terça-feira, agosto 29

Paraíso lembrado

Não havia ostentação na casa grande. Todo o luxo, o exagero todo ficavam no jardim que se estendia atrás. Gramados de veludo com a sombra das árvores crescendo no fim da tarde; o roseiral, onde aprendi a sensualidade dos perfumes, e fazia besouros pretos e amarelos rastejarem na minha mão; a cerca de araçá e outras frutas vagamente proibidas: a mãe queria que a gente só comesse maçã argentina, sem saber da delícia das pitangas, ou das jabuticabas da árvore alta de onde um dia o jardineiro teve de me tirar com escada na mão.

O balanço, onde eu cantava histórias com letra e música inventadas na hora, certamente ainda balançaria ao peso das minhas memórias, se estivesse ali.

Mais adiante, o lago, talvez um pequeno açude brotando incansável de algum olho-d’água submerso, onde pesquei tanto lambari com anzol de alfinete. O puxão, susto e alegria, o risco de prata saltando sobre a água, vitória e compaixão. Mais tarde a avó preparava a fritada com o balde cheio, que eu comia com o pai, cúmplice dessas brincadeiras.

A casa dessa avó era parte do paraíso: casinhola quase antiga, com avarandado, por onde ainda caminho muitas vezes em sonho. Tudo motivo de felicidade: biscoito feito na hora, refrescos coloridos e sempre as velhas histórias. “Vó, conta a história de quando você caiu da goiabeira e quebrou o braço.” O melhor era imaginá-la criança como a gente, num tempo incalculável. O pomar eram as bergamoteiras escuras, as laranjeiras cheirosas, as espécies que se contavam nos dedos: a do céu, a ntal, a de umbigo, a tangerina.

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Meu pai plantara o matinho de eucaliptos, quase uma alameda, onde a gente corria entre um cheiro bom que nenhum spray do mundo conseguiria reproduzir. Muitas vezes no fim de tardes quentes o jardineiro queimava um monte dessas folhas, enquanto, deitada no capim morno, eu olhava os bichos, castelos, caretas, que as nuvens formavam no alto.

Do outro lado da sebe, um terreno meio abandonado, que chamávamos charco ou pântano, não sei. Sei que era a morada dos meus medos e fascinação mais secretos e intensos: à noite, ou nas madrugadas de uma criança insone, roncos, bufidos, gargalhadas, gemidos e cantorias de mil sapos e seres fantásticos me chamavam.

O mundo naquele tempo, e naquele local, era encantado: cada flor tinha o seu elfo, cada cogumelo o seu não tortinho, cada recanto de folhas a sua divindade. Os morros azuis ao redor eram habitados por Rapunzel e Bela Adormecida, havia ali cavernas com tesouros de Ali Babá.

Mas era certamente no lago o meu reino. Rodeado de salgueiros, com a labareda de uma corticeira velha, tinha no centro uma ilhota onde se chegava por um pontilhão muito precário. Houve um tempo em que ali morou um casal de veadinhos. Seus focinhos úmidos, os flancos ariscos e ternos olhos faziam parte do meu cotidiano, dentro dos muros de minha vida, quando eu ainda não era cidadã de uma capital, longe do paraíso traído. Um dia, o macho fugiu, e os empregados vaticinaram que a fêmea “morreria de saudade”. Eu a visitava todos os dias, ansiosa, e, realmente, ela se deixou morrer. Foi a primeira vez, talvez única morte por amor que testemunhei, naqueles tempos românticos, em que o coração da gente e as histórias de família, não as novelas de televisão, proviam nosso imaginário.

Na memória, tudo aquilo ainda existe, é meu ainda: cheiros, passos, ruídos, segredos. Foi aquele o chão da minha alma. Não sei como permitir que fosse vendido, que passasse a mãos estranhas, e que transformasse num monte de edifícios. Acho que eu não teria podido impedir, mas hoje me parece que não me esforcei bastante. Essa foi a única, a minha imperdoável traição.

Talvez eu seja perdoada um pouco, porque ainda levei meus filhos para viverem longas e repetidas férias naquele universo, porque me deitei com eles no capim para olharmos os castelos de nuvem, porque lhes mostrei os bichos e lhes ensinei os nomes das plantas, pesquei com eles os peixes, e andei com eles na minha própria infância. Talvez esse seja o legado mais vital que lhes deixarei.

Se houvesse como voltar, eu voltava: derrubava os edifícios que construíram sobre meus sonhos, refazia o jardim, e naturalmente traria também de volta as pessoas todas, que na lembrança ainda são, tão, lindamente, cotidianas.

E quando, com meus filhos agora uma mulher e dois homens, um dos quais morando e trabalhando em uma fazenda remota em Minas, lembro a antiga casa e o perdido paraíso, sinto que tudo aquilo, embora em mãos estranhas e transformando, ainda é nosso. Que, em qualquer lugar onde a gente esteja, ainda caminhamos naquelas trilhas de pedra, rolamos naquela grama, ainda comemos aquelas frutas, e ainda podemos sonhar aquelas fantasias.

Lya Luft 

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