sexta-feira, janeiro 24

Mudar de vida

Sentia-me ridícula, os meus colegas da Faculdade de Direito falavam dos seus planos, pertencer a um prestigiado gabinete de advogados, concorrer à magistratura, enveredar pela carreira diplomática, deitar mão aos bons empregos da CEE a que Portugal acabara de aderir, e eu descarrilada, tentando justificar o pouco entusiasmo com as saídas profissionais da licenciatura, Quero ser escritora. Não levava a mal os sorrisos trocistas, sabia que a minha confissão era tanto mais infantil quanto eu nada tinha publicado, em vez de diários ou poemas próprios da juventude, escrevia romances inteirinhos que queimava na lareira de casa dos meus pais. Prometia a mim mesma, Quando eles falarem dos seus projetos e ambições, fico calada, mas chegada a hora escapava-se-me sempre, Quero ser escritora. Indiferente ao ridículo, rendida ao ridículo. O mesmo ridículo que senti há dias, quando me deixei ficar deitada num colchão de uma loja de mobiliário, enquanto outros clientes passavam por mim.

Mais coisa menos coisa, o ortopedista havia concluído, Um bom colchão e acabam-se as suas queixas. Ia perguntar, Como se sabe se um colchão é bom?, mas ele estendeu-me a mão para se despedir. Já na receção, a sua secretária, gelinho nas unhas e as sobrancelhas arqueadas num eterno espanto, cobrou-me a consulta, Quer número de contribuinte?, e eu que sim, dá jeito nos impostos, e depois a habitual confusão, 176…, o meu embaraço por não conseguir dizer um número que sei de cor desde que ninguém mo pergunte, 17667…, É melhor ver no cartão, Espere, tenho de pôr os óculos, o raio dos números são tão pequenos, aposto que na cabeça dos outros pacientes, Mas donde é que saiu esta abécula, aguardámos que a impressora pigarreante despejasse o meu recibo, Aqui tem, as melhoras, e eu, Obrigada, igualmente, desculpe, não tem de melhorar de nada, é a força do hábito, Essa porta é a da casa de banho, a da saída é ao lado, Claro, estava distraída, que confusão a minha. Nunca aprendi a compostura que os outros exibem nos consultórios médicos, nas repartições de finanças, nos lugares de tratar de assuntos sérios.

Susa Monteiro
Por entre outras peças de mobiliário, a gigantesca loja tinha dezenas de camas. Sobre cada cama, um colchão. Os preços iam das poucas centenas a milhares de euros. A variedade dos materiais também era considerável e nem sempre inteligível para mim, viscoelástico, molas ensacadas, látex, espuma, a que se seguiam as combinações, molas com viscoelástico, espuma com… Socorri-me da primeira funcionária que se cruzou comigo, alta, magra, a farda vermelha bem engomada, Há ainda mais do dobro em catálogo, esclareceu, o que procura? Expliquei-lhe as maleitas que me haviam levado ao ortopedista, Para o seu caso só estou a ver três tipos de colchões possíveis, disse, antes de me conduzir pelos corredores, Queira deitar-se neste, se faz favor. Fi-lo, timidamente, deixando os pés de fora da cama para não sujar nada, É assim que dorme? perguntou-me com rispidez. Não era, mas não tinha coragem de me enrolar em posição fetal à frente dos outros clientes que passeavam pelas avenidas bordejadas de camas com o Last Christmas, I gave you my heart a servir de banda sonora. Levantei-me ao fim de alguns segundos, Tem de ficar deitada pelo menos cinco minutos, repreendeu-me a funcionária, para perceber o que o seu corpo lhe diz. O timbre autoritário da sua voz convidava à obediência.

Ali fiquei deitada, os olhos fechados, sob as fortes luzes acesas, tentando não pensar nos outros clientes que, perto de mim, analisavam as vantagens do pack colchão e sommier, almofadas japonesas desenhadas para acompanhar a cervical e outras promoções. Terminados os cinco minutos, comecei a dar a minha opinião, Shiuuu, não diga nada agora, só por comparação é que pode saber se um colchão é bom para si, percebe?, a competente funcionária respondia-me assim de forma clara ao que eu não ousara perguntar ao ortopedista. Fez-me segui-la, parando aqui e ali, para que eu repousasse os indispensáveis cinco minutos que permitiam que o meu corpo se entendesse com os colchões que ela selecionava. Por fim, levou-me para junto da caixa registadora, Agora, sim, estamos prontas para decidir, diga-me por favor a sua opinião. Hierarquizei as minhas preferências, justificando-as como se estivesse num exame da faculdade ou numa entrevista de emprego.

Receei ter dito qualquer coisa errada ao ver a expressão da funcionária a descompor-se, Faço isto todos os dias, a voz dela era agora bamba, e garanto-lhe que tem um dom, não sei em que trabalha, mas se alguma vez quiser mudar de vida, pode ter um belo emprego. Balbuciei umas palavras sem nexo, tão perdida estava no que me parecia ser uma piada. Ah sim?, que emprego, perguntei. Experimentadora de colchões!, as pessoas sentem as diferenças óbvias, mas pouca gente dá conta dos detalhes que referiu, detalhes fundamentais para que cada um consiga encontrar o seu colchão perfeito, você é uma excelente experimentadora de colchões, pode ganhar bom dinheiro com isso. Ainda pensei tratar-se de uma ousada técnica de marketing, mas a funcionária parecia sincera.

Cedo o horizonte de uma vida se vinca e nos dobra: daqui não passas. É raro surgir uma janela que nos mostre outros horizontes, quanto mais uma porta ou um alçapão que permita aceder-lhes. Estava divertidamente seduzida pela possibilidade de outra vida, quando uma angústia me assaltou: é improvável alguém ter dois talentos verdadeiros, e se afinal a minha vocação não for escrever, mas experimentar colchões? Tento tranquilizar-me pensando que uma coisa não difere muito da outra, que ambas se podem resumir à capacidade de estar atenta a mim, quer me deite num colchão ou me entregue a uma personagem. Pelo sim, pelo não, passei a dormir no sofá da sala.
Dulce Maria Cardoso

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