sexta-feira, janeiro 17

O intérprete de pássaros

Emanuel Divino Tchimbamba aprendeu a gorjear durante os anos da guerra civil angolana. Era uma prática comum na guerrilha, para iludir as tropas governamentais. Os pequenos grupos de comandos comunicavam uns com os outros, escondidos entre o capim alto, imitando o canto dos pássaros. Através de códigos, trocavam informações importantes: número dos soldados inimigos, que armas transportavam, para onde se dirigiam, etc., etc. e tal ou, como se diz em Luanda, kapuete kamundanda kapolokosso.

Tchimbamba levou o estudo do gorjeio tão a sério que conseguia não só enganar as tropas do governo como, inclusive, os próprios pássaros. Ficou famoso por caçar perdizes sem fazer um único tiro, apenas chamando–as pelos respetivos nomes. Também se dizia (mas isto pode ser mito) que comandava uma esquadrilha de falcões, águias e gaviões, os quais sobrevoavam as tropas inimigas, regressando depois para informá-lo.

Susa Monteiro
Terminada a guerra, Tchimbamba começou a alugar-se para gorjear. Nunca lhe faltou trabalho. Os camponeses pagavam-lhe para que passeasse pelos milheirais, imitando os gritos dos gaviões e afugentando dessa forma os pardais e outros passarinhos. Também havia homens que o contratavam para organizar recitais, aos domingos, de manhã muito cedo, sob a janela da mulher amada. Tchimbamba conseguia ser, sozinho, uma orquestra de pássaros. Por vezes, contudo, não lhe agradando a solidão, chamava aves autênticas para que o acompanhassem.

Entrevistei Emanuel Divino Tchimbamba há alguns anos, num imenso mercado, entretanto desaparecido, da capital angolana. O antigo guerrilheiro montara uma pequena barraca, no coração do irrepreensível caos. Recebia ali quem quer que estivesse interessado em conversar com uma velha coruja, que Tchimbamba afirmava ser o espírito do lendário soba Caparandanda. A coruja, ou Caparandanda através dela, respondia a todo o tipo de questões, das mais domésticas e triviais às mais complexas e inusitadas, tendo Tchimbamba como tradutor. A maioria dos consulentes queria apenas saber quanto tempo lhes restava de vida, se o marido tinha uma amante, se o seu clube ganharia o campeonato nacional, kapuete kamundanda kapolokosso. Havia, contudo, quem trouxesse perguntas difíceis:

– Porque morremos?

– Para que serve a dor?

– O que é o tempo?

Caparandanda respondia a todas as questões. Fazia-o muitas vezes através de provérbios, que Tchimbamba tinha certa dificuldade em traduzir e cuja interpretação iria, nas semanas seguintes, originar intermináveis debates nos almoços de família dos desditosos consulentes.

Decidi tentar a minha sorte. Sentei-me, enfrentei o olhar abissal da coruja e perguntei:

– Algum dia serei feliz no amor?

A coruja soltou uma série de piados breves, soturnos, fechou os olhos e calou-se.

– Está a rir-se – traduziu Tchimbamba.

Achei aquilo uma completa falta de respeito. Contudo, era uma resposta que se adequava à personalidade de Caparandanda, soba que aterrorizou os comerciantes portugueses nos finais do século XIX, assaltando as caravanas que transportavam marfim e borracha e distribuindo o saque pelas populações locais. Pensei um pouco:

– Algum dia deixaremos de ter guerras no mundo?

Queria ouvi-la rir de novo. Isso não aconteceu. A coruja ululou uma longa resposta, que Tchimbamba traduziu com dificuldade:

– Está a dizer que, da mesma forma que a pele cobre o corpo dos homens, a sombra cobre o coração. Está a dizer que para comer o fígado da formiga é preciso primeiro aprender a estripar.

Fui-me embora convencido de que Tchimbamba era um trapaceiro simpático e criativo. Recentemente, trouxeram-me a notícia da sua morte. Não me souberam dizer a causa. Estava com um grupo de amigos, conversando, sentiu-se mal, pediu um copo com água e morreu. Simples assim. Como ele mesmo dizia, a morte é ofício dos pobres.

Voltei a pensar na frase da coruja, ou de Caparandanda ou de Tchimbamba, tanto faz. Talvez não signifique nada. É possível que, não sabendo o que dizer, o antigo guerrilheiro se divertisse a inventar provérbios obscuros. Aliás, parece-me uma ótima estratégia. Ou então, instalado no ramo mais alto da árvore dos espíritos, Caparandanda realmente viu o futuro e não gostou do que viu.

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