauda esfregava o chão com um zelo inútil. Então saíram hesitantes, um empurrando o outro, todos atraídos para o local da morte. Ali jazia ele, o camundonguinho querido, o ferro na nuca, as perninhas cor-de-rosa encolhidas, paralisado o fraco corpo que teria sido tão bem agraciado com um pouco de toicinho. Os pais estavam de pé ao lado e observavam os restos de seu filho.”.
David Foster Wallace nos ensina em sua palestra que o humor de Kafka não é para ser “sacado” feito uma piada. E isto, no fundo, talvez seja o mais engraçado de tudo.
Carlos Castelo
Preservando as espécies
Marie Fox |
Em Itaparica, não existe muita preocupação com esse negócio de privacidade, visto que, desde o tempo em que a luz era desligada pela prefeitura às dez horas da noite, o sabido saía com a moça, se esgueirando entre os escurinhos do Jardim do Forte e, no dia seguinte, na quitanda de Bambano, o fato já tinha alcançado ampla repercussão, com fartura de pormenores. O mesmo acontecia em todas as outras áreas e diz o povo que, quando meu tio-avô Zé Paulo, tido como mais rico que dezoito marajás, soltava um pum, sozinho numa sala de seu casarão, os puxa-sacos já ficavam de plantão no Largo da Quitanda e, no instante em que ele passava, se manifestavam efusivamente.
– Bom dia, coronel, bufou cheiroso outra vez!
– Muito bem bufado, coronel, quem está preso quer estar solto!
Quanto a câmeras de vigilância e segurança, correntemente na moda, receio que a situação é semelhante. Manolo quis botar uma no Bar de Espanha, mas desistiu depois que soube que todo mundo estava planejando pedir para fazer um teste com a Globo. Além disso, não há muita motivação para a instalação de câmeras, porquanto o que assaltar sempre foi meio escasso e Romero Contador, que não erra nem conta de raiz quadrada, já mostrou na ponta do lápis que, se alguém roubar o nosso PIB, vai passar o resto da vida altamente endividado, pois a verdade, por mais duro que seja reconhecer, é que nossa economia não interessa nem a deputado estadual e mal sobra o que furtar para os corruptos locais.
Não havia, portanto, razão aparente para o movimento deflagrado por Zecamunista, como sempre meio de surpresa. Nada indicava que estivesse motivado para nova campanha cívica, ainda mais envolvendo questões exóticas, como a privacidade. Depois de mais uma vitoriosa temporada de pôquer por todo o Recôncavo, onde chegou a ganhar dois barcos de pesca – que rebatizou de Marx e Engels e doou à Cooperativa Comunista Deus É Mais, há muitos anos fundada por ele, em Valença – voltara à ilha na semana anterior, na discreta companhia de “duas senhoras de Nazaré das Farinhas, minhas correligionárias”, como ele me disse ao telefone, sem mais adiantar e muito menos me convidar para conhecer as duas correligionárias. Desde esse dia, fora visto apenas uma vez, comprando uma garrafinha de catuaba no Mercado e voltando apressadamente para casa, no passo ligeirinho de clandestino a que a vida de militante bolchevique o acostumou. E já se pensava que as correligionárias iam ocupá-lo por mais tempo que o esperado, ouvindo-se também a maledicência de que “Zeca não é mais aquele”, mas eis que ele, como se nada tivesse acontecido, compareceu ao Bar de Espanha, na happy hour das nove da manhã, e fez o anúncio inesperado.
– Estou fundando o Movimento de Preservação e Defesa do Corno Nacional – disse ele. – Essa viagem acabou de me convencer de que o corno está em extinção. Um dos parceiros com quem eu joguei, não vou dizer onde, contou, quase satisfeito, que foi largado pela mulher, que tinha confessado ter um amante. Mas não era por isso que largava o marido, era porque estava sufocada, queria o espaço dela. O espaço dela era na cama do outro, mas todo mundo finge que acredita e fica tudo por isso mesmo. É a globalização descaracterizando a identidade nacional, não zelamos pelo nosso patrimônio cultural, encaramos tudo com a mais leviana das inconsequências e, se não tomarmos providências agora, nossos descendentes nem saberão o significado da palavra “corno” e toda sua riqueza emocional, artística e histórica!
Com efeito, meus caros senhores, em primeiro lugar, o corno desaparece a olhos vistos, ninguém mais liga. Isso não é possível, não é sustentável, é um abismo. Já basta não haver mais mistério quanto à paternidade, por causa da novidade dos exames de DNA. A vida perdeu a emoção, nunca mais aquelas investigações de paternidade que não chegavam a nenhuma conclusão, nunca mais confissões arrepiantes no leito de morte. E a espionagem eletrônica, celulares rastreadores, gravadores secretos, câmeras minúsculas, visão noturna, detectores disso e daquilo, tudo bisbilhotado e bisbilhotável? Nada mais é sagrado? O sujeito quer ser corno em paz e não permitem, têm que incomodá-lo com denúncias e provas que ele nunca pediu, pensem nisso! Até um dos últimos bastiões da liberdade está sendo destruído! Onde ficará Lupicínio Rodrigues, onde ficará Ataulfo Alves, onde ficará a dúvida cruel, onde ficará a viagem de negócios, onde ficará a tarde no dentista?
– Eles não sabem o que dizem, são uns inocentes – disse Zeca, ao ver que suas palavras haviam ocasionado um debate de grandes proporções. – As ideias novas sempre provocam reações negativas, inclusive entre aqueles que vão se beneficiar delas, é a maldição do pioneirismo.
Aqui para nós, seu real objetivo não era bem a preservação de uma espécie. Pretendia mesmo era montar mais um esquema para beneficiar as classes populares da ilha, ou seja, quase todo mundo. Esse papo de corno não passava de marketing, destinado a aproveitar e incrementar um clima já existente. O próximo passo será bolar um serviço para o nosso nicho de mercado. O nosso nicho não é o corno comum, que esse já perdeu o sentido e ainda não sabe, mas o corno saudosista, o tradicionalista, o que tem nostalgia dos velhos tempos dourados, o que ainda acredita. Não duvidava que fosse possível obter incentivos do Ministério da Cultura. E já podia antecipar os anúncios estampados nos jornais: “Corneie seu ente querido à moda antiga, venha à nossa ilha”.
– Há outros esquemas, mas eu prefiro esse – disse ele. – Nós vamos fornecer a mão de obra.
João Ubaldo Ribeiro
sexta-feira, agosto 18
Perdição de amor
Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezassete anos.
Amava Simão uma sua vizinha , menina de quinze anos, rica herdeira , regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos.
O magistrado e sua família eram odiosos a Botelho o pai de Teresa , por motivos de litígios , em que Domingos lhes deu sentenças contra.(…) E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande património. Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um património!
Simão, porém, entre mil projectos, achara melhor o de ir para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa.
Quando descera o académico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs , e beijar a mão do pai, que para esta hora reservara uma admoestação severa, aponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria, se ele caísse em novas extravagâncias. Quando metia o pé no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga, estendendo-lhe a mão aberta como quem pede esmola, e, na palma da mão, um pequeno papel.
Sobressaltou-se o moço; e , a poucos passos distante de sua casa, leu estas linhas: “ Meu pai diz que me vai encerrar num convento por tua causa.. Sofrerei tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e achar-me-ás no convento, ou no Céu, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome hás-de responder à tua pobre Teresa.”
Camilo Castelo Branco, “ Amor de Perdição”
Amava Simão uma sua vizinha , menina de quinze anos, rica herdeira , regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos.
Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o Teresa de Albuquerque devia ser , porventura, uma excepção no seu amor.
O magistrado e sua família eram odiosos a Botelho o pai de Teresa , por motivos de litígios , em que Domingos lhes deu sentenças contra.(…) E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande património. Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um património!
Na véspera da sua ida para Coimbra , estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto como um tigre contra as grades inflexíveis da jaula. (...) com o amanhecer esfriou-lhe o sangue e renasceu a esperança com os cálculos.(…)
Simão, porém, entre mil projectos, achara melhor o de ir para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa.
Quando descera o académico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs , e beijar a mão do pai, que para esta hora reservara uma admoestação severa, aponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria, se ele caísse em novas extravagâncias. Quando metia o pé no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga, estendendo-lhe a mão aberta como quem pede esmola, e, na palma da mão, um pequeno papel.
Sobressaltou-se o moço; e , a poucos passos distante de sua casa, leu estas linhas: “ Meu pai diz que me vai encerrar num convento por tua causa.. Sofrerei tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e achar-me-ás no convento, ou no Céu, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome hás-de responder à tua pobre Teresa.”
Camilo Castelo Branco, “ Amor de Perdição”
O que faz da Noruega o melhor país para ser escritor
Se a Noruega, com seus administráveis cinco milhões de habitantes, suas produtivas reservas de petróleo e sua devoção à cultura, não é o melhor país da Europa para ser escritor, pelo menos tem as condições para sê-lo:
Um autor emergente pode sonhar em viver apenas da literatura porque as bolsas-salário equivalentes a 25.000 euros (cerca de 92.700 reais) por ano são uma realidade que não é dada a conta-gotas.
Um escritor consagrado, digamos Karl Ove Knausgård, autor da saga Minha Luta, também pode ser contemplado, e o foi, com as ajudas – de até 50% – concedidas pelo Governo por meio da Norla (Norwegian Literature Abroad) para a tradução de livros escritos em norueguês: 499 títulos vertidos para 46 idiomas em 2016, entre elas o quarto volume do rei da autoficção traduzido ao espanhol e português.
Publicar é menos arriscado do que em outros países. O Estado tem um programa de aquisição de livros para bibliotecas, único no mundo por sua dimensão, pelo qual compra a cada ano 773 exemplares de 85% dos títulos de ficção e 1.550 exemplares dos títulos de literatura infantil e juvenil, quando a tiragem média ronda os 2.500 exemplares.
Os livros de papel são isentos de impostos – uma raridade que na Europa só é reproduzida no Reino Unido, Irlanda, Albânia, Ucrânia e Geórgia – e impera um sistema de preço fixo, semelhante ao de países como Espanha, França e Alemanha, graças ao qual não se pode reduzir o valor dos exemplares até maio do ano seguinte ao da publicação.
A escrupulosa gestão dos direitos autorais por empréstimos de bibliotecas e por cópias particulares, e a educação, que fez com que a pirataria não fosse um problema, garantem que cada um receba o que é seu.
A tributação da cultura é bonificada e, como na Alemanha, Áustria, Portugal e Itália, o escritor aposentado pode receber os royalties de suas obras sem ter de renunciar à pensão, ao contrário do que acontece em países como Espanha, Irlanda e Malta.
E o mais importante, que explica o que foi dito anteriormente: existe um respeito reverencial pela cultura e pelo criador. E essa veneração tem em uma das nações mais ricas do mundo uma tradução econômica (1,44 bilhão de euros para a cultura em 2017; 85,6 milhões para o setor do livro) que pouco sofreu durante a crise e um impacto no desenvolvimento do talento nativo e sua expansão pelo mundo.
“A Noruega está exportando literatura. A qualidade média das letras do país é muito alta e eu acredito que se deve em grande parte ao apoio dado pelo Estado durante muitos anos”, resume Jostein Gaarder.
Há não muito tempo, na década de noventa, quando o escritor causou sensação com O Mundo de Sofia – que já vendeu mais de 40 milhões de exemplares – e ampliou as fronteiras da literatura norueguesa, a presença dos autores do país nas livrarias estrangeiras era apenas uma exótica anomalia, como corresponde a uma nação com menos população do que a Comunidade de Madri. Eram internacionalmente conhecidos Henrik Ibsen, um dos pais da dramaturgia moderna, e, claro, o polêmico Nobel e colaborador dos nazistas Knut Hamsun, autor do aclamado romance Fome. E pouco mais.
Hoje, apenas três décadas depois, a Noruega não só vende para o exterior seus clássicos e seus autores de romances policiais e de aventura como exporta muita literatura, e muito variada. Knausgård é a grande estrela. Mas não está sozinho. Dag Solstad, que ganhou neste ano o prêmio da Academia Sueca, o pequeno Nobel, e Kjell Askildsen, mestre do relato breve, são mundialmente conhecidos e reconhecidos. Assim como Per Petterson, Linn Ullmann, Jo Nesbø; o dramaturgo Jon Fosse; Maja Lunde, que está na boca de todos por conta de Tudo que Deixamos para Trás, ou Maria Parr, a nova Astrid Lindgren, que acaba de publicar na Espanha Tania Val de Lumbre.
As letras dessa monarquia parlamentar parecem viver uma nova era de ouro, que tem sua grande manifestação na escolha como país convidado da Feira do Livro de Frankfurt 2019. E deve dar graças a isso pela profunda crise que viveu nos anos sessenta, às vésperas de descobrir que, além de peixe, era rica em petróleo (1969) e de rejeitar pela primeira vez em um referendo (1972) sua adesão à União Europeia (UE). Em uma nação leitora, muito leitora – 90% da população lê pelo menos um livro por ano, com uma média de 16 títulos, em comparação com 60,6% que o faz na Espanha –, em uma nação com uma longa tradição de narradores e um sólido sistema de bibliotecas, surgiam muito poucos gênios literários e os títulos interessantes foram se tornando um bem escasso. E o culto Reino da Noruega, um dos países mais felizes, seguros e desenvolvidos do mundo, não podia permitir isso.
“Era uma situação muito grave para um país tão pequeno como o nosso, com uma língua territorialmente tão limitada”, diz Oliver Møystad, responsável pela ficção da Norla, na sede do órgão em Oslo. “Temia-se que pudesse desaparecer se nada fosse feito para fortalecer a literatura, que sempre foi considerada uma fonte de renovação e transmissão do idioma”. Então, para revitalizar as letras em norueguês e evitar a pressão do imperialismo cultural anglófono, o Governo socialdemocrata da época estabeleceu um formidável programa de aquisição em massa de ficção contemporânea para as bibliotecas públicas que, com o tempo, foi sendo ampliado – hoje também é concedido a livros de não-ficção para adultos, ficção e não-ficção infantil e juvenil, ficção traduzida e graphic novels – e, a julgar pelas informações fornecidas por Ingeri Engelstad, diretora-geral da editora Oktober, o objetivo buscado foi atingido com folga: “Na década de 1960 surgiam apenas um ou dois escritores iniciantes por ano. Agora são mais de 60” diz. “Na Suécia e na Dinamarca há proporcionalmente menos porque eles não podem arriscar tanto”, acrescenta Møystad.
Sua repercussão também foi essencial para a indústria. “Economicamente, é de grande importância”, prossegue Engelstad. “Possibilita aos editores apostar em escritores desconhecidos e publicar um leque mais amplo de gêneros e vertentes literárias”. 35 títulos de seu selo, todos menos um de seu catálogo de ficção de 2016, passaram pelo filtro de qualidade do comitê que decide as aquisições a serem feitas. O Governo, recentemente questionado por vender a sua transição verde ao mesmo tempo em que autoriza sondagens de petróleo, comprou 24.605 exemplares impressos e 2.450 licenças de e-books, pelos quais a Oktober recebeu o equivalente a 3 milhões de reais (60% do total); os 40% restantes vão para o autor, que, além disso, só por ter sido selecionado já recebe mais em direitos autorais (20% se for autor de ficção) do que se o não tivesse sido (15%).
Este programa de compra por atacado, em que o Governo gastou 13,8 milhões de euros (51 milhões de reais) no ano passado, é a joia da coroa de um sistema patrocinado pelo Estado com a colaboração da indústria e que conta com o respaldo solidário dos best-sellers do país. O Executivo da Noruega, que registrou uma renda per capita anual de 59.000 euros (220.000 reais) em 2016 e uma taxa de desemprego de 1,9% em junho passado, subsidia os que se aventuram pelo caminho da escrita, mas também os autores consagrados – em 2017, ele concedeu somente para autores de ficção para adultos 125 subsídios, num total de mais de 2,5 milhões de euros, segundo dados de Richard Smith, responsável pelo departamento do programa de fomento a artistas. Mas isso é feito também pelas associações de escritores. E se elas conseguem distribuir bolsas de valor significativo para que o autor pesquise, viaje ou possa deixar o seu trabalho e se dedicar exclusivamente à escrita de um livro, é porque seus fundos coletivos se alimentam de direitos autorais pelo empréstimo de livros (em 2016, o Governo pagou aos autores 11,6 milhões de euros por essa via) ou cópias feitas nas universidades, nas empresas etc. (a Kopinor, instituição que gere os direitos e licenças, distribuiu mais de 21 milhões de euros para os autores). E os que mais contribuem são os que mais vendem.
Ida Hegazi Høyer, que já está em seu sexto livro, beneficiou-se duas vezes do sistema. Recebeu duas bolsas até hoje: uma de três e outra de dois anos. Só utilizou a primeira e já recebeu o Prêmio de Literatura da UE em 2015 por Perdón (Perdão). Recebe 25.000 euros (93.000 reais) por ano. “Alguns reclamam dizendo que as bolsas-salário são baixas demais, levando em conta o alto custo de vida daqui, mas viver da sua arte não é um direito humano. Somos os escritores mais sortudos do mundo”, afirma. Maria Parr toca na mesma questão: “Houve uma grande solidariedade da parte das gerações antecedentes, que conseguiram privilégios para todos a fim de que o capitalismo não governe tudo. Deveríamos ter cuidado para não perdê-los.”
No setor, que luta pela eliminação do imposto sobre valor agregado (IVA) para os e-books (atualmente, na faixa dos 25%), há certa preocupação de que os paradigmas do singular ecossistema literário possam desmoronar. A cultura sempre foi um assunto público, e o atual Governo, liberal, defendeu e defende um modelo misto público-privado. O programa de compra de livros para as bibliotecas não está em questão, mas há uma preocupação quanto a outros pilares do sistema que estão regulados por acordos entre os agentes do setor, como o preço fixo e os contratos padronizados pelos quais os autores inscritos nas associações de escritores (que são praticamente todos), sejam eles Nesbø ou estreantes, recebem a mesma porcentagem de direitos de autor.
Jens Stoltenberg, secretário-geral da OTAN e antes primeiro-ministro do país, não cumpriu as regras do jogo quando negociou, em 2016, condições privilegiadas com a editora Gyldendal para escrever suas memórias. E colocou todo o setor contra si. Estava no direito dele, pois não pertencia a nenhuma associação de escritores, mas teve uma atitude muito incoerente para alguém que havia sido líder do partido social-democrata e defensor da solidariedade.
“Esperamos que haja uma mudança de Governo com as eleições do outono [boreal]. Faremos lobby para aprovar uma lei do livro que garanta o preço fixo e os contratos padronizados”, diz Trond Andreassen, secretário de Assuntos Exteriores da Associação Norueguesa de Escritores de Não-Ficção e Tradutores. “É importante defender o sistema que temos, que, acredito, vai além do custo”, afirma Gaarder. “Ganhei fora muito dinheiro que logo reverti para a Noruega: mais de 10 milhões de euros (37 milhões de reais) em impostos. De certo modo, o sistema, que é generoso, paga a si mesmo.”
A globalização deixou pouco espaço para comparar as leis de propriedade intelectual e as políticas de proteção ao escritor e à literatura na Europa. Os modelos são semelhantes, embora cada país se destaque por algo e se diferencie por sua melhor ou pior aplicação. A França é considerada um modelo por seu respeito à entidade do escritor; a Irlanda, um paraíso em termos fiscais (nenhum criador, nem o U2, paga imposto por sua obra); os nórdicos são conhecidos pela promoção da cultura. E a Noruega, onde a ostentação é um pecado e a modéstia se exerce como grande virtude, pode se orgulhar de ter um sistema que permite que um autor, mesmo fora do grupo dos best-sellers, busque seu sonho. Não é uma quimera. No país dos fiordes, pode-se viver da literatura sem ser comercial.
Um autor emergente pode sonhar em viver apenas da literatura porque as bolsas-salário equivalentes a 25.000 euros (cerca de 92.700 reais) por ano são uma realidade que não é dada a conta-gotas.
Um escritor consagrado, digamos Karl Ove Knausgård, autor da saga Minha Luta, também pode ser contemplado, e o foi, com as ajudas – de até 50% – concedidas pelo Governo por meio da Norla (Norwegian Literature Abroad) para a tradução de livros escritos em norueguês: 499 títulos vertidos para 46 idiomas em 2016, entre elas o quarto volume do rei da autoficção traduzido ao espanhol e português.
Publicar é menos arriscado do que em outros países. O Estado tem um programa de aquisição de livros para bibliotecas, único no mundo por sua dimensão, pelo qual compra a cada ano 773 exemplares de 85% dos títulos de ficção e 1.550 exemplares dos títulos de literatura infantil e juvenil, quando a tiragem média ronda os 2.500 exemplares.
A escrupulosa gestão dos direitos autorais por empréstimos de bibliotecas e por cópias particulares, e a educação, que fez com que a pirataria não fosse um problema, garantem que cada um receba o que é seu.
A tributação da cultura é bonificada e, como na Alemanha, Áustria, Portugal e Itália, o escritor aposentado pode receber os royalties de suas obras sem ter de renunciar à pensão, ao contrário do que acontece em países como Espanha, Irlanda e Malta.
E o mais importante, que explica o que foi dito anteriormente: existe um respeito reverencial pela cultura e pelo criador. E essa veneração tem em uma das nações mais ricas do mundo uma tradução econômica (1,44 bilhão de euros para a cultura em 2017; 85,6 milhões para o setor do livro) que pouco sofreu durante a crise e um impacto no desenvolvimento do talento nativo e sua expansão pelo mundo.
“A Noruega está exportando literatura. A qualidade média das letras do país é muito alta e eu acredito que se deve em grande parte ao apoio dado pelo Estado durante muitos anos”, resume Jostein Gaarder.
Há não muito tempo, na década de noventa, quando o escritor causou sensação com O Mundo de Sofia – que já vendeu mais de 40 milhões de exemplares – e ampliou as fronteiras da literatura norueguesa, a presença dos autores do país nas livrarias estrangeiras era apenas uma exótica anomalia, como corresponde a uma nação com menos população do que a Comunidade de Madri. Eram internacionalmente conhecidos Henrik Ibsen, um dos pais da dramaturgia moderna, e, claro, o polêmico Nobel e colaborador dos nazistas Knut Hamsun, autor do aclamado romance Fome. E pouco mais.
Hoje, apenas três décadas depois, a Noruega não só vende para o exterior seus clássicos e seus autores de romances policiais e de aventura como exporta muita literatura, e muito variada. Knausgård é a grande estrela. Mas não está sozinho. Dag Solstad, que ganhou neste ano o prêmio da Academia Sueca, o pequeno Nobel, e Kjell Askildsen, mestre do relato breve, são mundialmente conhecidos e reconhecidos. Assim como Per Petterson, Linn Ullmann, Jo Nesbø; o dramaturgo Jon Fosse; Maja Lunde, que está na boca de todos por conta de Tudo que Deixamos para Trás, ou Maria Parr, a nova Astrid Lindgren, que acaba de publicar na Espanha Tania Val de Lumbre.
As letras dessa monarquia parlamentar parecem viver uma nova era de ouro, que tem sua grande manifestação na escolha como país convidado da Feira do Livro de Frankfurt 2019. E deve dar graças a isso pela profunda crise que viveu nos anos sessenta, às vésperas de descobrir que, além de peixe, era rica em petróleo (1969) e de rejeitar pela primeira vez em um referendo (1972) sua adesão à União Europeia (UE). Em uma nação leitora, muito leitora – 90% da população lê pelo menos um livro por ano, com uma média de 16 títulos, em comparação com 60,6% que o faz na Espanha –, em uma nação com uma longa tradição de narradores e um sólido sistema de bibliotecas, surgiam muito poucos gênios literários e os títulos interessantes foram se tornando um bem escasso. E o culto Reino da Noruega, um dos países mais felizes, seguros e desenvolvidos do mundo, não podia permitir isso.
“Era uma situação muito grave para um país tão pequeno como o nosso, com uma língua territorialmente tão limitada”, diz Oliver Møystad, responsável pela ficção da Norla, na sede do órgão em Oslo. “Temia-se que pudesse desaparecer se nada fosse feito para fortalecer a literatura, que sempre foi considerada uma fonte de renovação e transmissão do idioma”. Então, para revitalizar as letras em norueguês e evitar a pressão do imperialismo cultural anglófono, o Governo socialdemocrata da época estabeleceu um formidável programa de aquisição em massa de ficção contemporânea para as bibliotecas públicas que, com o tempo, foi sendo ampliado – hoje também é concedido a livros de não-ficção para adultos, ficção e não-ficção infantil e juvenil, ficção traduzida e graphic novels – e, a julgar pelas informações fornecidas por Ingeri Engelstad, diretora-geral da editora Oktober, o objetivo buscado foi atingido com folga: “Na década de 1960 surgiam apenas um ou dois escritores iniciantes por ano. Agora são mais de 60” diz. “Na Suécia e na Dinamarca há proporcionalmente menos porque eles não podem arriscar tanto”, acrescenta Møystad.
Sua repercussão também foi essencial para a indústria. “Economicamente, é de grande importância”, prossegue Engelstad. “Possibilita aos editores apostar em escritores desconhecidos e publicar um leque mais amplo de gêneros e vertentes literárias”. 35 títulos de seu selo, todos menos um de seu catálogo de ficção de 2016, passaram pelo filtro de qualidade do comitê que decide as aquisições a serem feitas. O Governo, recentemente questionado por vender a sua transição verde ao mesmo tempo em que autoriza sondagens de petróleo, comprou 24.605 exemplares impressos e 2.450 licenças de e-books, pelos quais a Oktober recebeu o equivalente a 3 milhões de reais (60% do total); os 40% restantes vão para o autor, que, além disso, só por ter sido selecionado já recebe mais em direitos autorais (20% se for autor de ficção) do que se o não tivesse sido (15%).
Este programa de compra por atacado, em que o Governo gastou 13,8 milhões de euros (51 milhões de reais) no ano passado, é a joia da coroa de um sistema patrocinado pelo Estado com a colaboração da indústria e que conta com o respaldo solidário dos best-sellers do país. O Executivo da Noruega, que registrou uma renda per capita anual de 59.000 euros (220.000 reais) em 2016 e uma taxa de desemprego de 1,9% em junho passado, subsidia os que se aventuram pelo caminho da escrita, mas também os autores consagrados – em 2017, ele concedeu somente para autores de ficção para adultos 125 subsídios, num total de mais de 2,5 milhões de euros, segundo dados de Richard Smith, responsável pelo departamento do programa de fomento a artistas. Mas isso é feito também pelas associações de escritores. E se elas conseguem distribuir bolsas de valor significativo para que o autor pesquise, viaje ou possa deixar o seu trabalho e se dedicar exclusivamente à escrita de um livro, é porque seus fundos coletivos se alimentam de direitos autorais pelo empréstimo de livros (em 2016, o Governo pagou aos autores 11,6 milhões de euros por essa via) ou cópias feitas nas universidades, nas empresas etc. (a Kopinor, instituição que gere os direitos e licenças, distribuiu mais de 21 milhões de euros para os autores). E os que mais contribuem são os que mais vendem.
Ida Hegazi Høyer, que já está em seu sexto livro, beneficiou-se duas vezes do sistema. Recebeu duas bolsas até hoje: uma de três e outra de dois anos. Só utilizou a primeira e já recebeu o Prêmio de Literatura da UE em 2015 por Perdón (Perdão). Recebe 25.000 euros (93.000 reais) por ano. “Alguns reclamam dizendo que as bolsas-salário são baixas demais, levando em conta o alto custo de vida daqui, mas viver da sua arte não é um direito humano. Somos os escritores mais sortudos do mundo”, afirma. Maria Parr toca na mesma questão: “Houve uma grande solidariedade da parte das gerações antecedentes, que conseguiram privilégios para todos a fim de que o capitalismo não governe tudo. Deveríamos ter cuidado para não perdê-los.”
No setor, que luta pela eliminação do imposto sobre valor agregado (IVA) para os e-books (atualmente, na faixa dos 25%), há certa preocupação de que os paradigmas do singular ecossistema literário possam desmoronar. A cultura sempre foi um assunto público, e o atual Governo, liberal, defendeu e defende um modelo misto público-privado. O programa de compra de livros para as bibliotecas não está em questão, mas há uma preocupação quanto a outros pilares do sistema que estão regulados por acordos entre os agentes do setor, como o preço fixo e os contratos padronizados pelos quais os autores inscritos nas associações de escritores (que são praticamente todos), sejam eles Nesbø ou estreantes, recebem a mesma porcentagem de direitos de autor.
Jens Stoltenberg, secretário-geral da OTAN e antes primeiro-ministro do país, não cumpriu as regras do jogo quando negociou, em 2016, condições privilegiadas com a editora Gyldendal para escrever suas memórias. E colocou todo o setor contra si. Estava no direito dele, pois não pertencia a nenhuma associação de escritores, mas teve uma atitude muito incoerente para alguém que havia sido líder do partido social-democrata e defensor da solidariedade.
“Esperamos que haja uma mudança de Governo com as eleições do outono [boreal]. Faremos lobby para aprovar uma lei do livro que garanta o preço fixo e os contratos padronizados”, diz Trond Andreassen, secretário de Assuntos Exteriores da Associação Norueguesa de Escritores de Não-Ficção e Tradutores. “É importante defender o sistema que temos, que, acredito, vai além do custo”, afirma Gaarder. “Ganhei fora muito dinheiro que logo reverti para a Noruega: mais de 10 milhões de euros (37 milhões de reais) em impostos. De certo modo, o sistema, que é generoso, paga a si mesmo.”
A globalização deixou pouco espaço para comparar as leis de propriedade intelectual e as políticas de proteção ao escritor e à literatura na Europa. Os modelos são semelhantes, embora cada país se destaque por algo e se diferencie por sua melhor ou pior aplicação. A França é considerada um modelo por seu respeito à entidade do escritor; a Irlanda, um paraíso em termos fiscais (nenhum criador, nem o U2, paga imposto por sua obra); os nórdicos são conhecidos pela promoção da cultura. E a Noruega, onde a ostentação é um pecado e a modéstia se exerce como grande virtude, pode se orgulhar de ter um sistema que permite que um autor, mesmo fora do grupo dos best-sellers, busque seu sonho. Não é uma quimera. No país dos fiordes, pode-se viver da literatura sem ser comercial.
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