segunda-feira, janeiro 20

Uma morte interrompida

Na manhã da passada terça-feira comecei a receber mensagens de amigos comunicando-me a minha morte. Até a mãe dos meus filhos mais velhos me escreveu, queixando-se de que eu havia morrido sem nem ao menos telefonar a dizer adeus: “E a herança?”, perguntou. “Pensaste nisso?”

Outros amigos, quase sempre num tom muito pouco respeitoso para quem se dirige a um defunto, pediam informações sobre o além: a cerveja é boa, tem samba e futebol?

Não estranhei a morte súbita. Há dias, desde o réveillon, que venho passando mal, adiando a visita ao médico. Estranhei, sim, a ironia dos amigos mais próximos, e também não ter sentido mudança alguma. Morri, acordei, liguei a televisão, e o mundo continuava igual: Trump mentindo e disparatando; o planeta aquecendo, inundações aqui, incêndios acolá; gente morrendo de fome e outros de fartura; guerras matando uns e enriquecendo a meia dúzia de sempre. 

Saí para a rua, animado com a perspetiva de passar invisível por toda a gente, desde que não tropeçasse no garotinho d’ “O sexto sentido”, o qual, aliás, se transformou entretanto num gordinho barbudo e simpático, mas sem nenhum talento para ver fantasmas.

Não tive sorte. Convicto da minha invisibilidade, fui para as ruas de Maputo descalço, com umas bermudas velhas. Um polícia parou-me na esquina, falando comigo em inglês. Percebi logo duas coisas: 


1. Mesmo morto, continuava visível.

2. Acabava de ser confundido com um bôer sul-africano.

Em qualquer cidade da África ao sul do Saara, um branco descalço só pode ser um bôer. Bôeres insistem em andar descalços por toda a parte, talvez como uma forma de reivindicarem a sua ligação telúrica ao continente, ou como recordação das origens camponesas. Nenhum africano de pele clara gosta de ser confundido com um bôer. Indignei-me:

— Sou angolano!

O polícia lançou-me um olhar de profunda reprovação:

— E por que está descalço? Quer que o confundam com um sul-africano?

Desculpei-me: 

— É que morri!

Mostrei-lhe as mensagens dos amigos e da ex-mulher. Aquela última pareceu impressioná-lo: 

— A sua ex-senhora tem toda a razão — disse-me. — Você devia tê-la informado de que se encontrava moribundo.

— Comi alguma coisa que me fez mal no réveillon — protestei. — Estava vagamente indisposto, não moribundo. Além disso, se você consegue ver-me é porque não morri. Houve algum engano. 

— Então toda essa gente que lhe escreveu está enganada?

— Certamente. Você acha mesmo que estou morto?

— Não sei, não sou especialista. Em todo o caso, se não está morto, está descalço. Volte para casa e resolva esse assunto.

Enquanto voltava para casa ligou-me um amigo. A Televisão Pública de Angola, TPA, que anunciara o meu falecimento, ou melhor, que divulgara uma notícia dizendo que eu havia recebido um prêmio literário a título póstumo, já corrigira o erro. “Uma pena”, acrescentou o meu amigo, “porque estávamos a preparar um komba [festa na qual se celebra o morto], bem animado.”

Sugeri que se fizesse um komba pela língua portuguesa, tão maltratada nos jornais e nas televisões, não só em Angola, mas também no Brasil e até em Portugal. Ele pensou um pouco: “Pode ser. Mas quem paga a cerveja?”

José Eduardo Agualusa

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