O ano editorial será cheio, marcado principalmente pela publicação de novas edições das obras completas de Cabral, que trarão textos inéditos em prosa e poesia, e de pelo menos duas biografias. O autor também será homenageado no IX Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), em julho.
Após a morte de Cabral, em outubro de 1999, foram publicadas duas edições com a integralidade de seus versos: uma da editora Nova Aguilar, de 2008; e outra da Glaciar, publicada em 2014 apenas em Portugal. Ambas foram organizadas pelo poeta e imortal da ABL Antonio Carlos Secchin, grande especialista em Cabral, que também é o responsável pela nova edição da poesia, a ser publicada desta vez pela Alfaguara, em meados do ano. A cada versão da antologia, ele vai aperfeiçoando o trabalho de fixação de texto, o que significa comparar publicações revendo verso a verso em busca de erros e gralhas.
A pesquisadora Edineia Rodrigues Ribeiro encontrou o material em uma pasta do acervo do autor na Casa de Rui Barbosa, que ainda está sendo analisado em toda sua extensão. Cerca de 40 poemas já foram confirmados como inéditos por Secchin e Edineia. Outros se enquadram na categoria de dispersos (versões diferentes de poemas já publicados). Mas há muito trabalho pela frente, e outras novidades podem surgir.
Entre os inéditos, há versos surpreendentes, com o poeta investindo em assuntos pouco ou nunca abordados em sua bibliografia. O Rio, por exemplo, aparece de forma não muito positiva no poema “Rio de Janeiro”, no qual o autor discorre sobre... porque fala tão pouco sobre a cidade em sua obra. Em outro poema, “Mística na Bahia”, Cabral reflete sobre a escrita de Jorge Amado, autor que nunca havia mencionado antes, e tece comparações entre o baiano e Vinicius de Moraes. Já em “Dialeto”, publicado aqui em primeira mão, o poeta ironiza o sotaque carioca.
A prosa também aparece contemplada entre os inéditos. Edineia encontrou um discurso de 30 laudas, que Cabral teria lido em uma conferência em Recife em 1953, e no qual defende uma produção poética mais conectada com a realidade. A palestra deve entrar na antologia de prosa, que sairá pela Alfaguara com organização de Sérgio Martagão Gesteira. O livro é constituído, em sua maior parte, por um longo garimpo feito desde os anos 1990 pelo pesquisador, que conseguiu reunir 23 textos em prosa e 16 entrevistas (a edição da Nova Aguilar, de 2008, totalizava 12 textos fora do âmbito da poesia).
João Cabral de Melo Neto era conhecido como um autor discreto e fechado, que não gostava de falar de si mesmo. Curiosamente, poucos autores falaram mais de si e de sua obra quanto o pernambucano — e, para comprovar, basta ver as inúmeras entrevistas que deu a qualquer pessoa que aparecesse com um gravador. A contradição não passou despercebida pelos estudiosos. Que o digam Eucanãa Ferraz e Ivan Marques, autores, respectivamente, de uma fotobiografia e de uma biografia do autor. Os livros, que devem sair neste ano de centenário do poeta, ajudam a desfazer alguns clichês em torno de João Cabral.
Responsável por aquela que é tecnicamente a primeira biografia de peso de João Cabral de Melo Neto, o professor de literatura brasileira Ivan Marques, da USP, se baseou em grande parte nos muitos diálogos do poeta com jornalistas e pesquisadores. O livro, que ainda não tem nome e deve sair pela Todavia ainda no primeiro semestre, bebe em fontes como “O homem sem alma” (1996), em que o crítico José Castello traça um perfil do pernambucano a partir de uma série de conversas que teve com ele. Mas Marques também encontrou vasto material na própria obra de Cabral.
— No início, sua obra não tinha muitos elementos biográficos, mas isso muda a partir dos anos 1970, em que ele passa a incorporar a sua própria vida em seus escritos — observa Marques, que fechou contrato com a Todavia em 2018 e desde então viajou por cidades como Recife, Rio e Sevilha.
Nas entrevistas, o biógrafo achou informações de eventos menos conhecidos do poeta, como a sua internação em uma clínica psiquiátrica, em Recife, nos anos 40. Promissor meio-campo do América de Recife, Cabral teve que largar o futebol por causa de terríveis enxaquecas, que lhe perseguiram durante toda a vida (até a velhice, tomava seis aspirinas por dia). A internação não achou solução para as dores, assim como as cerca de 30 intervenções cirúrgicas que fez posteriormente. A causa do sintoma ainda é um mistério, e Marques não descarta algum aspecto psicológico.
Por sinal, os leitores têm tendência a associar Cabral à sua poesia, vendo nele uma figura cerebral e com total controle de suas ações. Mas o poeta era muito diferente de sua obra, acredita Marques.
O poeta Eucanãa Ferraz é outro que encontrou um Cabral bem diferente. Em muitas das imagens que reuniu para a fotobiografia, é possível ver o escritor em momentos de intimidade com a família e amigos. Uma figura relaxada e sorridente, muito distante da imagem sisuda que ficou para a posteridade.
— O livro mostra mais o lado doméstico do que a intimidade, que será preservada — diz Eucanãa. — Nas fotos vemos alguém sempre à vontade, sempre feliz na vida familiar.
Um Cabral mais pessoal também poderá ser visto em outras duas obras. Composto de fragmentos inéditos de entrevistas ao cineasta Bebeto Abrantes, “Recife/sevilha” (Autêntica) mostra a relação dele com a cidade espanhola.
Já “João Cabral de ponta a ponta”, que Antonio Carlos Secchin publicou pela Cosac Naify em 2014 (sob o título “João Cabral. Uma Fala Só Lâmina”), analisa todos os seus livros, desde a “Pedra do sono” (1942). A reedição, pela editora Cep, vai acrescentar uma farta bibliofilia em torno do poeta, como uma dedicatória que ajuda a entender melhor a ainda misteriosa rusga entre Cabral e Drummond, que se afastaram a partir dos anos 1950.
— Incluímos uma dedicatória feita por Drummond a João Cabral em um exemplar de “Claro enigma” — lembra Secchin. — É um detalhe importante da história social da literatura, porque situa até quando eles tiveram um bom relacionamento.
Outro aspecto do livro de Secchin é dar uma nova dimensão à fase final da obra de João Cabral, que não costuma ter a mesma atenção crítica do que livros como “Cão sem plumas” (1950) e “Morte e vida severina” (1965).
— Estudo Cabral desde 1977 e devo ser o único brasileiro que pode pedir aposentadoria em João Cabral depois de quase 40 anos de contribuição — brinca Secchin. — Meu maior empenho com essa obra é que se valorize mais os últimos livros do autor, que são de altíssima qualidade. Ainda há uma leitura preguiçosa que desconsidera o que ele escreveu nos anos 1960, como se ele tivesse encerrado a sua obra. Mas depois disso ele publicou “Agrestes”, “A escola das facas e “O auto do frade”, que apesar de serem menos conhecidos, são obras-primas.Bolívar Torres
— Estudo Cabral desde 1977 e devo ser o único brasileiro que pode pedir aposentadoria em João Cabral depois de quase 40 anos de contribuição — brinca Secchin. — Meu maior empenho com essa obra é que se valorize mais os últimos livros do autor, que são de altíssima qualidade. Ainda há uma leitura preguiçosa que desconsidera o que ele escreveu nos anos 1960, como se ele tivesse encerrado a sua obra. Mas depois disso ele publicou “Agrestes”, “A escola das facas e “O auto do frade”, que apesar de serem menos conhecidos, são obras-primas.Bolívar Torres
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