Lembrei-me de um velho amigo, Jorge Valadas, antigo oficial da Armada, vive em França desde que desertou em meados dos anos 60, que assinava os seus livros traduzidos em vários países com o pseudónimo Charles Reeve, em homenagem a um dos fundadores do primeiro clube anarquista da Austrália. “Pensas em homenagear alguém com o teu pseudónimo?”, “Não, não”, respondeu-me o executivo. Ponderei que o uso de pseudónimos estava fora de moda, os editores não consideram um bom negócio e “já há décadas que se perdeu o preconceito contra a ficção, mesmo a ficção comercial ou os chamados géneros menores”. Ele parou para pensar. “Eu pago a edição”, respondeu-me de forma categórica. “Pseudónimo?”, sussurrei.
O uso de pseudónimos literários, muito usual até aos anos 50 do século passado, é normalmente associada à preocupação com a reputação ou a posteridade. Mas nem sempre foram estes os motivos. O autor de O que diz Molero – “um livro-chave do nosso tempo”, como referiu Eduardo Lourenço -, Dinis Machado, usou o pseudónimo Dennis McShade para escrever livros policiais de apelo popular, cuja receita lhe foi muito útil por ocasião do nascimento de uma filha. Marcello Mathias (1903-1999), ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1958 e 1961, e embaixador de Portugal em Paris durante 24 anos durante o Estado Novo, editou em 1973 o livro Lusco-Fusco com o pseudónimo Pablo La Noche por motivos que desconheço. O livro teve um extraordinário acolhimento por parte da crítica (tendo sido galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros e publicado e premiado em França com o “Rayonnement Français”), em 1976, já com o verdadeiro nome do autor e o título Pablo la Noche, o mesmo acontecendo depois no Rio de Janeiro (Ed. Civilização Brasileira) nos anos 90 e em 2008 pela Ed. Quetzal (Lisboa) com o mesmo título.
O imperador Dom Pedro I do Brasil usou os pseudónimos “Duende” ou “Inimigo dos marotos” em jornais para insultar inimigos políticos; Anne Rice (1941), conhecida escritora norte-americana, assina A. N. Roquelaure para se debruçar sobre temas eróticos; o também norte-americano Michael Crichton (1942) assinou John Lange para editar romances de espionagem que o ajudaram a pagar a faculdade de medicina; Machado de Assis (1839-1908) para editar crónicas ou defender opiniões políticas usou os pseudónimos Lélio e Sousa Barradas, entre outros, e às vésperas da abolição da escravatura no Brasil criticava severamente os grandes agricultores com o nome “Boas Noites” (só descoberto 50 anos após a sua morte); Jorge Luís Borges (1899-1986) usou o nome Bustos Domecq para publicar novelas policiais junto com o seu amigo escritor Adolfo Bioy Casares; Olavo Bilac (1865-1918) usou os nomes Arlequim, Pierrô, entre outros para participar de polémicas em jornais e editar folhetins, entre 1890 e 1893.
Já Victor Leal publicou O esqueleto, A mortalha de Alzira e Paula Matos ou o Monte de Socorro, no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, com um enorme êxito, textos românticos contra a dominante escola naturalista da ficção narrativa da época. A sua figura desenhada por um ilustrador, mostrava um homem magro, de monóculo, chapéu de abas largas e um comprido nariz, que não era encontrada nos cafés e meios literários. Ele não existia. Tratava-se do pseudónimo de quatro escritores, o romancista Aloísio Azevedo, Olavo Bilac, o dramaturgo Coelho Neto e o jornalista Pardal Mallet.
George Eliot e George Sand, na verdade a inglesa Mary Ann Evans e a francesa Amandine Dupin, respetivamente, em meados do século XIX, impuseram-se com os seus pseudónimos masculinos e outras os usaram para defender a causa feminista. Stephen King, especialista em livros “de terror”, criou o pseudónimo Richard Bachman para explorar a literatura de entretenimento. Enfim, o uso de pseudónimos na literatura constitui um universo que merece um estudo aprofundado.
Estávamos a almoçar em um dos mais caros restaurantes de S. Paulo e, a dado momento, recordo que ele, o executivo, disse-me em tom de brincadeira: “Não foi por teres desertado de uma fragata na cidade da Beira que Portugal perdeu a guerra colonial, mas sinto que deste uma pequeníssima ajuda moral ao êxito da Frente de Libertação de Moçambique, não achas? Uma borboleta bate as asas na China e provoca uma tempestade em… ”, e sorrimos.
Pu-lo em contacto com um editor, o livro foi publicado alguns meses depois com pseudónimo e recebi um exemplar autografado pelo correio. “És a única pessoa que sabes que o autor desse livro sou eu”, disse-me com evidente alegria alguns dias depois, pelo telefone.
A escrita de ficção é uma experiência intensa que aborda o que não queremos que esteja presente na vida, as emoções que nos governam nos momentos mais importantes, o fracasso, a dor, a morte, a mentira (um bom mentiroso só diz meias verdades), o destino de todos nós (ricos ou pobres vamos ser esquecidos), pensei, enquanto folheava o livro dele quando o redescobri no fundo de uma estante.
Dias depois, li alguns dos contos, inspirados na violência diária na cidade de S. Paulo, na literatura urbana brasileira, narrados na primeira pessoa com linguagem popular. Pensei em procurar contactá-lo. Será que iria reconhecê-lo depois de tantos anos? Dir-lhe-ia que relera o livro que ele editara no Brasil nos anos 90 do século passado, o que provocou um chuvisco em mim, não uma tempestade, certamente alguma borboleta cansada batera com pouca força as asas na China…e iríamos rir bastante, estou certo disso.
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