Mas existem as árvores. Uma árvore. Duas. Uma pequena vizinhança de árvores. Dão suas sombras pequenas, às vezes misturam sombras, fazem dossel para os bichos e as gentes passarem. São, vamos dizer assim, dotadas de uma bondade particular. Microbondades. — E se um pedaço da esperança estiver nas árvores individuais, nas suas vidas pequenas? — Uma coluna para as vidas pequenas. Podemos nos alegrar no fim.
É assim. Há uma pessoa. Pode ou não ter uma casa que seja seu lugar de estar na vida. Quando não, pode viver em lugares precários, um teto pouco, ou ao Deus dará. E aí é triste e revoltante. Mas vamos só um pouquinho, o espaço de um palmo de escrita, esquecer as macrorrevoltas. Existe essa pessoa aqui. Chama-se Celso e dorme encostado no edifício aqui ao lado. Esse lugar é dele. Triste, mas seu, lugar. As pessoas dormem e acordam. Tomam ou não um café da manhã. Têm em casa as provisões para ele ou as conseguem com vizinhos ou passantes. (Uns vão apressados; outros oferecem um pão. Não é mentira: há quem ofereça o pão. Não são poucos.) E, mais ou menos bem, mais ou menos mal alimentadas, vão à vida.
“A vida”. Dito assim parece uma coisa genérica. Uma ocupação do tempo. Diz o homem cheio de trabalho: tenho uma vida muito ocupada. Diz o que não tem emprego: estou com tempo na vida. Ou não: quem trabalha também tem tempo. Quem não trabalha procura, e isso toma tempo. A vida, vida mesmo, é a leveza e o peso com que as pessoas ocupam mais ou menos 16 horas de um dia. Depois vão dormir. Também é vida. Uma que se passa no escuro e nos sonhos. Vinte e quatro horas de fazer e não fazer coisas. De ver gente, de conversar, amar, se espantar com o belo e o feio. Um pôr de sol, uma vala negra. Um desastre de trem. Uns jovens tocando música no metrô. Coisas todas das vidas pequenas.
E nesse dia de vida acontecem coisas. Pessoas se apresentam diante de outras, por exemplo. Cena: alguém pede o que se chama “esmola”: tio, é pra comer... Alguém passa. Uns nem olham. Uns se afastam para a ponta da calçada: têm medo, ou nojo. Uns passam e o coração se aperta: pobrezinho, isso não devia acontecer. E vão embora, torturados por alguns segundos. Alguns minutos. Uns dão a esmola. “É pra comer, tio...”. Outros param.
Conversam. Informam-se da vida da pessoa que não tem e pede. Uns, poucos, vão até a padaria e trazem pão. E há os que, pouquíssimos, levam a pessoa que pede à padaria e dizem: “pegue o que você quer”. Depois pagam e saem. Uns cheios de bom coração realizado. Outros tristes. Merda de vida.
Nos bairros remediados, nas comunidades pobres há a bondade de vizinhança. Há quem dê aos vizinhos o pouco que tem, e, bem apertado, podia sobrar. Dividem. (Não é imagem de um coração idílico. Acontece mesmo.) Dividir o pouco é uma das formas mais belas da bondade humana. Chama-se solidariedade. A generosidade das pequenas vidas.
Sempre me surpreende, e me aperta o coração, ver que ao lado de um cadáver na rua aparecem logo quatro velas e um lençol por cima. E nos lugares das grandes tragédias, flores, velas, bilhetes. Pequenas montanhas de tristeza. Pessoas em volta, um grande silêncio. A televisão mostra, e é um espetáculo. Para quem está lá, é um abandono desconsolado. Uma pausa infeliz na pequena vida que iam levando. Já estive num lugar assim, eu e a minha família. O coração pequeno como uma casquinha de noz. Boca sem palavras. Para dizer o quê? Estava tudo lá.
Mas há também a hora de encontrar amigos, cantar, ficar alegre. Cantar para alguém é um ato de amor. Uma bondade pequena numa vida pequena. Depois ali acaba, as pessoas se separam, mas vai junto a memória do canto. E é bom. Eu venho para a minha boa casa. O Celso se encosta no edifício ao lado. É triste. É tristíssimo. Mas dormimos, e a noite abençoa tudo.
É assim. Há mais bondade e alegria nas vidas pequenas do que pensamos quando pronunciamos os macrojulgamentos. Vamos honrá-las. São tão bonitas! Merecem um olho bom, subitamente encantado.
Semana que vem voltamos às coisas sérias de intelectuais. E as vidas pequenas saem do nosso horizonte. Ou não, podemos conversar sobre poesia. Ou música. Amor. É o que fica no meio do grande e do pequeno. É um bom lugar para pensar sem esquecer.
Marcio Tavares D'Amaral
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