sábado, janeiro 4

Felicidade

Outro dia, falando na vida do caboclo nordestino, eu disse aqui que ele não era infeliz. Ou não se sente infeliz, o que dá no mesmo. Mas é preciso compreender quanto varia o conceito de "felicidade" entre o homem urbano e essa variedade de brasileiro rural. Para o homem da cidade, ser feliz se traduz em "ter coisas": ter apartamento, rádio, geladeira, televisão, bicicleta, automóvel. Quanto mais engenhocas mecânicas possuir, mais feliz se presume. Para isso se escraviza, trabalha dia e noite, e se gaba de feliz. O homem daqui, seu conceito de felicidade é muito mais subjetivo: ser feliz não é ter coisas; ser feliz é ser livre, não precisar de trabalhar. E, mormente, não trabalhar obrigado. Trabalhar à vontade do corpo, quando há necessidade inadiável. Tipicamente, os três dias de jornal por semana que o morador deve à fazenda, segundo o costume, são chamados "a sujeição". E o melhor patrão do mundo não é o que paga mais, é o que não exige sujeição. E a situação de "meeiro" é ideal, não porque permita um maior desafogo econômico – o que nem sempre acontece, mas sim porque "meeiro" não é "sujeito".

Mónica Carretero
A gente entra na casa de um deles: é de taipa, sem reboco, o chão de terra batida (sempre muito bem varrida, tanto a casa quanto os terreiros). Uma sala, onde dormem os homens, a camarinha do casal ou das moças, o minúsculo puxado da cozinha, o fogão de barro, armado num jirau de varas. Móveis, às vezes, uma mesa pequena, dois tamboretes. Alguns possuem um baú; porém a maioria guarda os panos do uso num caixote de querosene. No fogão, as panelas de barro, duas no máximo, a lata de coar café, a chocolateira de ferver água. Noutro caixote trepado à parede, algumas colheres, uma faca, raramente um garfo; dois pratos de folha ou de ágata, duas tigelinhas de louça. Numa forquilha, o pote de água com o caneco de folha, areado como prata. Nos esteios das paredes, uma rede para cada pessoa. E pronto, está aí toda mobília. Pode haver afluência de dinheiro; há anos em que o legume se colhe em quantidade, em que o algodão dá muito. Mas nunca ocorreria, a eles, usar da abundância para a compra de objetos domésticos – mesas, cadeiras, camas, relógio de parede. Uma dona de casa mais ambiciosa pode aspirar a uma máquina de costura. Raramente a consegue. E hoje está se generalizando o uso da máquina de moer – mas porque dispensa o trabalho do pilão, muito mais penoso.

>De uma espantosa frugalidade, comem, almoço e jantar, de janeiro a dezembro, o feijão na água e sal, raramente temperado com um pedaço de jabá ou de toucinho. Farinha de mandioca, café – nada mais. E poderiam passar muito melhor; mas às mulheres não ocorre usar o milho-verde para canjica ou pamonha, nem pisar o milho seco para o cuscuz. Isso são iguarias trabalhosas, só para dia de festa, ou mesa de rico. Comem o milho assado na brasa – ainda se deem por felizes. Cabras (que eles chamam de "criação") vivem aqui à solta, sem necessidade de pastoreio nem de trato. Na seca engordam roendo casca de pau e comendo sementes do chão. Galinhas também se criam à lei da natureza. Pois raras são as famílias que melhoram a dieta com um frango, um pedaço de carne de bode. Bicho é para vender, ou como eles dizem, "negociar".

E não se culpe, por isso, apenas a pobreza. Mais a natureza do índio, que herdaram. Pobre, tão pobre quanto o caboclo é o camponês europeu, mas o hábito da poupança, geração após geração, fá-lo acumular objetos e móveis em grande quantidade, e não há dona de casa europeia, por mais pobre, que não tenha o seu pequeno tesouro de talheres, pratos, panelas de cobre, cobertores e lençóis, herdados de avós e bisavós. Elas, aqui, não guardam nada. Trastes se chamam "catrevage". O que se compra é para usar, gastar, jogar fora. Algum mais poupão que tenha o seu baú de guardados, cria logo fama de "rezina", que é o nosso sinônimo para avarento. A falta que mais envergonha um daqui é passar por "interesseiro".

Dispensam tudo que para o homem urbano é o indispensável e nem ao menos conhecem o que, para este, é o supérfluo. Têm, entretanto, o seu supérfluo, que estimam e disputam, como expressão de abastança e luxo: o vidro de perfume, a boa sanfona ou "harmônica", o dente de ouro, a dentadura postiça. Também gostam de joias, os brincos para as mulheres, os anelões para os homens, raramente um relógio de pulso. Vaqueiros, o seu luxo é no cavalo de campo, nos arreios e na roupa de couro. Nisso gastam, quando pegam em dinheiro. Também gastam em gulodices – doces de lata, guaraná, cerveja, quinado. Nunca em trastes de casa, como já disse, e jamais, oh! jamais, na casa propriamente dita. Nunca vi, em vida minha, um caboclo que se preocupasse em atijolar o chão da casa, nem que esteja na maior prosperidade. A luz é a lamparina de "gás", feita de um vidro vazio, de uma lata de conserva ou de uma velha lâmpada elétrica a que os flandeiros engenhosamente adaptam um gargalo de folha. A torcida é feita em casa, com algodão em rama.

Nessa nudez, nesse despojamento de tudo, dê-lhes Deus um inverno razoável, que sustente o legume, um pouco de água no açude e não pedem mais nada. De que é que eles gostam? Gostam de dançar, de ouvir música – pagam qualquer dinheiro por um tocador bom e obrigam o homem a tocar ininterruptamente dois, três dias seguidos. Gostam de festas de igreja, e ainda gostam mais de jogo, baralho ou dados (conhecem pouco o jogo de bicho). Namoram sobriamente e, se apreciam mulher, como é natural, pouco falam nisso. Gostam de doces de qualquer espécie, e de aluá, que é uma bebida feita com milho ou arroz fermentado e adoçada com rapadura. Adoram cachaça. Mas, acima de tudo, gostam desta terra velha, ingrata, seca, doida, pobre; e nisso estou com eles, e só por cima dela temos gosto em tirar os anos de vida, e só debaixo dela nos saberá bem o descanso, depois da morte.

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