O seu Pedro, com seus 93 anos de idade, ainda se recuperando da chikungunya que o abateu há bem mais de um ano, não aguenta manter funcionando muito tempo depois que escurece a única porta de seu estabelecimento comercial, que tem uns dois metros de largura por um pouquinho mais de fundura. Mas enquanto tem fregueses ele não fecha a porta. Para lucrar quanto?
Bom… Um recém-conhecido que já esteve lá há três anos “reclama”: a inflação aqui foi de bem mais de cem por cento de lá pra cá. Como?! É que a dose de pinga com raízes, ervas medicinais e outras coisas que servem apenas para dar um saborzinho especial a ela, teve seu preço mais que dobrado: passou de dez centavos a dose para vinte e cinco centavos!
Estranhou? Sim: vinte e cinco centavos a dose. Tem pinga com umburana, com coquinho, pindaíba e um algumas outras coisas, que podem servir para dores de estômago, dor de não sei quê e até para levantar o “moral” dos homens. Ele indica para isso a pinga com mil-homens. Contestei esse uso, mas ele não acreditou (e um freguês também): fiz há muitos anos uma matéria sobre pinga com raízes e ervas medicinais e uma pesquisadora da Universidade de Ouro Preto me contou que o nome “cipó de mil-homens” é enganador, faz a gente pensar nele como um poder estimulante sexual, mas o efeito é exatamente o contrário: é broxante.
Esnobei bastante na birosca do seu Pedro. Acompanhado por cinco pessoas, entre moças e rapazes, paguei a primeira rodada, com cada um optando pela beberagem de sua preferência. Seis doses! Um real e cinquenta centavos. Paguei mais uma rodada, e mais uma, e mais uma… Quatro rodadas de pinga para seis pessoas, seis reais! Menos do que gastaria tomando uma dose de pinga razoável em São Paulo.
Isso aconteceu, acreditem, no início de agosto de 2017, este ano mesmo. Um dia desses. Eu estava em São José do Paiaiá, município de Nova Soure, no sertão baiano, perto de Sergipe.
Antes de ir tomar umas na birosca do seu Pedro, tinha ficado mais de três horas numa lanchonete na mesma rua (aliás, a única – há também algumas travessas), ao ar livre, debaixo de árvores, tomando cerveja. Lembrava dos meus tempos de criança numa cidadezinha minúscula do Sul de Minas: nesse tempo todo, não passou nenhum automóvel, caminhão ou qualquer outro veículo motorizado por ali. Silêncio gostoso! Só umas poucas pessoas a pé e outras a cavalo.
“Como é que você foi parar num lugar desses?”, podem me perguntar. Olha, como foi gostoso! Estava participando do III Encontro sobre livro, leitura e inclusão social no território do Nordeste II da Bahia.
Fiz uma conta: São José do Paiaiá tem cerca de 600 habitantes, e uma biblioteca comunitária com 120 mil volumes!!! São “200 volumes per capita”, poderia dizer um estatístico. Isso numa única biblioteca. E nessa conta não entram só os possíveis leitores: os 600 moradores, no caso, incluem até recém-nascidos. Onde mais tem isso? A Biblioteca Maria das Neves Prado é a maior do mundo, no gênero – biblioteca em comunidade rural.
Tudo começou quando um paiaiaense, o Geraldo Moreira Prado, que para seu desgosto não é conhecido como Paiaiá, mas como Alagoinhas, nome da “grande cidade” mais próxima do seu povoado, morando no Rio de Janeiro, se separou da mulher e teve que mudar para um apartamento menor. Dos 47 mil livros que tinha, 12 mil não cabiam na nova moradia. O que fazer? Apaixonado por livros, ele nunca optaria, por exemplo, por vender para um sebo impessoal.
Um sobrinho com 16 anos de idade, José Arivaldo, o Vadinho, propôs que criassem uma biblioteca no Paiaiá. Topou. Arrumou um caminhão e mandou os 12 mil livros para lá. Os livros chegaram no mesmo dia em que o Jornal Nacional noticiava o roubo de livros da biblioteca do Itamaraty. Claro, uma fofoqueira não deixaria isso passar em branco: tentou espalhar pelo povoado que aqueles livros que chegaram a Paiaiá eram os roubados do Itamaraty. Não convenceu ninguém, e isso serviu para divulgar a chegada dos livros. Foi em 2002.
Em seguida, o Geraldo comprou uma casa velha (“dois mil reais”, me contou), reformou, ampliou, e continuou mandando seus livros para lá. Teve apoios. Antônio Candido, por exemplo, mandou um montão de livros. O dono de um sebo mandou cerca de cinco mil revistas em quadrinhos, para alegria da criançada. E uns anos depois, Walnice Nogueira Galvão pesquisou e concluiu que era a “maior biblioteca em comunidade rural de todo o mundo”. Agora tem 120 mil volumes.
Vadinho, o sobrinho do Geraldo, formou-se em Letras, e agora estuda Biblioteconomia na Universidade Federal de Sergipe. Tem muitos planos para formar leitores. Aliás, a biblioteca do Paiaiá tem feito muitas atividades, como cursos para professores da região – mais de cem já participaram.
No Encontro deste ano, realizado à revelia de um contexto nacional anticultura, antitudo que preste, houve muitas palestras, debates, lançamentos de livros, rodas de conversa, minicursos e muitas atividades específicas para crianças. Entre os palestrantes, teve pesquisadores, professores, bibliotecários de várias universidades, da Bahia, Sergipe, Rio de Janeiro e Brasília, além da minha modesta presença como representante da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci), para falar da literatura envolvendo personagens do imaginário brasileiro.
E as crianças? Bem… Algumas das que começaram a frequentar a biblioteca e serem estimuladas pelas suas atividades, no seu início, já são hoje universitárias. Nos três dias de atividades do Encontro deste ano (3 a 5 de agosto), só num dia que tive a pachorra de calcular, com base nos ônibus vindos de Nova Soure e cidades vizinhas, chegaram mais de quatrocentas crianças. Eu olhava nos rostos delas e achava que tinham a sensação de descobertas, seja enquanto participavam das atividades do evento ou enquanto remexiam livremente nas estantes da biblioteca. Imagino que pelo menos algumas delas estejam “contaminadas” pela literatura. Cada pessoa dessas, a meu ver, é um lucro para o mundo.
Voltei de lá com uma alegria imensa, com a sensação de que a inércia que os vampiros do poder tentam nos fazer aceitar, não é tão aceita assim. Tem gente batalhando, não aceitando a ideia conformista de que o mundo (e o Brasil) é essa trolha que tentam nos impor, peitando os tempos sombrios, fazendo o que para muitos parece ser coisa de umas figuras quixotescas.
Geraldo Moreira Prado deixou Paiaiá já maior de idade, mas com apenas o curso primário. Veio de pau-de-arara pra São Paulo, para trabalhar e estudar. Gostava de ler e, trabalhando como faxineiro e porteiro de um prédio da Boca do Lixo, lia, lia muito. Quando tinha algum dinheiro, preferia comprar livros do que usar para suprir necessidades básicas.
Queria ser médico, mas como? Sem educação formal, fez um cursinho de madureza (com bolsa) durante pouco mais de um ano, para conseguir o diploma de nível ginasial e depois o de colegial. Prestou vestibular e não passou. Optou então por Letras Orientais, na USP. Estudou chinês e não aprendeu nada. Mas aproveitou que estava na universidade e fez muitas matérias optativas em outros cursos. E conseguiu se transferir para o curso de História, em 1967, mesmo ano em que entrei na Geografia, no mesmo prédio. Participamos da mesma turma de amigos de noitadas etílicas e companheiros de militância no movimento estudantil, moramos no Crusp e fomos tirados de lá pelos militares, depois do AI-5.
Depois disso, nossa turma toda se espalhou, morando em repúblicas, além das complicações políticas impostas pela ditadura, encaramos dificuldades típicas de quem não tem retaguarda de famílias ricas, mas a maioria seguiu nadando contra a corrente. Ele se destacou. Tornou-se mestre e doutor em História, trabalhou no CNPq, foi professor universitário, sempre mantendo sua paixão pelos livros. Hoje é aposentado… Quer dizer, aposentado entre aspas. É muito mais ativo do que um monte de gente que teoricamente está na ativa…
Mouzar Benedito
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