domingo, janeiro 12

As pequenas doenças da eternidade

Na realidade não há adultos,
Há apenas jovens envelhecidos.
José Emílio Pacheco

Deus me dê a felicidade das pequenas doenças, era o que pedia a nossa vizinha Margarida Maralto. Na penumbra da sala, sentada num desgastado sofá, a senhora tricotava uma camisola de lã, sem saber para qual dos filhos a peça de roupa se destinava. Depois se vê, dizia. É consoante o tamanho em que ficar, acrescentava. Falava como se a obra mandasse nela.

Margarida costurava enquanto Júlio, o mais novo dos filhos, a penteava com uma escova de madrepérola. Júlio era o meu amigo preferido. Uma e outra vez, assisti àquela encenação e vi como, no final, o meu amigo recolhia os cabelos tomados no chão para os erguer de encontro à luz da janela. Cada cabelo brilhava como se fosse um fio de lã tricotando nuvens. Naquele momento, Júlio amarrava no céu os cabelos da mãe.

Susa Monteiro

Margarida Maralto espreitava pela janela, mas não eram nuvens que ela queria ver. Esperava pela chegada do marido. Sabia que ele a estava a trair com outra, algures num quarto da cidade. Margarida tinha os olhos em maré vaza. Mas fazia de conta de que não havia espera, de que não havia marido, de que não havia cidade. E de que ela mesmo deixava de haver. Era, então, que o seu menino a salvava. Penteava a mãe, dizia ele, para que ela nunca morresse. Nesses cuidados, a vizinha ficava curada das suas pequenas doenças. Mais do que curada: Margarida ficava eterna.

Certa vez, Júlio dirigiu-se a mim para que convencesse a sua mãe a não incomodar Deus com as suas disparatadas encomendas. A mãe sorriu, condescendente: a vantagem da pequena enfermidade, explicou ela, é que acontece sem causa nem culpa. Adoecemos porque foi essa a nossa escolha. No falso sofrimento da pequena doença esquecemos as verdadeiras e incuráveis dores com que nascemos e iremos morrer. Outra vantagem: não se gasta em remédios. Para nos curarmos basta o conforto dos outros. E beijava o filho enquanto vaticinava: tivesse ela sucessivas pequenas doenças e seria feliz a vida inteira.

De regresso a casa, eu relatava aos meus pais o que se passara na residência anexa. Não estranhes, sossegava a minha mãe. A vizinha Margarida nascera assim, já era mãe quando viu pela primeira vez a luz. Ainda criança, carregou sozinha nos pequenos braços a infância dos seus irmãos. Por isso, ela agora se devotava tanto aos filhos. Aos sábados, entrava em casa com os braços cheios: vejam meninos, trouxe arrufadas. Anunciava-se como portadora da maior fortuna. Poupara toda a semana e dos seus dedos quiromantes tinham nascido umas tantas moedas. Sentadas na cozinha, a massa das arrufadas presa entre os dentes, as crianças riam-se de coisa nenhuma. E agora que os filhos todos já tinham saído de casa, restava-lhe Júlio com a sua infatigável escova de madrepérola. A minha presença, dizia-me ela à despedida, ajudava-a a varrer a saudade desses ausentes.

Até que um dia se descobriu que Júlio sofria do coração. Uma válvula, disseram. Eu não queria ouvir: doía-me saber que Júlio estava doente. E doía-me mais ainda saber que o coração tem peças. Primeiro, neguei. Havia um erro. O médico não conhecia realmente o meu amigo para lhe diagnosticar um defeito cardíaco. O coração de Júlio era infinito. Aos poucos, porém, o diagnóstico foi ficando verdade. Júlio ria-se sorvendo o ar com pequenos goles. E ficava cansado só de sonhar. Até que a alma se tornou um peso. Incapaz de correr, Júlio abandonou o seu lugar como avançado de centro da nossa equipa. Restou-lhe o papel de árbitro. No primeiro jogo, porém, ele quase desmaiou quando tentou soprar no apito. E nunca mais assinalou nenhuma falta.

Um dia foi a vida quem assinalou falta contra Júlio Maralto. A minha mãe acordou-me cedo e levou-me pela estrada de asfalto que nos conduziu ao cemitério. Os meus dedos cravados nos dedos dela, a mão e a mãe, tão próximos os seres, tão gémeas as palavras.

Contemplei Júlio deitado num caixão e os olhos dele estavam semiabertos, os olhos dele pediam que os salvássemos daquela imobilidade. Nenhum dos adultos sabia corresponder a esse desesperado apelo. Só eu levei para casa aqueles olhos dele, arfantes e semiabertos.

No canto do cemitério, a mãe de Júlio estava sentada numa cadeira e parecia uma rainha, as costas direitas, o olhar suspenso no infinito. As pessoas debruçavam-se sobre ela e dedicavam-lhe o impossível conforto de gestos e palavras. Margarida Maralto permanecia alheia. Quando me aproximei, porém, ela segurou-me no braço e fixou-me longamente para murmurar: agora é que viver já não tem cura. Uma lágrima ameaçava soltar-se no meu rosto quando Margarida deu um jeito nos cabelos e perguntou: estou bem penteada? A minha mãe abraçou-a sem conseguir articular palavra. Foi a vizinha que a consolou: nós sabemos, somos mulheres, quem é morto sempre aparece…

Agora, todas as tardes, vou visitar Margarida, mirrada dentro do vestido negro. Naquele corpo, tão magro e escasso, não cabem nem pequenas nem grandes doenças. Já contei todos os meus ossos, anuncia como um relato dos seus afazeres diários. E conclui: os ossos que traz no corpo são os que bastam, uns para sustentar lembranças, outros para devolver à terra. Contempla os muros como se esperasse que eles florissem e ergue o pescoço para dizer que está pronta. Empunho a escova e penteio os seus cabelos cada dia mais brancos. A vizinha não demora a adormecer. E eu me retiro, pé ante pé, para não interromper as eternidades da vizinha Margarida Maralto.

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