Pobre passado
Arrematei num leilão outro dia o número 1 de "Bazar", uma revista society editada no Rio em 1931, tendo como colaboradores grandes nomes, como Manuel Bandeira, Alvaro Moreyra, Lucio Costa, Ribeiro Couto e Henrique Pongetti. A capa, do artista plástico Gilberto Trompowsky, é bonita. Pena que o proprietário original da revista, que a encaminhou ao leilão, lhe tenha grudado etiquetas irremovíveis apregoando, em maiúsculas, "CARNAVAL DE 1931. REVISTA BEM DA ÉPOCA" e "ANO 1931. RARIDADE". E, com isso, incorporou para sempre sua grosseria à publicação.
Essa atitude airosa com o passado é comum e já foi cometida até pelos mais ilustres. O famoso Almirante, cantor, radialista, amigo de Noel Rosa e arquivista, tinha em sua coleção milhares de partituras de sambas e marchinhas publicadas entre 1930 e 1960. Na capa de todas elas, aplicou seu implacável carimbo —"ARQUIVO DO ALMIRANTE"—, às vezes cobrindo uma data ou um nome de autor. Tudo bem, Almirante queria proteger seu material. Mas precisava desfigurá-lo?
A herdeira de um escritor que teve seu romance proibido e a edição incinerada como imoral nos anos 20 descobriu-se possuidora de um raríssimo exemplar do livro. Mas, ao lê-lo, não se furtou a escrever a tinta dezenas de comentários nas margens, de enfático elogio ou crítica ao estilo do avô ou ao comportamento dos personagens.
E, em outros tempos, mais de um respeitável historiador circulou a lápis ou rasgou artigos de jornais centenários da Biblioteca Nacional para posterior consulta. Sem falar em pesquisadores que, tendo acesso à seção de obras raras, destacavam a estilete páginas de dicionários e enciclopédias, à razão de uma por dia —para ninguém notar—, e saíam com elas na carteira.
No Brasil é assim. Sempre que entro num sebo, arquivo ou biblioteca em busca do passado, fico admirado quando ainda o encontro lá.
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