quarta-feira, maio 31
Aquele quadro
Afastou o livro, pensou que os versos de Pound podiam ficar para depois, e resolveu gozar uma noite em que nada se devia esperar de sua parte. Uma noite de abril, o céu ainda claro. Aquela sala era calma, geralmente calmante e, assim como os três outros cômodos do apartamento, guardava trinta anos de memórias. Salas onde se viveu muito tempo acabam parecendo praias sujas: difícil saber de onde veio este ou aquele caco.
Ela sabia exatamente de onde provinha cada tralha teatral: de que peça ou de que ator. Mas no parapeito da janela havia uma tigela cheia de pedrinhas coloridas que havia apanhado às portas de uma cidade na Provença, onde fora passear com os dois filhos, então com doze e treze anos. Como era o nome daquela cidade? Visitara a mesma região diversas vezes, e sempre colhera pedras para trazer para casa. Cordões de contas em todos os tons de vermelho presos em forma de leque numa prancha que ocupava boa parte de uma parede. Por que guardava aquilo? Pilhas de livros sobre teatro subiam junto às paredes: fazia anos que não abria alguns deles. E também o pôster do Mardi Gras. Estava ali, olhando para ela, havia décadas, aquele jovem arrogante, sexy, com a roupa de losangos vermelhos e pretos e aquele ar de não me toques. Parecia-se com seu filho — bem, quer dizer, há muito tempo. George era agora um cientista quase de meia-idade. Atualmente, quando de fato olhava a reprodução (afinal, não olhamos muito para as coisas que temos nas paredes), seus olhos examinavam o outro jovem do quadro, inseguro, com seus pensativos olhos escuros, na roupa folgada de Pierrô. Sua filha, aos quinze anos, havia pedido uma fantasia de Pierrô, e ela, mãe de Cathie, entendera que era uma espécie de afirmação. Sou como ele. Preciso de um disfarce. Queria não ser insegura, mas sim como o Arlequim, que sabe que é lindo. Cathie agora não tinha nada de insegura, uma bem-sucedida matrona, com filhos, emprego e um marido satisfatório.
Sarah sabia que via aquele quadro como retrato de seus próprios filhos. Por que o mantinha ali? Muitas vezes, os pais sentem um carinho secreto por fotos de suas crias que já não têm nada a ver com a idade delas, e elas nem sempre são crianças atraentemente desamparadas.
O pôster estava ali porque sua filha, Cathie, o trouxera para casa. Não tinha nada a ver com ela, Sarah. O que podia chamar de seu? Os livros, os livros de referência: instrumentos de trabalho. E o resto da casa? Uma prolongada ronda, na época, repetida agora, a fizera repassar pratos com conchas apanhadas pelas crianças décadas antes, um armário que ainda guardava as roupas velhas delas, cartões-postais presos com percevejos num quadro de cortiça, enviados por pessoas em férias. Suas roupas? Podia afirmar que eram suas porque as tinha escolhido? Até que sim, mas haviam sido ditadas pela moda.
Naquela noite, anos antes, tinha chegado à inquietante conclusão de que muito pouco daqueles quatro grandes cômodos se achava ali por uma ponderada escolha sua. Escolha daquela parte de si própria que considerava como sendo ela mesma. Não, e decidira vasculhar as salas e jogar tudo fora… bom, quase tudo: ali estava uma coisa que ficaria, mesmo que todo o resto fosse para a lata de lixo. Era uma fotografia de verdade, que se levava a sério. Um homem agradável, um tanto preocupado talvez, ou cansado? — uma rede de finas rugas em torno de olhos azuis francos e camaradas, fios brancos entre os cabelos louros (cuja maciez de seda ainda podia sentir nos dedos), provavelmente um primeiro sinal do ataque do coração que o mataria tão jovem, aos quarenta anos. Sentado com os braços em torno de duas crianças, um menino e uma menina, de oito e nove anos. Os três sorrindo para Sarah. A foto estava numa moldura de prata, art déco, não do gosto de Sarah, mas que lhe tinha sido dada pelo marido, que a ganhara da mãe. Será que devia jogar fora a moldura, já que nunca gostara dela?
Aquele lixo todo tinha de ser jogado fora… Ali na parede de seu quarto havia um grupo de fotos. Algumas eram de sua avó e seu avô na Índia, posadas e formais, cumprindo seu dever, às quais havia acrescentado um recorte de revista, com uma moça vestida de acordo com a moda do ano em que Sarah Anstruther partira para se casar com o noivo, que ia muito bem no Serviço Civil Indiano. Essa moça não era a avó de Sarah Durham, mas todas as fotos que Sarah guardava dessa mulher que jamais conhecera mostravam uma jovem matrona encarando o mundo com competência, e a desconhecida tímida e medrosa era — Sarah Durham tinha quase certeza — muito mais relevante. Uma moça de dezoito anos, viajando para um país de que nada sabia, onde iria se casar com um jovem que mal conhecia, para tornar-se uma memsahib… bastante comum, naquela época, mas que coragem.
A vida de Sarah Durham não havia tido nenhuma escolha tão dramática. Uma biografia reduzida, do tipo que se lê nas orelhas dos livros ou em notas de programas teatrais, diria assim:
Sarah Durham nasceu em 1924 em Colchester. Dois filhos. O irmão estudou medicina. Frequentou algumas escolas bastante conceituadas para moças. Na universidade estudou francês e italiano, depois passou um ano na Universidade de Montpellier estudando música, morando com uma tia casada com um francês. Durante a guerra, foi motorista para o movimento França Livre, em Londres. Em 1946, casou-se com Alan Durham e tiveram dois filhos. Ele faleceu, deixando-a viúva aos trinta e poucos anos. Ela continuou vivendo em Londres, com os filhos.
Voltou à sala de trabalho e leu outra vez aquela passagem exemplar do livro, aquela que começava com “Envelhecer com graça…”. O trecho concluía um capítulo e o seguinte começava assim: “Aquilo de que mais gostei em minha viagem à Índia foram as manhãs, antes de o calor piorar e termos de ficar dentro de casa. Quando afinal resolvi não me casar com Rupert, tenho hoje certeza de que era o calor e não a ele que recusava. Não o amava, mas não sabia disso então. Ainda não havia aprendido o que era amar”.
Pela terceira vez, leu “Envelhecer com graça…” até o fim do capítulo. É, aquilo servia bem. Aos sessenta e cinco anos, via-se dizendo a amigos mais jovens que envelhecer não era nada, bastante agradável até, pois, ainda que se perca uma coisa ou outra, outros prazeres dos quais os jovens nem suspeitam acabam surgindo, e nos surpreendemos muitas vezes nos perguntando qual será a próxima surpresa. Dizia essas coisas de boa-fé, e, quando observava os torvelinhos emocionais de quem era até uma só década mais jovem do que ela, permitia-se ficar arrepiada diante da ideia de passar por tudo aquilo de novo — fórmula que incluía o amor. Quanto a amar, ocorreu-lhe que fazia vinte anos que se apaixonara pela última vez, ela que se apaixonava com tanta facilidade e — tinha de admitir — até com certa avidez. Não conseguia acreditar que pudesse amar de novo. Também isso ela dizia com complacência, esquecendo a dura lei segundo a qual acabamos passando por aquilo que desprezamos.
Não ia sentar-se e trabalhar… ocorreu-lhe que uma das razões para aquele exagerado não a mais uma noite trabalhando naquilo que fazia o dia inteiro era seu — sim, não havia outra palavra — medo daquela música. Aqueles lamentos de outros tempos eram como uma droga. Será que o jazz realmente a dominara como a Condessa Dié e Bernard, Pierre e Giraut? E aquela mulher que agora a ocupava — Julie Vairon, cuja música jazia ali naquelas pilhas amarelecidas sobre a mesa? Não, ela desconfiava da música. Estava em boa companhia, afinal; muitos dos grandes e sábios consideravam a música um amigo dúbio. Sempre escutara música com um certo espírito de: você não vai me dominar, nem pense nisso!
Com toda a certeza não estava nervosa por ter de se encontrar — como teria de fazer amanhã — com Stephen Ellington-Smith, chamado de brincadeira na companhia de Nosso Anjo. Não se lembrava de ter jamais ficado nervosa com esse tipo de encontro. Afinal, era sua função encontrar-se com patrocinadores, benfeitores e anjos e abrandá-los, era o que fazia o tempo todo.
Doris Lessing, "Amor, de novo"
Ela sabia exatamente de onde provinha cada tralha teatral: de que peça ou de que ator. Mas no parapeito da janela havia uma tigela cheia de pedrinhas coloridas que havia apanhado às portas de uma cidade na Provença, onde fora passear com os dois filhos, então com doze e treze anos. Como era o nome daquela cidade? Visitara a mesma região diversas vezes, e sempre colhera pedras para trazer para casa. Cordões de contas em todos os tons de vermelho presos em forma de leque numa prancha que ocupava boa parte de uma parede. Por que guardava aquilo? Pilhas de livros sobre teatro subiam junto às paredes: fazia anos que não abria alguns deles. E também o pôster do Mardi Gras. Estava ali, olhando para ela, havia décadas, aquele jovem arrogante, sexy, com a roupa de losangos vermelhos e pretos e aquele ar de não me toques. Parecia-se com seu filho — bem, quer dizer, há muito tempo. George era agora um cientista quase de meia-idade. Atualmente, quando de fato olhava a reprodução (afinal, não olhamos muito para as coisas que temos nas paredes), seus olhos examinavam o outro jovem do quadro, inseguro, com seus pensativos olhos escuros, na roupa folgada de Pierrô. Sua filha, aos quinze anos, havia pedido uma fantasia de Pierrô, e ela, mãe de Cathie, entendera que era uma espécie de afirmação. Sou como ele. Preciso de um disfarce. Queria não ser insegura, mas sim como o Arlequim, que sabe que é lindo. Cathie agora não tinha nada de insegura, uma bem-sucedida matrona, com filhos, emprego e um marido satisfatório.
Sarah sabia que via aquele quadro como retrato de seus próprios filhos. Por que o mantinha ali? Muitas vezes, os pais sentem um carinho secreto por fotos de suas crias que já não têm nada a ver com a idade delas, e elas nem sempre são crianças atraentemente desamparadas.
Tinha de se livrar de toda aquela tralha… então, de repente, sentou-se ereta na cadeira, depois se levantou e começou a caminhar pela sala. Não era a primeira vez que lhe vinha a ideia. Anos antes, olhara em torno daquela sala, cheia de coisas que acabaram indo parar ali por uma razão ou outra, e pensara: Tenho de me livrar disso tudo.
O pôster estava ali porque sua filha, Cathie, o trouxera para casa. Não tinha nada a ver com ela, Sarah. O que podia chamar de seu? Os livros, os livros de referência: instrumentos de trabalho. E o resto da casa? Uma prolongada ronda, na época, repetida agora, a fizera repassar pratos com conchas apanhadas pelas crianças décadas antes, um armário que ainda guardava as roupas velhas delas, cartões-postais presos com percevejos num quadro de cortiça, enviados por pessoas em férias. Suas roupas? Podia afirmar que eram suas porque as tinha escolhido? Até que sim, mas haviam sido ditadas pela moda.
Naquela noite, anos antes, tinha chegado à inquietante conclusão de que muito pouco daqueles quatro grandes cômodos se achava ali por uma ponderada escolha sua. Escolha daquela parte de si própria que considerava como sendo ela mesma. Não, e decidira vasculhar as salas e jogar tudo fora… bom, quase tudo: ali estava uma coisa que ficaria, mesmo que todo o resto fosse para a lata de lixo. Era uma fotografia de verdade, que se levava a sério. Um homem agradável, um tanto preocupado talvez, ou cansado? — uma rede de finas rugas em torno de olhos azuis francos e camaradas, fios brancos entre os cabelos louros (cuja maciez de seda ainda podia sentir nos dedos), provavelmente um primeiro sinal do ataque do coração que o mataria tão jovem, aos quarenta anos. Sentado com os braços em torno de duas crianças, um menino e uma menina, de oito e nove anos. Os três sorrindo para Sarah. A foto estava numa moldura de prata, art déco, não do gosto de Sarah, mas que lhe tinha sido dada pelo marido, que a ganhara da mãe. Será que devia jogar fora a moldura, já que nunca gostara dela?
Por que não tinha feito uma faxina completa? Porque havia estado ocupada demais. Alguma peça nova no teatro, provavelmente. Trabalhava tanto, sempre.
Sarah parou diante de um espelho. Viu uma mulher bonita, aparentando meia-idade, com um bom corpo. Os cabelos, sempre presos por questão de conveniência — não podia se dar ao trabalho de ir a cabeleireiros —, eram descritos no passaporte como louros, mas eram, antes, de um amarelo sem graça, como latão sem polir. Com toda a certeza ela já devia ter pelo menos um ou outro fio branco. Mas essa tonalidade quase nunca fica grisalha, nem branca, pelo menos até a velhice propriamente dita. Enquanto jovens, aqueles que têm os cabelos dessa cor almejam tonalidades mais vivas e podem tingi-los. Quando mais velhos, agradecidos, deixam-nos em paz e são acusados de tingi-los. Ela quase nunca se olhava no espelho: não se preocupava com a aparência. Por que deveria? Consideravam-na sempre vinte anos mais nova que sua idade real. Num outro espelho, além da porta aberta de seu quarto, parecia ainda mais nova. Torcendo o corpo conseguia ver-se refletida nele. Tinha as costas eretas e era cheia de vitalidade. O osteopata com quem se tratara por causa de dores nas costas (que agora pareciam voltar a se manifestar) perguntara se havia sido bailarina. Os dois espelhos estavam ali porque décadas antes seu marido dissera: “Sarah, essas salas são muito escuras. Não dá para deixá-las mais claras?”. As paredes foram então pintadas de um branco brilhante, mas tinham esmaecido, e as cortinas que haviam sido brancas eram agora cor-de-creme escuro. Quando o sol entrava, o quarto se enchia de luz, sombra, reflexos em movimento, um espaço de sugestões e possibilidades. Sem sol, os espelhos mostravam a mobília pairando numa luz imóvel como água. Uma luz perolada. Repousante. Gostava desses cômodos, não podia imaginar nada pior do que ter de deixá-los. Podiam ser criticados por estarem em mau estado. Era o que seu irmão dizia, mas ela achava a casa dele chique e horrenda. Fazia anos que nada mudava ali. As salas se fundiam suavemente em aceitação: do fato de ela estar sempre tão ocupada e, no fundo, não muito interessada, e do modo como os anos se acumulavam, deixando depositados sedimentos, livros e fotografias, cartões-postais e coisas do teatro.
Aquele lixo todo tinha de ser jogado fora… Ali na parede de seu quarto havia um grupo de fotos. Algumas eram de sua avó e seu avô na Índia, posadas e formais, cumprindo seu dever, às quais havia acrescentado um recorte de revista, com uma moça vestida de acordo com a moda do ano em que Sarah Anstruther partira para se casar com o noivo, que ia muito bem no Serviço Civil Indiano. Essa moça não era a avó de Sarah Durham, mas todas as fotos que Sarah guardava dessa mulher que jamais conhecera mostravam uma jovem matrona encarando o mundo com competência, e a desconhecida tímida e medrosa era — Sarah Durham tinha quase certeza — muito mais relevante. Uma moça de dezoito anos, viajando para um país de que nada sabia, onde iria se casar com um jovem que mal conhecia, para tornar-se uma memsahib… bastante comum, naquela época, mas que coragem.
A vida de Sarah Durham não havia tido nenhuma escolha tão dramática. Uma biografia reduzida, do tipo que se lê nas orelhas dos livros ou em notas de programas teatrais, diria assim:
Sarah Durham nasceu em 1924 em Colchester. Dois filhos. O irmão estudou medicina. Frequentou algumas escolas bastante conceituadas para moças. Na universidade estudou francês e italiano, depois passou um ano na Universidade de Montpellier estudando música, morando com uma tia casada com um francês. Durante a guerra, foi motorista para o movimento França Livre, em Londres. Em 1946, casou-se com Alan Durham e tiveram dois filhos. Ele faleceu, deixando-a viúva aos trinta e poucos anos. Ela continuou vivendo em Londres, com os filhos.
Uma mulher calma e razoável… verdade que a morte de Alan a havia lançado na infelicidade por algum tempo, mas isso acabara passando. Era assim que via as coisas agora, sabendo que estava escolhendo não lembrar a miséria daquela época. Hipócrita memória… gentil memória que lhe permitia evocar uma vida tranquila.
Voltou à sala de trabalho e leu outra vez aquela passagem exemplar do livro, aquela que começava com “Envelhecer com graça…”. O trecho concluía um capítulo e o seguinte começava assim: “Aquilo de que mais gostei em minha viagem à Índia foram as manhãs, antes de o calor piorar e termos de ficar dentro de casa. Quando afinal resolvi não me casar com Rupert, tenho hoje certeza de que era o calor e não a ele que recusava. Não o amava, mas não sabia disso então. Ainda não havia aprendido o que era amar”.
Pela terceira vez, leu “Envelhecer com graça…” até o fim do capítulo. É, aquilo servia bem. Aos sessenta e cinco anos, via-se dizendo a amigos mais jovens que envelhecer não era nada, bastante agradável até, pois, ainda que se perca uma coisa ou outra, outros prazeres dos quais os jovens nem suspeitam acabam surgindo, e nos surpreendemos muitas vezes nos perguntando qual será a próxima surpresa. Dizia essas coisas de boa-fé, e, quando observava os torvelinhos emocionais de quem era até uma só década mais jovem do que ela, permitia-se ficar arrepiada diante da ideia de passar por tudo aquilo de novo — fórmula que incluía o amor. Quanto a amar, ocorreu-lhe que fazia vinte anos que se apaixonara pela última vez, ela que se apaixonava com tanta facilidade e — tinha de admitir — até com certa avidez. Não conseguia acreditar que pudesse amar de novo. Também isso ela dizia com complacência, esquecendo a dura lei segundo a qual acabamos passando por aquilo que desprezamos.
Não ia sentar-se e trabalhar… ocorreu-lhe que uma das razões para aquele exagerado não a mais uma noite trabalhando naquilo que fazia o dia inteiro era seu — sim, não havia outra palavra — medo daquela música. Aqueles lamentos de outros tempos eram como uma droga. Será que o jazz realmente a dominara como a Condessa Dié e Bernard, Pierre e Giraut? E aquela mulher que agora a ocupava — Julie Vairon, cuja música jazia ali naquelas pilhas amarelecidas sobre a mesa? Não, ela desconfiava da música. Estava em boa companhia, afinal; muitos dos grandes e sábios consideravam a música um amigo dúbio. Sempre escutara música com um certo espírito de: você não vai me dominar, nem pense nisso!
Não: nada de trabalho e nada de música. Estava tão inquieta que podia… subir uma montanha, andar vinte quilômetros. Sarah descobriu que estava arrumando a sala, que sem dúvida precisava de arrumação. Podia aproveitar e passar o aspirador… por que não nos quatro cômodos? Na cozinha. No banheiro. Por volta da meia-noite, o apartamento era um modelo de perfeição. Qualquer um pensaria que aquela mulher se orgulhava de suas virtudes de dona de casa. Em vez disso, tinha uma faxineira que vinha uma vez por semana, e só.
Com toda a certeza não estava nervosa por ter de se encontrar — como teria de fazer amanhã — com Stephen Ellington-Smith, chamado de brincadeira na companhia de Nosso Anjo. Não se lembrava de ter jamais ficado nervosa com esse tipo de encontro. Afinal, era sua função encontrar-se com patrocinadores, benfeitores e anjos e abrandá-los, era o que fazia o tempo todo.
Doris Lessing, "Amor, de novo"
Avanço tecnológico
Essa tecnologia toda precisa de pilha de eletricidade. O livro não tem nada disso, põe debaixo do braço e leva para onde quiser. Não tem que anotar em que parte parou, basta dobrar o cantinho e já sabe. É bonito no livro quando você risca o que lê. Acho bonito quando pego livros que li e vejo onde risquei e penso “já não sei mais por que marquei isso”. Que coisa boa! Naquele dia, aquilo teve uma função.Bartolomeu Campos de Queirós
Biscoitos e pirâmides
Um dia, pouco antes de sua morte, Guimarães Rosa me telefonou para conversar, como acontecia de vez em quando, e bisbilhotou:
– Que é que você está fazendo?
Contei-lhe que estava no momento tentando transformar um conto numa pequena peça de teatro. O grande romancista, conforme já contei mais de uma vez e outros por mim, me advertiu então com ar blandicioso:
– Não faça biscoitos: faça pirâmides...
Na hora julguei entender o sentido lógico desta metáfora. A primeira conotação que ela sugeria era de dimensão, a segunda de duração – de ambas decorrendo um critério de qualidade: um biscoito é pequeno, portanto desprezível – uma pirâmide é monumental, portanto grandiosa; um biscoito é consumível, logo efêmero – uma pirâmide é permanente, logo eterna.
Não só a tal peça de teatro não saiu, como a partir de então me senti esmagado pelo conselho do autor de Grande sertão: veredas e Corpo de baile – duas pirâmides, sem dúvida alguma. Que diabo eu podia pretender com meus livros? Um crítico mais realista chegou, mesmo, a me expulsar da literatura, afirmando numa revista que eu era inventor de um gênero composto de pequenos escritos sem qualquer dimensão literária. Ou seja: de biscoitos.
Passei a sonhar então com um romance de no mínimo oitocentas páginas – ou vários romances em série, dez, quinze, que fossem uma espécie de painel da vida contemporânea, apresentado através da minha experiência vital – qualquer coisa assim, gigantesca, piramidal – a minha pirâmide. Enquanto isso, ia produzindo os meus biscoitos, sem aspirar para eles uma condição de grandeza e perenidade.
Com o tempo, todavia, a coisa se complicou um pouco: não apenas minha pirâmide não saía, esfacelando-se em sucessivos biscoitos, como tomei consciência de que nem só de pirâmides vive a literatura. A própria cultura universal, desde a antiguidade clássica, se compôs de grandes monumentos erguidos por Platão, Aristóteles e outros gigantes, mas entre eles encontramos também os escassos fragmentos de Heráclito, meros biscoitos e nem por isso menos preciosos.
Para ficarmos na prosa da ficção: se na Rússia Tolstói, Dostoiévski e Gógol ergueram pirâmides, outros grandes escritores fizeram seus biscoitos com igual sucesso, como Púchkin, Tchekhov, Andreiev. Na França, se temos de um lado Balzac, Proust, Stendhal, Rousseau, Victor Hugo, não sei se incluiria Flaubert entre eles, ou de preferência na categoria de Montaigne, La Fontaine, Voltaire, Maupassant, Merimée, Molière, e tantos outros fazedores de biscoito. (Para não falar em pipoqueiros, como Jules Renard.)
Sartre podia pretender estar entre os primeiros, mas sem dúvida Gide e Camus se alinharam entre os segundos. Na Inglaterra, a tradição das pirâmides foi seguida por Dickens, Fielding, Thackeray, Charlotte Brontë, Jane Austen, mas dificilmente uma Emily Brontë poderia ser mencionada entre eles. No nosso tempo, Grahan Greene, por exemplo, veio produzindo seguidos biscoitos com grande sucesso.
Se Joyce partiu para a pirâmide, Kafka contribuiu para revolucionar a literatura moderna com os seus biscoitos de absurdo.
Nos Estados Unidos, Melville ergue uma pirâmide do tamanho de uma baleia, enquanto Poe e Mark Twain fabricam seus biscoitos, uns de terror, outros de humor. John dos Passos erige seu monumento à civilização americana, enquanto Hemingway passa a vida tentando o seu sobre a guerra, para acabar conquistando o prêmio Nobel depois de produzir sua obra-prima, um biscoito: O velho e o mar.
E tem também o grande biscoiteiro Jorge Luis Borges.
No Brasil, destaca-se a pirâmide erguida por Euclides da Cunha. Em compensação, o maior de nossos ficcionistas, Machado de Assis foi a vida inteira um emérito fabricante de biscoitos – embora a sua obra, em conjunto, venha a ser piramidal. Uma sucessão de pirâmides se prolongou até nossos dias, com o próprio Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Octavio de Faria, Erico Verissimo, Pedro Nava e suas memórias, Jorge Amado e a sua obra regional, culminando com o excelente Tocaia grande.
Sem querer puxar a brasa para a minha sardinha, no caso para os meus biscoitos: tão importantes como expressão do romance moderno entre nós são também, por exemplo, um Oswaldo França Júnior ou uma Clarice Lispector com os seus. Não se falando nesses dois mestres do biscoito, um na crônica e outro no conto, que vêm a ser Rubem Braga e Dalton Trevisan.
(Tudo considerado, não adianta sofismar – aqui muito entre nós, Guimarães Rosa tinha razão: biscoito pode ser muito gostoso, principalmente ao café pela manhã, mas bem que deve ser glorioso subir numa pirâmide, para que, do alto, quarenta séculos nos contemplem.)
Fernando Sabino
– Que é que você está fazendo?
Contei-lhe que estava no momento tentando transformar um conto numa pequena peça de teatro. O grande romancista, conforme já contei mais de uma vez e outros por mim, me advertiu então com ar blandicioso:
– Não faça biscoitos: faça pirâmides...
Na hora julguei entender o sentido lógico desta metáfora. A primeira conotação que ela sugeria era de dimensão, a segunda de duração – de ambas decorrendo um critério de qualidade: um biscoito é pequeno, portanto desprezível – uma pirâmide é monumental, portanto grandiosa; um biscoito é consumível, logo efêmero – uma pirâmide é permanente, logo eterna.
Não só a tal peça de teatro não saiu, como a partir de então me senti esmagado pelo conselho do autor de Grande sertão: veredas e Corpo de baile – duas pirâmides, sem dúvida alguma. Que diabo eu podia pretender com meus livros? Um crítico mais realista chegou, mesmo, a me expulsar da literatura, afirmando numa revista que eu era inventor de um gênero composto de pequenos escritos sem qualquer dimensão literária. Ou seja: de biscoitos.
Passei a sonhar então com um romance de no mínimo oitocentas páginas – ou vários romances em série, dez, quinze, que fossem uma espécie de painel da vida contemporânea, apresentado através da minha experiência vital – qualquer coisa assim, gigantesca, piramidal – a minha pirâmide. Enquanto isso, ia produzindo os meus biscoitos, sem aspirar para eles uma condição de grandeza e perenidade.
Com o tempo, todavia, a coisa se complicou um pouco: não apenas minha pirâmide não saía, esfacelando-se em sucessivos biscoitos, como tomei consciência de que nem só de pirâmides vive a literatura. A própria cultura universal, desde a antiguidade clássica, se compôs de grandes monumentos erguidos por Platão, Aristóteles e outros gigantes, mas entre eles encontramos também os escassos fragmentos de Heráclito, meros biscoitos e nem por isso menos preciosos.
Para ficarmos na prosa da ficção: se na Rússia Tolstói, Dostoiévski e Gógol ergueram pirâmides, outros grandes escritores fizeram seus biscoitos com igual sucesso, como Púchkin, Tchekhov, Andreiev. Na França, se temos de um lado Balzac, Proust, Stendhal, Rousseau, Victor Hugo, não sei se incluiria Flaubert entre eles, ou de preferência na categoria de Montaigne, La Fontaine, Voltaire, Maupassant, Merimée, Molière, e tantos outros fazedores de biscoito. (Para não falar em pipoqueiros, como Jules Renard.)
Sartre podia pretender estar entre os primeiros, mas sem dúvida Gide e Camus se alinharam entre os segundos. Na Inglaterra, a tradição das pirâmides foi seguida por Dickens, Fielding, Thackeray, Charlotte Brontë, Jane Austen, mas dificilmente uma Emily Brontë poderia ser mencionada entre eles. No nosso tempo, Grahan Greene, por exemplo, veio produzindo seguidos biscoitos com grande sucesso.
Se Joyce partiu para a pirâmide, Kafka contribuiu para revolucionar a literatura moderna com os seus biscoitos de absurdo.
Nos Estados Unidos, Melville ergue uma pirâmide do tamanho de uma baleia, enquanto Poe e Mark Twain fabricam seus biscoitos, uns de terror, outros de humor. John dos Passos erige seu monumento à civilização americana, enquanto Hemingway passa a vida tentando o seu sobre a guerra, para acabar conquistando o prêmio Nobel depois de produzir sua obra-prima, um biscoito: O velho e o mar.
E tem também o grande biscoiteiro Jorge Luis Borges.
No Brasil, destaca-se a pirâmide erguida por Euclides da Cunha. Em compensação, o maior de nossos ficcionistas, Machado de Assis foi a vida inteira um emérito fabricante de biscoitos – embora a sua obra, em conjunto, venha a ser piramidal. Uma sucessão de pirâmides se prolongou até nossos dias, com o próprio Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Octavio de Faria, Erico Verissimo, Pedro Nava e suas memórias, Jorge Amado e a sua obra regional, culminando com o excelente Tocaia grande.
Sem querer puxar a brasa para a minha sardinha, no caso para os meus biscoitos: tão importantes como expressão do romance moderno entre nós são também, por exemplo, um Oswaldo França Júnior ou uma Clarice Lispector com os seus. Não se falando nesses dois mestres do biscoito, um na crônica e outro no conto, que vêm a ser Rubem Braga e Dalton Trevisan.
(Tudo considerado, não adianta sofismar – aqui muito entre nós, Guimarães Rosa tinha razão: biscoito pode ser muito gostoso, principalmente ao café pela manhã, mas bem que deve ser glorioso subir numa pirâmide, para que, do alto, quarenta séculos nos contemplem.)
Fernando Sabino
segunda-feira, maio 29
Drummond e a pedra
No caminho cheio de pedras, só Drummond viu com suas retinas fatigadas que no meio tinha uma que os outros poetas todos, com suas retinas descansadas, não tinham conseguido ver.
A literatura brasileira e Dalton Trevisan moram na mesma cidade: Curitiba. Nas raras vezes em que ela e ele são vistos, estão sempre juntos.
No dia em que finalmente a Academia lhe concedeu o Nobel, o velho escritor reconciliou-se com Deus e para celebrar o ato pediu ao Senhor que, assim que pudesse, lhe desse o bicampeonato.
Dou graças à minha tristeza, que, sempre atenta, jamais me deixou ser como esses tipos capazes de se afogar em gargalhadas diante de um bufão imitador de passarinho.
Andei falando em nome da Poesia. Prenderam-me aqui, desmascararam-me ali, surraram-me acolá. E onde me prenderam, e onde me desmascararam, e onde me surraram eu me declarei culpado, culpado, culpado. Teria sido feliz, mas não. Acusaram-me sempre de tudo. De farsa, de engodo, de trapaça. Mas jamais do pecado imortal da simonia.
Eu era um menino e já sabia que, se tinha alguma vantagem sobre os outros, ela era a tristeza que me angustiava o peito e pedia algo mais que as lágrimas para expressar-se.
Se eu precisasse confiar minha tristeza às mãos de alguém, escolheria as de Chopin.
Sou um personagem sem vontade e sem coragem. Sou o rei dos poltrões. Se minha vida fosse uma peça de teatro e tivesse três atos, precisaria ter, pela lei das proporções, três mil trezentas e trinta e três omissões.
É isso mesmo, pode crer. A vida é para os tolos e os felizes, enquanto assim eles puderem ser.
Raul Drewnick
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A literatura brasileira e Dalton Trevisan moram na mesma cidade: Curitiba. Nas raras vezes em que ela e ele são vistos, estão sempre juntos.
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No dia em que finalmente a Academia lhe concedeu o Nobel, o velho escritor reconciliou-se com Deus e para celebrar o ato pediu ao Senhor que, assim que pudesse, lhe desse o bicampeonato.
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Dou graças à minha tristeza, que, sempre atenta, jamais me deixou ser como esses tipos capazes de se afogar em gargalhadas diante de um bufão imitador de passarinho.
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Andei falando em nome da Poesia. Prenderam-me aqui, desmascararam-me ali, surraram-me acolá. E onde me prenderam, e onde me desmascararam, e onde me surraram eu me declarei culpado, culpado, culpado. Teria sido feliz, mas não. Acusaram-me sempre de tudo. De farsa, de engodo, de trapaça. Mas jamais do pecado imortal da simonia.
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Eu era um menino e já sabia que, se tinha alguma vantagem sobre os outros, ela era a tristeza que me angustiava o peito e pedia algo mais que as lágrimas para expressar-se.
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Se eu precisasse confiar minha tristeza às mãos de alguém, escolheria as de Chopin.
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Sou um personagem sem vontade e sem coragem. Sou o rei dos poltrões. Se minha vida fosse uma peça de teatro e tivesse três atos, precisaria ter, pela lei das proporções, três mil trezentas e trinta e três omissões.
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É isso mesmo, pode crer. A vida é para os tolos e os felizes, enquanto assim eles puderem ser.
Raul Drewnick
História de Kessi
O pai havia morrido. Kessi vivia com sua mãe, e era o melhor caçador. Cada dia recolhia peças de caça abatida para a mesa materna e alimentava os deuses com suas oferendas. Kessi enamorou-se de Shintalimeni, a mais jovem de sete irmãs. Esqueceu a caça, e entregou-se ao ócio e ao amor. A mãe repreendeu-o: O melhor caçador, caçado! O filho tomou a lança, chamou sua matilha e partiu. Porém o homem que esquece os deuses, pelos deuses é esquecido.
As feras se haviam escondido e ele vagou durante três meses.
Exausto, dormiu ao pé de uma árvore. Ali habitavam os duendes do bosque, e eles decidiram devorar o jovem. Mas esta era também a terra onde viviam os espíritos dos mortos, e o pai de Kessi imaginou um estratagema. “Gnomos! Por que vão matá-lo? Roubem sua capa para que sinta frio e se vá”. Os gnomos são gatunos e Kessi acordou com o vento que lhe assoviava nos ouvidos e lhe flagelava as costas. Dirigiu-se encosta abaixo, até uma luz que bruxoleava solitária no meio do vale.
Teve sete sonhos: Viu-se diante de uma enorme porta, que em vão tentou abrir. Viu-se nos fundos de uma casa onde trabalhavam as criadas, e uma enorme ave arrebatou uma delas. Viu-se em uma vasta pradaria que um grupo de homens percorria placidamente; brilhou um relâmpago, e um raio caiu sobre eles. Mudou a cena, e os antepassados de Kessi estavam reunidos em redor do fogo, e o avivavam. Viu-se com as mãos atadas e os pés presos com correntes, como colares de mulher.
Estava pronto para sair a caçar, e viu de um lado da porta um dragão, e do outro horrendas harpias.
Contou à sua mãe o ocorrido. A mãe o animou (“O junco se inclina sob a chuva e o vento, porém torna a erguer-se”) e lhe entregou uma meada de lã azul, cor que protege de feitiços e danos.
Kessi partiu em direção da montanha.
Os deuses continuavam ofendidos: não havia feras para caçar.
Kessi vagou sem rumo até cansar-se. Achou-se em frente a uma grande porta que era guardada por um dragão e horrendas harpias. Não conseguiu abrir a porta, ninguém respondeu aos seus chamados e decidiu esperar. O sono apoderou-se dele. Quando despertou, anoitecia e ele viu uma luz intermitente que se aproximava, se agigantava e terminou por cegá-lo: dela surgiu um homem alto e luminoso. Disse que aquela era a porta do ocaso, e que por trás dela se achava o reino dos mortos. O mortal que a transpusesse não poderia voltar. “Como podes tu, então, passar por ela?” “Eu sou o sol”, respondeu o deus, e entrou.
Do outro lado, os espíritos dos mortos esperavam para dar as boas vindas ao deus sol em sua visita noturna. Encontrava-se aí Udipsharri, pai de Shintalimeni. Ao ouvir a voz de seu genro, regozijou-se de que fosse ele o primeiro mortal a vir visitar os mortos. Suplicou ao sol que permitisse sua entrada.
— Muito bem, que passe a porta e me siga pelo caminho escuro; não regressará ao reino dos vivos. Atem suas mãos e seus pés para que não possa escapar. Quando tenha visto tudo, eu o matarei.
Kessi encontrou-se diante de um túnel comprido e estreito. O deus sol se distanciava e se reduzia a um ponto. Udipsharri atou as mãos e os pés de Kessi e convidou-o a seguir a luz mortiça. Kessi viu os espíritos dos mortos, que avivavam o fogo: eram os ferreiros do deus, que forjam os raios que ele arroja à terra. Sentiu que milhares de pássaros revoavam em torno. “Estas, disse Udipsharri, são as aves da morte, que levam ao mundo subterrâneo as almas dos mortos”. Kessi reconheceu a ave gigantesca de seus sonhos. Finalmente chegaram à porta do amanhecer. Kessi devia morrer, porém pediu perdão. O deus sol lembrou como Kessi se levantava na alvorada, caçava e fazia oferendas aos deuses. “Bem, determinou, irás junto com tua esposa e suas seis irmãs ao céu, de onde juntos contemplarão as estrelas eternas”.
Nas noites claras se vê, nas pradarias do céu, o Caçador, que tem as mãos atadas e os pés ligados com cadeias como colares de mulher. Junto do caçador resplandecem sete estrelas.
Conto hitita do segundo milênio a.C.
Jorge Luis Borges, "Livro de Sonhos"
As feras se haviam escondido e ele vagou durante três meses.
Exausto, dormiu ao pé de uma árvore. Ali habitavam os duendes do bosque, e eles decidiram devorar o jovem. Mas esta era também a terra onde viviam os espíritos dos mortos, e o pai de Kessi imaginou um estratagema. “Gnomos! Por que vão matá-lo? Roubem sua capa para que sinta frio e se vá”. Os gnomos são gatunos e Kessi acordou com o vento que lhe assoviava nos ouvidos e lhe flagelava as costas. Dirigiu-se encosta abaixo, até uma luz que bruxoleava solitária no meio do vale.
Teve sete sonhos: Viu-se diante de uma enorme porta, que em vão tentou abrir. Viu-se nos fundos de uma casa onde trabalhavam as criadas, e uma enorme ave arrebatou uma delas. Viu-se em uma vasta pradaria que um grupo de homens percorria placidamente; brilhou um relâmpago, e um raio caiu sobre eles. Mudou a cena, e os antepassados de Kessi estavam reunidos em redor do fogo, e o avivavam. Viu-se com as mãos atadas e os pés presos com correntes, como colares de mulher.
Estava pronto para sair a caçar, e viu de um lado da porta um dragão, e do outro horrendas harpias.
Contou à sua mãe o ocorrido. A mãe o animou (“O junco se inclina sob a chuva e o vento, porém torna a erguer-se”) e lhe entregou uma meada de lã azul, cor que protege de feitiços e danos.
Kessi partiu em direção da montanha.
Os deuses continuavam ofendidos: não havia feras para caçar.
Kessi vagou sem rumo até cansar-se. Achou-se em frente a uma grande porta que era guardada por um dragão e horrendas harpias. Não conseguiu abrir a porta, ninguém respondeu aos seus chamados e decidiu esperar. O sono apoderou-se dele. Quando despertou, anoitecia e ele viu uma luz intermitente que se aproximava, se agigantava e terminou por cegá-lo: dela surgiu um homem alto e luminoso. Disse que aquela era a porta do ocaso, e que por trás dela se achava o reino dos mortos. O mortal que a transpusesse não poderia voltar. “Como podes tu, então, passar por ela?” “Eu sou o sol”, respondeu o deus, e entrou.
Do outro lado, os espíritos dos mortos esperavam para dar as boas vindas ao deus sol em sua visita noturna. Encontrava-se aí Udipsharri, pai de Shintalimeni. Ao ouvir a voz de seu genro, regozijou-se de que fosse ele o primeiro mortal a vir visitar os mortos. Suplicou ao sol que permitisse sua entrada.
— Muito bem, que passe a porta e me siga pelo caminho escuro; não regressará ao reino dos vivos. Atem suas mãos e seus pés para que não possa escapar. Quando tenha visto tudo, eu o matarei.
Kessi encontrou-se diante de um túnel comprido e estreito. O deus sol se distanciava e se reduzia a um ponto. Udipsharri atou as mãos e os pés de Kessi e convidou-o a seguir a luz mortiça. Kessi viu os espíritos dos mortos, que avivavam o fogo: eram os ferreiros do deus, que forjam os raios que ele arroja à terra. Sentiu que milhares de pássaros revoavam em torno. “Estas, disse Udipsharri, são as aves da morte, que levam ao mundo subterrâneo as almas dos mortos”. Kessi reconheceu a ave gigantesca de seus sonhos. Finalmente chegaram à porta do amanhecer. Kessi devia morrer, porém pediu perdão. O deus sol lembrou como Kessi se levantava na alvorada, caçava e fazia oferendas aos deuses. “Bem, determinou, irás junto com tua esposa e suas seis irmãs ao céu, de onde juntos contemplarão as estrelas eternas”.
Nas noites claras se vê, nas pradarias do céu, o Caçador, que tem as mãos atadas e os pés ligados com cadeias como colares de mulher. Junto do caçador resplandecem sete estrelas.
Conto hitita do segundo milênio a.C.
Jorge Luis Borges, "Livro de Sonhos"
sábado, maio 27
O cão viajante
A notícia veio de São Paulo, trazida por Anhembi. Foi o caso que certo cavalheiro de posses — um grã-fino, diz a revista — regressou dos Estados Unidos em companhia de um cachorro de raça, lá adquirido. No aeroporto de Congonhas, diante dos funcionários da alfândega, houve a abertura de malas, e verificou-se que quatro eram do cachorro: uma com roupas, outra com coleiras e focinheiras; uma terceira com vitaminas, e a última com alimentos especiais.
— As malas eram quatro, diz você?
— Realmente, meu caro Puck.
— Com certeza eram malinhas à toa…
— Não consta da notícia, mas presumo que fossem malas consideráveis.
— E você quer insinuar com isso que cachorro em viagem não tem direito a mala?
— Não é bem assim. Pareceu-me que havia bagagem em excesso para viajante tão sóbrio de natureza, como — não é por estar em sua presença — eu considero o cão.
— E quantas malas tinha o grã-fino? Quarenta?
— A revista não diz, mas é de supor que trouxesse muitas.
— Você acha direito que um homem viaje com quarenta malas (por hipótese) e seu cão não tenha pelo menos quatro?
— Mas veja bem, Puck, o homem é um animal complicado, que se afastou da natureza. Vai a festas noturnas, que exigem equipamento especial; tem reuniões de negócio, de esporte, de amor, de guerra. Compra livros e até os lê. Precisa de tapetes, automóveis, discos, esmalte de unhas e tudo aquilo que vocês, mais felizes, não conhecem ainda, ou desprezam.
— Essas coisas são necessárias à vida?
— São, na medida em que a tornam mais agradável.
— E não seria tempo de estendê-las ao uso pessoal dos cachorros e de outros animais em condições de saboreá-las?
— Teoricamente, talvez. Não acha, porém, que seria o caso de estendê-las antes a todos os homens?
— Elas chegam para todos?
— No estado atual da produção, é capaz de não chegarem.
— Então, que adiantaria?
— Pelo que vejo, você tomou partido francamente por sua espécie contra a minha, quando as duas se entendem há milênios.
— Engano, meu caro. O que você enxerga no gesto do grã-fino é a falta de sensibilidade diante da miséria alheia, quando eu enxergo precisamente um começo tímido de sensibilidade, a abotoar-se como uma florzinha anêmica. Todo esse cuidado com um cão, um simples cão (pois somos simples, e esta é nossa maior virtude), revela que o homem não está de todo perdido, e já começa a desconfiar da existência do próximo. Por enquanto tem os olhos baixos, e só repara em alguns de nós, de mais pedigree. Amanhã descobrirá as criancinhas, e dia virá em que…
— Ele se estimará a si mesmo, através dos outros?
— Não vou a tanto — resmungou Puck. — Também, você está exigindo demais de seus semelhantes.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"
O comentarista fala na Revolução Francesa, que reagiu contra coisas desse gênero, e na Revolução Russa, que reuniu em museu as joias oferecidas pelos aristocratas a seus cães e cavalos. Expus o caso a um cachorro de minhas relações, chamado Puck, e ele manteve comigo, por meio dos olhos e da cauda saltitante, este diálogo quase maiêutico, embora às avessas.
— As malas eram quatro, diz você?
— Realmente, meu caro Puck.
— Com certeza eram malinhas à toa…
— Não consta da notícia, mas presumo que fossem malas consideráveis.
— E você quer insinuar com isso que cachorro em viagem não tem direito a mala?
— Não é bem assim. Pareceu-me que havia bagagem em excesso para viajante tão sóbrio de natureza, como — não é por estar em sua presença — eu considero o cão.
— E quantas malas tinha o grã-fino? Quarenta?
— A revista não diz, mas é de supor que trouxesse muitas.
— Você acha direito que um homem viaje com quarenta malas (por hipótese) e seu cão não tenha pelo menos quatro?
— Mas veja bem, Puck, o homem é um animal complicado, que se afastou da natureza. Vai a festas noturnas, que exigem equipamento especial; tem reuniões de negócio, de esporte, de amor, de guerra. Compra livros e até os lê. Precisa de tapetes, automóveis, discos, esmalte de unhas e tudo aquilo que vocês, mais felizes, não conhecem ainda, ou desprezam.
— Essas coisas são necessárias à vida?
— São, na medida em que a tornam mais agradável.
— E não seria tempo de estendê-las ao uso pessoal dos cachorros e de outros animais em condições de saboreá-las?
— Teoricamente, talvez. Não acha, porém, que seria o caso de estendê-las antes a todos os homens?
— Elas chegam para todos?
— No estado atual da produção, é capaz de não chegarem.
— Então, que adiantaria?
— Pelo que vejo, você tomou partido francamente por sua espécie contra a minha, quando as duas se entendem há milênios.
— Engano, meu caro. O que você enxerga no gesto do grã-fino é a falta de sensibilidade diante da miséria alheia, quando eu enxergo precisamente um começo tímido de sensibilidade, a abotoar-se como uma florzinha anêmica. Todo esse cuidado com um cão, um simples cão (pois somos simples, e esta é nossa maior virtude), revela que o homem não está de todo perdido, e já começa a desconfiar da existência do próximo. Por enquanto tem os olhos baixos, e só repara em alguns de nós, de mais pedigree. Amanhã descobrirá as criancinhas, e dia virá em que…
— Ele se estimará a si mesmo, através dos outros?
— Não vou a tanto — resmungou Puck. — Também, você está exigindo demais de seus semelhantes.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"
O Compadre da Morte
Diz que era uma vez um homem que tinha tantos filhos que não achava mais quem fosse seu compadre. Nascendo mais um filhinho, saiu para procurar quem o apadrinhasse e depois de muito andar encontrou a Morte a quem convidou. A Morte aceitou e foi a madrinha da criança. Quando acabou o batizado voltaram para casa e a madrinha disse ao compadre:
- Compadre! Quero fazer um presente ao meu afilhado e penso que é melhor enriquecer o pai. Você vai ser médico de hoje em diante e nunca errará no que disser. Quando for visitar um doente me verá sempre. Se eu estiver na cabeceira do enfermo, receite até água pura que ele ficará bom. Se eu estiver nos pés, não faça nada porque é um caso perdido.
O homem assim fez. Botou aviso que era médico e ficou rico do dia para a noite porque não errava. Olhava o doente e ia logo dizendo:
Ou então:
- Tratem do caixão dele!
Quem ele tratava, ficava bom. O homem nadava em dinheiro.
Vai um dia adoeceu o filho do rei e este mandou buscar o médico, oferecendo uma riqueza pela vida do príncipe. O homem foi e viu a Morte sentada nos pés da cama. Como não queria perder a fama, resolveu enganar a comadre, e mandou que os criados virassem a cama, os pés passaram para a cabeceira e a cabeceira para os pés. A Morte, muito contrariada, foi-se embora, resmungando.
O médico estava em casa um dia quando apareceu sua comadre e o convidou para visitá-la.
- Eu vou, disse o médico - se você jurar que voltarei!
- Prometo! - disse a Morte.
Levou o homem num relâmpago até sua casa.
Tratou muito bem e mostrou a casa toda. O médico viu um salão cheio-cheio de velas acessas, de todos os tamanhos, uma já se apagando, outras viva, outras esmorecendo. Perguntou o que era:
É a vida do homem. Cada homem tem uma vela acessa. Quando a vela acaba, o homem morre.
O médico foi perguntando pela vida dos amigos e conhecidos e vendo o estado das vidas. Até que lhe palpitou perguntar pela sua. A Morte mostrou um cotoquinho no fim.
- Virgem Maria! Essa é que é a minha? Então eu estou, morre-não-morre!
A Morte disse:
- Está com horas de vida e por isso eu trouxe você para aqui como amigo mas você me fez jurar que voltaria e eu vou levá-lo para você morrer em casa.
O médico quando deu acordo de si estava na sua cama rodeado pela família. Chamou a comadre e pediu:
- Comadre, me faça o último favor. Deixe eu rezar um Padre-Nosso. Não me leves antes. Jura?
- Juro -, prometeu a Morte.
O homem começou a rezar o Padre-Nosso que estás no céu... E calou-se. Vai a Morte e diz:
- Vamos, compadre, reze o resto da oração!
- Nem pense nisso, comadre! Você jurou que me dava tempo de rezar o Padre-Nosso mas eu não expliquei quanto tempo vai durar minha reza. Vai durar anos e anos...
A Morte foi-se embora, zangada pela sabedoria do compadre.
Anos e anos depois, o médico, velhinho e engelhado, ia passeando nas suas grandes propriedades quando reparou que os animais tinham furado a cerca e estragado o jardim, cheio de flores. O homem, bem contrariado disse:
- Só queria morrer para não ver uma miséria destas!...
Não fechou a boca e a Morte bateu em cima, carregando-o. A gente pode enganar a Morte duas vezes mas na terceira é enganado por ela.
Luís da Câmara.Cascudo, "Contos tradicionais do Brasil".
- Compadre! Quero fazer um presente ao meu afilhado e penso que é melhor enriquecer o pai. Você vai ser médico de hoje em diante e nunca errará no que disser. Quando for visitar um doente me verá sempre. Se eu estiver na cabeceira do enfermo, receite até água pura que ele ficará bom. Se eu estiver nos pés, não faça nada porque é um caso perdido.
O homem assim fez. Botou aviso que era médico e ficou rico do dia para a noite porque não errava. Olhava o doente e ia logo dizendo:
Ou então:
- Tratem do caixão dele!
Quem ele tratava, ficava bom. O homem nadava em dinheiro.
Vai um dia adoeceu o filho do rei e este mandou buscar o médico, oferecendo uma riqueza pela vida do príncipe. O homem foi e viu a Morte sentada nos pés da cama. Como não queria perder a fama, resolveu enganar a comadre, e mandou que os criados virassem a cama, os pés passaram para a cabeceira e a cabeceira para os pés. A Morte, muito contrariada, foi-se embora, resmungando.
O médico estava em casa um dia quando apareceu sua comadre e o convidou para visitá-la.
- Eu vou, disse o médico - se você jurar que voltarei!
- Prometo! - disse a Morte.
Levou o homem num relâmpago até sua casa.
Tratou muito bem e mostrou a casa toda. O médico viu um salão cheio-cheio de velas acessas, de todos os tamanhos, uma já se apagando, outras viva, outras esmorecendo. Perguntou o que era:
É a vida do homem. Cada homem tem uma vela acessa. Quando a vela acaba, o homem morre.
O médico foi perguntando pela vida dos amigos e conhecidos e vendo o estado das vidas. Até que lhe palpitou perguntar pela sua. A Morte mostrou um cotoquinho no fim.
- Virgem Maria! Essa é que é a minha? Então eu estou, morre-não-morre!
A Morte disse:
- Está com horas de vida e por isso eu trouxe você para aqui como amigo mas você me fez jurar que voltaria e eu vou levá-lo para você morrer em casa.
O médico quando deu acordo de si estava na sua cama rodeado pela família. Chamou a comadre e pediu:
- Comadre, me faça o último favor. Deixe eu rezar um Padre-Nosso. Não me leves antes. Jura?
- Juro -, prometeu a Morte.
O homem começou a rezar o Padre-Nosso que estás no céu... E calou-se. Vai a Morte e diz:
- Vamos, compadre, reze o resto da oração!
- Nem pense nisso, comadre! Você jurou que me dava tempo de rezar o Padre-Nosso mas eu não expliquei quanto tempo vai durar minha reza. Vai durar anos e anos...
A Morte foi-se embora, zangada pela sabedoria do compadre.
Anos e anos depois, o médico, velhinho e engelhado, ia passeando nas suas grandes propriedades quando reparou que os animais tinham furado a cerca e estragado o jardim, cheio de flores. O homem, bem contrariado disse:
- Só queria morrer para não ver uma miséria destas!...
Não fechou a boca e a Morte bateu em cima, carregando-o. A gente pode enganar a Morte duas vezes mas na terceira é enganado por ela.
Luís da Câmara.Cascudo, "Contos tradicionais do Brasil".
Itália congela manuscritos preciosos a -25ºC para conter danos após fortes enchentes
Livros antigos e manuscritos de valor histórico — alguns datados do século XVI — foram atingidos pelas enchentes que devastaram a região da Emília-Romanha, no norte da Itália, nas últimas semanas. Em um esforço para tentar salvar os documentos, voluntários estão ajudando a levar o material que ficou submerso em bibliotecas das áreas mais afetadas, para a cidade de Cesena, onde será submetido a um processo de congelamento que poderá reduzir os danos, de acordo com o jornal britânico The Guardian.
Manuscritos atingidos pela enchente na Biblioteca Fabrizio Trisi, na Emília-Romanha |
A companhia Orogel, especializada em congelamento de alimentos, está cedendo os freezers industriais, onde os documentos vão ser dispostos em prateleiras e submetidos a temperaturas de -25ºC. O objetivo do congelamento é retirar o excesso de água dos livros para impedir que se deteriorem ainda mais, antes de secarem e, se possível, serem restaurados. Para funcionar, o congelamento deve ser feito o mais rápido possível.
— Normalmente usamos esse processo para as frutas maduras após a colheita, mas nunca pensei que esse procedimento rápido pudesse ser útil para nosso patrimônio histórico — disse o presidente da empresa, Bruno Piraccini à agência de notícias Ansa. O empresário esclareceu que recebeu o pedido de ajuda da biblioteca da cidade de Forlì.
Ao menos 13 pessoas morreram e 10 mil foram forçadas a deixar suas casas por causa das inundações, consideradas as piores em um século no país. O volume de chuva registrado em apenas 36 horas foi equivalente a seis meses de precipitação. Cerca de 5 mil pessoas precisaram ser resgatadas pela defesa civil italiana.
A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, sobrevoaram a região, na quinta-feira, onde o patrimônio histórico foi bastante atingido. Pelo menos 75 monumentos, 12 bibliotecas e seis sítios arqueológicos foram afetados pela enchente, de acordo com o Guardian, que informou ainda que o governo vai destinar 6 milhões de euros (mais de 32 milhões de reais) para a recuperação do patrimônio.
— As operações para proteger o patrimônio histórico estão acontecendo desde quinta-feira — disse ao Guardian a subsecretária do Ministério da Cultura, Lucia Borgonzoni, que confirmou ainda que o governo busca armazéns para estocar o material recuperado.
Alguns dos documentos mais afetados estavam na biblioteca que fica no porão do seminário católico de San Benedetto, em Forlì e nos arquivos da mesma cidade. Também foram retirados livros antigos da Biblioteca Fabrizio Trisi, em Lugo. Todos foram levados para os freezers em Cesena. Outros livros ainda devem chegar de outras áreas atingidas da Emília-Romanha, informou o Guardian.
sexta-feira, maio 26
A turma
Eu também já tive turma, ou melhor, fiz parte de turma e sei como é importante em certa idade essa entidade, a turma. A gente é um ser racional, menos quando em turma. Existe, por exemplo, alguma razão para um grupo de pessoas sentar todo dia numa escadaria ou meio-fio e passar horas conversando? Você pode falar a um filho, por exemplo, que refrigerantes engordam e chocolates dão mais espinhas em quem já está na idade das espinhas. Ele nem ouvirá. Mas, se um dia a turma resolver, ele passará a tomar só água com limão e pegará nojo de chocolate. Você pode falar que cabelo tão comprido é incômodo, calorento, atrapalha, mas que nada, ele te pedirá dinheiro para comprar mais xampu. Agora, se a turma resolver cortar careca, ele aparecerá de repente careca no café da manhã e nem quererá falar no assunto – qual o problema em cortar careca? Você pode dizer que bossa nova é bom, e mostrar jornais e revistas, provar que só “Garota de Ipanema” já recebeu centenas de gravações em todo o mundo, mas ele aumentará o volume do rock pauleira ou da tecno-bost. Até o dia em que alguém da turma aparece com um CD de bossa nova e ele troca Axel Rose por Tom Jobim de um dia para o outro. A turma tem modas, como quando resolvem todos arregaçar as barras das calças, que usavam arrastando pelo chão. A turma tem traumas, como quando o namoradinho de uma se apaixona pela namoradinha de outro e ... A turma tem linguagem própria, uma variante local de um ramal regional da vertente adolescente da língua. A turma adora sentar na calçada e na praça e falar sobre o que viram em casa na televisão. A turma tem duplas de amigos e amigas mais chegados, e trios, e quartetos, que num grande minueto anarquista se misturam nas festas de aniversário. Ninguém da turma dança até que alguém da turma começa a dançar, aí dançam todos trocando de par até acabarem dançando todos juntos como turma que são. Um da turma se tatua, todos da turma querem se tatuar. Um bota uma argola no nariz, os outros, para variar, botam no lábio, na sobrancelha e na orelha e... A turma é isso aí, cara, uma reunião diária de espinhas e inquietações, habilidades e temperamentos, o baralho das personalidades se misturando, o jogo das informações e dos sentimentos rolando nas conversas sem fim, nas andanças sem cansaço, nas músicas compartilhadas, no refri com três canudos e uma empadinha pra quatro. Na turma pouco dá pra todos, todo mundo divide, cada um contribui, a turma se une partilhando e repartindo. A turma ri como só na turma se ri. A turma julga quando erramos. A turma castiga com silêncios e ironias.
A turma te chama, te reprime, te liberta, te revela, te rebela, te maltrata, te orgulha, te ama e te envolve, te afasta e te atrai, mas a turma é assim porque a turma é a turma. Até o dia em que – disse a todos meus filhos – cansamos de ter turma e passamos a ser gente. E todos me disseram que sou um chato, mas o primogênito hoje já concorda: o tempo da turma passa. Mas, aqui entre nós, como dá saudade!
Domingos Pelegrini, "Ladrão que rouba ladrão e outras crônicas"
A turma te chama, te reprime, te liberta, te revela, te rebela, te maltrata, te orgulha, te ama e te envolve, te afasta e te atrai, mas a turma é assim porque a turma é a turma. Até o dia em que – disse a todos meus filhos – cansamos de ter turma e passamos a ser gente. E todos me disseram que sou um chato, mas o primogênito hoje já concorda: o tempo da turma passa. Mas, aqui entre nós, como dá saudade!
Domingos Pelegrini, "Ladrão que rouba ladrão e outras crônicas"
O vampiro de Curitiba
Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo, beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada — ai, querida, é uma folha seca ao vento — e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho.
Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no meu canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um anjo pode dizer amém!
Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atraio pobre rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama — acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o colibri e enraivece o vampiro.
Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e arminho — rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. O bracinho nu e rechonchudo — se não quer por que mostra em vez de esconder? —, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.
Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco — ó mãe do céu! — desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia voo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico — conheci cada pai de família!
Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova — à palavra alcova um nó na garganta.
Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.
Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão. Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira, tonta, abandona-se na mesma hora. O morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas instrumento do prazer — de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na cara?
Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar — nem uma baixou sobre mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, á Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca?
Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida — á curvas, ó delícias — concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro — os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo — beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz.
Dalton Trevisan
Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.
Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no meu canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um anjo pode dizer amém!
Muito sofredor ver moça bonita — e são tantas. Perdoe a indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? O, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro aos seus pés. Por Deus do céu não lhe faço mal — o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado. Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo do crime? Com elas usar de agradinho e doçura.
Ser gentilíssimo. A impaciência é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou — oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que é então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu? Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto — o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!
Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atraio pobre rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama — acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o colibri e enraivece o vampiro.
Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e arminho — rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. O bracinho nu e rechonchudo — se não quer por que mostra em vez de esconder? —, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.
Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco — ó mãe do céu! — desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia voo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico — conheci cada pai de família!
Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova — à palavra alcova um nó na garganta.
Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.
Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta — como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás dela, quando menino era a bandinha do Tiro Rio Branco.
Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão. Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira, tonta, abandona-se na mesma hora. O morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas instrumento do prazer — de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na cara?
Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar — nem uma baixou sobre mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, á Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca?
Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida — á curvas, ó delícias — concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro — os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo — beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz.
Dalton Trevisan
Com que é que se parece um professor?
Ngunga tinha um princípio: se havia algum problema, ele preferia resolvê-lo logo. Deveria esperar que o Comandante o chamasse. Mas não esperou. Foi ele mesmo falar ao Comandante. Para quê ter medo? O Comandante Mavinga estava divertido com a conversa. Falou:
— És um rapaz esperto e corajoso. Por isso deves estudar. Chegou agora um professor que vai montar uma escola aqui perto. Deves ir para lá, aprender a ler e a escrever. Não queres?
Ngunga ficou silencioso. Escola? Nunca vira. Ouvira falar, isso sim. Era um sítio onde tinha de se estar sempre sentado, a olhar para uns papéis escritos. Não devia ser bom.
— Prefiro ser guerrilheiro. Se não me querem aqui, então vou para outro sítio.
— Ngunga, tu és pequeno demais para ser guerrilheiro. Aqui já te disse que não podes ficar. Andar só, como fazes, não é bom. Um dia vai acontecer-te uma coisa má. E não estás a aprender nada.
— Como? Estou a ver novas terras, novos rios, novas pessoas. Oiço o que falam. Estou a aprender.
— Não é a mesma coisa. Numa escola aprendes mais. E assim vais conhecer o professor. Já viste um professor? Diz-me com que é que se parece um professor? Vais conhecer a escola. Eu parto amanhã e tu vais comigo.
Sem o saber, Mavinga encontrou o que podia convencer Ngunga. Com que é que se parecia um professor? Sim, precisava de conhecer o professor. Se não gostasse da esco-la, o seu saquito era fácil de arrumar. Vendo bem as coisas, não perdia nada em experimentar.
A escola era só uma cubata de capim para o professor e, numa sombra, alguns bancos de pau e uma mesa. Ngunga imaginara-a de outra maneira. Também o professor o surpreendeu. Julgava que ia encontrar um velho com cara séria. Afinal era um jovem, ainda mais novo que o Comandante, sorridente e falador. Esse aí sabia mesmo para ensinar aos outros?
Mavinga apresentou-o. Disse que ele não tinha família.
— Tem de ficar a viver aqui comigo! — disse o professor — Também já tenho o Chivuala, que veio comigo do Guando. Os outros alunos são externos, vivem nos quimbos e vêm só receber aulas. Para estes dois, vai haver o problema da alimentação.
— Não há problema! — respondeu o Comandante — Vou falar com o povo. Quando derem comida para o camarada professor, acrescentam um pouco para os dois pioneiros. O Ngunga precisa de estudar, para não ser como nós. Se se portar mal avise-me. Estás a ouvir, Ngunga? Se não trabalhares bem, eu vou saber. E, se fugires da escola, eu encontrar-te-ei.
— Eu nunca fujo! — respondeu Ngunga — Quando quiser, digo que vou embora e vou mesmo. Não preciso de fugir como um porco-de-mato.
O professor riu.
— Espero então que não queiras ir embora. Vais ver como gostarás da escola.
Pepetela, "As Aventuras de Ngunga"
— És um rapaz esperto e corajoso. Por isso deves estudar. Chegou agora um professor que vai montar uma escola aqui perto. Deves ir para lá, aprender a ler e a escrever. Não queres?
Ngunga ficou silencioso. Escola? Nunca vira. Ouvira falar, isso sim. Era um sítio onde tinha de se estar sempre sentado, a olhar para uns papéis escritos. Não devia ser bom.
— Prefiro ser guerrilheiro. Se não me querem aqui, então vou para outro sítio.
— Ngunga, tu és pequeno demais para ser guerrilheiro. Aqui já te disse que não podes ficar. Andar só, como fazes, não é bom. Um dia vai acontecer-te uma coisa má. E não estás a aprender nada.
— Como? Estou a ver novas terras, novos rios, novas pessoas. Oiço o que falam. Estou a aprender.
— Não é a mesma coisa. Numa escola aprendes mais. E assim vais conhecer o professor. Já viste um professor? Diz-me com que é que se parece um professor? Vais conhecer a escola. Eu parto amanhã e tu vais comigo.
Sem o saber, Mavinga encontrou o que podia convencer Ngunga. Com que é que se parecia um professor? Sim, precisava de conhecer o professor. Se não gostasse da esco-la, o seu saquito era fácil de arrumar. Vendo bem as coisas, não perdia nada em experimentar.
A escola era só uma cubata de capim para o professor e, numa sombra, alguns bancos de pau e uma mesa. Ngunga imaginara-a de outra maneira. Também o professor o surpreendeu. Julgava que ia encontrar um velho com cara séria. Afinal era um jovem, ainda mais novo que o Comandante, sorridente e falador. Esse aí sabia mesmo para ensinar aos outros?
Mavinga apresentou-o. Disse que ele não tinha família.
— Tem de ficar a viver aqui comigo! — disse o professor — Também já tenho o Chivuala, que veio comigo do Guando. Os outros alunos são externos, vivem nos quimbos e vêm só receber aulas. Para estes dois, vai haver o problema da alimentação.
— Não há problema! — respondeu o Comandante — Vou falar com o povo. Quando derem comida para o camarada professor, acrescentam um pouco para os dois pioneiros. O Ngunga precisa de estudar, para não ser como nós. Se se portar mal avise-me. Estás a ouvir, Ngunga? Se não trabalhares bem, eu vou saber. E, se fugires da escola, eu encontrar-te-ei.
— Eu nunca fujo! — respondeu Ngunga — Quando quiser, digo que vou embora e vou mesmo. Não preciso de fugir como um porco-de-mato.
O professor riu.
— Espero então que não queiras ir embora. Vais ver como gostarás da escola.
Pepetela, "As Aventuras de Ngunga"
quinta-feira, maio 25
O Verbo For
Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
— Esse "for" aí, que verbo é esse?
Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
— Verbo for.
— Verbo o quê?
— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.
João Ubaldo Ribeiro. "O Conselheiro Come"
O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a plateia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
— Esse "for" aí, que verbo é esse?
Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
— Verbo for.
— Verbo o quê?
— Verbo for.
— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.
João Ubaldo Ribeiro. "O Conselheiro Come"
Uma ilha cheia de encantos
Sentia-me aliviado por ter encontrado um lugar de terra firme, que não se resumia a rochedos estéreis no meio do mar. Mas isso ainda não era tudo: aquela ilha parecia ocultar um segredo muito além da minha compreensão, pois eu era capaz de jurar que ela aumentava de tamanho, à medida que eu avançava para o seu interior. Era como se cada um de meus pequenos passos seu tamanho se multiplicasse em todas as direções; como se ela fosse se expandindo espontaneamente, a partir de não sei o quê.
Continuei a avançar por aquela trilha estreita, que logo se dividiu em duas, e tive de escolher uma direção a seguir. Tomei o rumo da esquerda, que mais à frente também se bifurcou. E novamente escolhi o caminho da esquerda.
Logo a trilha desapareceu num vale profundo entre duas montanhas. Ali, tartarugas gigantescas arrastavam-se por entre arbustos. As maiores tinham mais de dois metros de comprimento. Já ouvira falar de tartarugas assim tão grandes, mas era a primeira vez que as via com meus próprios olhos. Uma delas esticou a cabeça fora de sua carapaça e olhou para mim, como se quisesse me dar as boas-vindas à ilha.
Durante todo o dia continuei a caminhada. Vi outras florestas, vales, planaltos, mas nada de ver o mar. Tive a sensação de estar perdido numa paisagem mágica, uma espécie de labirinto às avessas, dentro do qual os caminhos nunca chegaram a uma parede.
Há muito tempo também não tomava banho. Resolvi, então, arrancar aquela apertada roupa de marujo e saí nadando. Depois de toda a tarde andando sob o sol escaldante dos trópicos, experimentei uma indescritível sensação de frescor. Só então percebi o quanto meu rosto e meu couro cabeludo tinham sido queimados pelo sol durante todos aqueles dias sem proteção no bote salva-vidas.
Na manhã seguinte, antes mesmo de o sol nascer, acordei daquele sono profundo e me senti desperto na mesma hora. Tinha sobrevivido a um naufrágio! Pensei. Só agora me dava conta disso. Era como se tivesse nascido de novo.
À esquerda do lago erguia-se um paredão rochoso absolutamente intransponível. Era coberto por gramíneas amarelas e flores vermelhas em forma de sinos, que se moviam com leveza à brisa fresca da manhã. Antes de o sol aparecer no céu, eu já tinha chegado ao ponto mais elevado de uma colina. E mesmo ali de cima não conseguia ver o mar. O que via na minha frente era uma vasta paisagem de dimensões continentais. Já tinha estado na América do Norte e do Sul, mas não era possível que estivesse lá. E em parte alguma via um vestígio sequer de gente.
Seria aquele sol o mesmo que estaria iluminando meus pais lá em Lubeck?
Durante toda a manhã, continuei caminhando de paisagem em paisagem. Quando o sol estava a pino, cheguei a um vale cheio de roseiras amarelas. Borboletas gigantes voavam de roseira em roseira; as maiores tinham asas tão grandes quanto as de uma gralha, mas eram infinitamente mais bonitas. Eram de um azul-profundo e tinham nas asas duas grandes estrelas vermelha-sangue. Para mim era como se fossem flores vivas; era como se de repente algumas flores da ilha tivessem se libertado do chão, ganhando o ar e aprendido a arte de voo. O mais curioso, porém, era que o ruído das borboletas era como música. Elas sibilavam em diferentes tonalidades e espalhavam por todo o vale o som suave de suas flautas. Parecia que os flautistas de uma grande orquestra estavam afinando seus instrumentos. Às vezes, quando passavam por mim, suas asas macias roçavam minha pele. Percebi que elas tinham um perfume mais forte e mais doce do que o mais caro perfume.
Um rio de águas agitadas cortava o vale. Decidi seguir o seu curso para não ficar errando sem direção por aquela imensa ilha. Além disso, estava certo de que mais cedo ou mais tarde encontraria o mar. Pelo menos era o que eu achava. Só que isso era mais difícil do que eu pensava, pois a uma certa hora da tarde aquele extenso vale chegou ao fim. Primeiramente ele foi ficando estreito como um funil e então, de repente, vi-me bem na frente de um rochedo maciço.
A princípio não entendi nada. Afinal, um rio não pode simplesmente dar meia-volta e correr em sentido contrário sobre o leito de onde tinha vindo. Foi então que percebi que o rio entrava por uma caverna. Fui até a entrada da caverna no rochedo e olhei par dentro. No interior da caverna, a água corria mais calma e formava um canal subterrâneo.
Diante da entrada da caverna no rochedo alguns sapos enormes saltavam na margem do rio. Eram do tamanho de coelhos, coaxavam sem parar numa confusão de ruídos e provocavam um barulho infernal. Para mim era novidade que existissem na natureza sapos daquele tamanho. Pela relva úmida das margens também se arrastavam gordos lagartos e iguanas maiores ainda. Já estava habituado a ver animais como esses nas muitas cidades portuárias por onde tinha passado. Mas não daquele tamanho e nem naquelas cores: na ilha, os répteis eram vermelhos e amarelos e azuis.
Descobri que era possível adentrar a caverna seguindo pela margem do rio. Decidi entrar para ver até onde eu chegava.
Continuei minha jornada vale adentro. E ali descobri os milucos...
Era um rebanho de uns doze ou quinze animais. Eles eram do tamanho de cavalos e vacas, mas tinham uma pele grossa e branca, que lembrava a pele dos porcos. E todos tinham seis patas! Suas cabeças eram enormes e mais pontiagudas que as do cavalos e vacas. E de vez em quando erguiam o pescoço para o céu e emitiam um som mais ou menos assim: Brasch, brasch!
Não tive medo: os animais de seis patas pareciam tão tolos e amigáveis quanto as vacas que eu conhecia na Alemanha. A sua aparição só me deixava clara uma coisa: eu estava num lugar que não existia no mapa. Literalmente! E a sensação que tive ao constatar isso foi comparável, talvez, à sensação de encontrar uma pessoa sem rosto.
Jostein Gaarder. "O dia do Curinga"
Continuei a avançar por aquela trilha estreita, que logo se dividiu em duas, e tive de escolher uma direção a seguir. Tomei o rumo da esquerda, que mais à frente também se bifurcou. E novamente escolhi o caminho da esquerda.
Logo a trilha desapareceu num vale profundo entre duas montanhas. Ali, tartarugas gigantescas arrastavam-se por entre arbustos. As maiores tinham mais de dois metros de comprimento. Já ouvira falar de tartarugas assim tão grandes, mas era a primeira vez que as via com meus próprios olhos. Uma delas esticou a cabeça fora de sua carapaça e olhou para mim, como se quisesse me dar as boas-vindas à ilha.
Durante todo o dia continuei a caminhada. Vi outras florestas, vales, planaltos, mas nada de ver o mar. Tive a sensação de estar perdido numa paisagem mágica, uma espécie de labirinto às avessas, dentro do qual os caminhos nunca chegaram a uma parede.
]
Já no fim da tarde cheguei a um campo aberto, uma paisagem plana e vasta com um grande lago, cujas águas cintilavam intensamente à luz do sol da tarde. Deixei-me cair à margem e saciei minha sede. Pela primeira vez em semanas bebia uma água diferente da água do navio.
Já no fim da tarde cheguei a um campo aberto, uma paisagem plana e vasta com um grande lago, cujas águas cintilavam intensamente à luz do sol da tarde. Deixei-me cair à margem e saciei minha sede. Pela primeira vez em semanas bebia uma água diferente da água do navio.
Há muito tempo também não tomava banho. Resolvi, então, arrancar aquela apertada roupa de marujo e saí nadando. Depois de toda a tarde andando sob o sol escaldante dos trópicos, experimentei uma indescritível sensação de frescor. Só então percebi o quanto meu rosto e meu couro cabeludo tinham sido queimados pelo sol durante todos aqueles dias sem proteção no bote salva-vidas.
Mergulhei algumas vezes e quando abria os olhos dentro da água via enormes cardumes de peixes que tinham todas as cores do arco-íris. Alguns eram verdes como as folhagens da margem, outros azuis como pedras preciosas e outros ainda tinham um brilho dourado em suas escamas vermelhas, amarelas e alaranjadas. Ao mesmo tempo, cada um deles tinha uma faixa de todas as cores.
Nadei de volta até a margem e me deitei ao sol do fim da tarde para me secar. Só então senti como estava faminto. Olhei à minha volta e descobri um arbusto carregado com pesadas pencas de umas frutinhas amarelas do tamanho de morangos. Nunca tinha visto aquelas frutinhas, mas supus que fossem comestíveis. Tinham o gosto de uma mistura de nozes e de bananas. Depois de ter me fartado de comer, vesti de novo minhas roupas e acabei adormecendo, exausto, à margem do grande lago.
Na manhã seguinte, antes mesmo de o sol nascer, acordei daquele sono profundo e me senti desperto na mesma hora. Tinha sobrevivido a um naufrágio! Pensei. Só agora me dava conta disso. Era como se tivesse nascido de novo.
À esquerda do lago erguia-se um paredão rochoso absolutamente intransponível. Era coberto por gramíneas amarelas e flores vermelhas em forma de sinos, que se moviam com leveza à brisa fresca da manhã. Antes de o sol aparecer no céu, eu já tinha chegado ao ponto mais elevado de uma colina. E mesmo ali de cima não conseguia ver o mar. O que via na minha frente era uma vasta paisagem de dimensões continentais. Já tinha estado na América do Norte e do Sul, mas não era possível que estivesse lá. E em parte alguma via um vestígio sequer de gente.
Fiquei lá em cima da colina até que o sol apareceu no Leste: vermelho como um tomate, mas trêmulo como uma miragem. E com a linha do horizonte tão distante, aquele era o sol maior e mais vermelho que já tinha visto em toda minha vida, inclusive durante os tempos que passei no mar.
Seria aquele sol o mesmo que estaria iluminando meus pais lá em Lubeck?
Durante toda a manhã, continuei caminhando de paisagem em paisagem. Quando o sol estava a pino, cheguei a um vale cheio de roseiras amarelas. Borboletas gigantes voavam de roseira em roseira; as maiores tinham asas tão grandes quanto as de uma gralha, mas eram infinitamente mais bonitas. Eram de um azul-profundo e tinham nas asas duas grandes estrelas vermelha-sangue. Para mim era como se fossem flores vivas; era como se de repente algumas flores da ilha tivessem se libertado do chão, ganhando o ar e aprendido a arte de voo. O mais curioso, porém, era que o ruído das borboletas era como música. Elas sibilavam em diferentes tonalidades e espalhavam por todo o vale o som suave de suas flautas. Parecia que os flautistas de uma grande orquestra estavam afinando seus instrumentos. Às vezes, quando passavam por mim, suas asas macias roçavam minha pele. Percebi que elas tinham um perfume mais forte e mais doce do que o mais caro perfume.
Um rio de águas agitadas cortava o vale. Decidi seguir o seu curso para não ficar errando sem direção por aquela imensa ilha. Além disso, estava certo de que mais cedo ou mais tarde encontraria o mar. Pelo menos era o que eu achava. Só que isso era mais difícil do que eu pensava, pois a uma certa hora da tarde aquele extenso vale chegou ao fim. Primeiramente ele foi ficando estreito como um funil e então, de repente, vi-me bem na frente de um rochedo maciço.
A princípio não entendi nada. Afinal, um rio não pode simplesmente dar meia-volta e correr em sentido contrário sobre o leito de onde tinha vindo. Foi então que percebi que o rio entrava por uma caverna. Fui até a entrada da caverna no rochedo e olhei par dentro. No interior da caverna, a água corria mais calma e formava um canal subterrâneo.
Diante da entrada da caverna no rochedo alguns sapos enormes saltavam na margem do rio. Eram do tamanho de coelhos, coaxavam sem parar numa confusão de ruídos e provocavam um barulho infernal. Para mim era novidade que existissem na natureza sapos daquele tamanho. Pela relva úmida das margens também se arrastavam gordos lagartos e iguanas maiores ainda. Já estava habituado a ver animais como esses nas muitas cidades portuárias por onde tinha passado. Mas não daquele tamanho e nem naquelas cores: na ilha, os répteis eram vermelhos e amarelos e azuis.
Descobri que era possível adentrar a caverna seguindo pela margem do rio. Decidi entrar para ver até onde eu chegava.
Continuei minha jornada vale adentro. E ali descobri os milucos...
Já tinha ficado espantado com as abelhas e as borboletas da ilha; mas embora elas fossem mais belas e maiores do que seus parentes na Alemanha, ainda assim continuavam sendo abelhas e borboletas. E o mesmo valia para os sapos e répteis. Agora, porém, o que eu via eram animais brancos, de grande porte, tão diferentes de tudo o que eu já tinha visto ou ouvido falar na minha vida de esfregar os olhos várias vezes para acreditar no que via.
Era um rebanho de uns doze ou quinze animais. Eles eram do tamanho de cavalos e vacas, mas tinham uma pele grossa e branca, que lembrava a pele dos porcos. E todos tinham seis patas! Suas cabeças eram enormes e mais pontiagudas que as do cavalos e vacas. E de vez em quando erguiam o pescoço para o céu e emitiam um som mais ou menos assim: Brasch, brasch!
Não tive medo: os animais de seis patas pareciam tão tolos e amigáveis quanto as vacas que eu conhecia na Alemanha. A sua aparição só me deixava clara uma coisa: eu estava num lugar que não existia no mapa. Literalmente! E a sensação que tive ao constatar isso foi comparável, talvez, à sensação de encontrar uma pessoa sem rosto.
Jostein Gaarder. "O dia do Curinga"
quarta-feira, maio 24
Um ditador
Decidi visitar a Guatemala e fui para lá de automóvel. Passamos pelo istmo de Tehuantepec, região dourada do México, com mulheres vestidas como pássaros e um cheiro de mel e açúcar no ar. Em seguida entramos na grande selva de Chiapas. De noite detínhamos o veículo, assustados pelos ruídos, pela telegrafia da selva. Milhares de cigarras emitiam um ruído violento, planetário, som inacreditável. O misterioso México estendia sua sombra verde sobre antigas construções, sobre pinturas remotas, jóias e monumentos, cabeças colossais, animais de pedra. Tudo isto jazia na selva, na milionária existência do inaudito mexicano. Passada a fronteira, no alto da América Central, o estreito caminho da Guatemala vislumbrou-me com suas lianas e folhagens gigantescas; e em seguida com seus lagos plácidos no alto como olhos esquecidos por deuses extravagantes e por último com pinheirais e amplos rios primordiais em que assomavam como seres humanos, fora d'água, rebanhos de sirênios e manatis.
Passei uma semana convivendo com Miguel Ángel Asturias, que ainda não havia se revelado com suas novelas de sucesso. Compreendemos que tínhamos nascido irmãos e raro era o dia em que não nos víamos. De noite planejávamos visitas inesperadas a paragens distantes de serras envoltas pela névoa ou a portos tropicais da United Fruit.
Os guatemaltecos não tinham direito a falar e nenhum deles falava de política diante do outro. As paredes tinham ouvidos e delatavam. Em certas ocasiões detínhamos o carro no alto de uma meseta e ali, bem seguros de que não tinha ninguém atrás de uma árvore, tratávamos avidamente da situação.
O caudilho chamava-se Ubico e governava há muitíssimos anos. Era um homem corpulento, de olhar frio, consequentemente cruel. Ele ditava a lei e nada se fazia na Guatemala sem ordem sua. Conheci um de seus secretários, agora amigo meu, revolucionário. Por ter discutido algo com ele, um pequeno detalhe, fez com que o amarrassem ali mesmo a uma coluna da sala de despacho presidencial e o açoitou sem piedade.
Os poetas jovens pediram um recital de minha poesia. Enviaram um telegrama a Ubico solicitando a autorização. Todos os meus amigos e os jovens estudantes enchiam o local. Li com gosto meus poemas porque parecia-me que entreabriam a janela daquela prisão tão vasta. O chefe de polícia sentou-se conspicuamente na primeira fila. Logo soube que quatro metralhadoras estavam apontadas para mim e para o público e que funcionariam caso o chefe de polícia abandonasse ostensivamente sua poltrona e interrompesse o recital.
Mas nada aconteceu pois o sujeito ficou até o fim ouvindo meus versos.
Depois quiseram apresentar-me ao ditador, homem inflamado por loucura napoleônica. Deixava uma mecha sobre a fronte, retratando-se com frequência na pose de Bonaparte. Disseram-me que era perigoso recusar tal sugestão mas eu preferi não lhe dar a mão e regressei rapidamente ao México.
Pablo Neruda, "Confesso que vivi"
Os guatemaltecos não tinham direito a falar e nenhum deles falava de política diante do outro. As paredes tinham ouvidos e delatavam. Em certas ocasiões detínhamos o carro no alto de uma meseta e ali, bem seguros de que não tinha ninguém atrás de uma árvore, tratávamos avidamente da situação.
O caudilho chamava-se Ubico e governava há muitíssimos anos. Era um homem corpulento, de olhar frio, consequentemente cruel. Ele ditava a lei e nada se fazia na Guatemala sem ordem sua. Conheci um de seus secretários, agora amigo meu, revolucionário. Por ter discutido algo com ele, um pequeno detalhe, fez com que o amarrassem ali mesmo a uma coluna da sala de despacho presidencial e o açoitou sem piedade.
Os poetas jovens pediram um recital de minha poesia. Enviaram um telegrama a Ubico solicitando a autorização. Todos os meus amigos e os jovens estudantes enchiam o local. Li com gosto meus poemas porque parecia-me que entreabriam a janela daquela prisão tão vasta. O chefe de polícia sentou-se conspicuamente na primeira fila. Logo soube que quatro metralhadoras estavam apontadas para mim e para o público e que funcionariam caso o chefe de polícia abandonasse ostensivamente sua poltrona e interrompesse o recital.
Mas nada aconteceu pois o sujeito ficou até o fim ouvindo meus versos.
Depois quiseram apresentar-me ao ditador, homem inflamado por loucura napoleônica. Deixava uma mecha sobre a fronte, retratando-se com frequência na pose de Bonaparte. Disseram-me que era perigoso recusar tal sugestão mas eu preferi não lhe dar a mão e regressei rapidamente ao México.
Pablo Neruda, "Confesso que vivi"
Não despertemos o leitor
Os leitores são, por natureza, dorminhocos. Gostam de ler dormindo.
Autor que os queira conservar não deve ministrar-lhes o mínimo susto. Apenas as eternas frases feitas.
“A vida é um fardo” — isto, por exemplo, pode-se repetir sempre. E acrescentar impunemente: “disse Bias”. Bias não faz mal a ninguém, como aliás os outros seis sábios da Grécia, pois todos os sete, como há vinte séculos já se queixava Plutarco, eram uns verdadeiros chatos. Isto para ele, Plutarco. Mas, para o grego comum da época, deviam ser a delícia e a tábua de salvação das conversas.
Pois não é mesmo tão bom falar e pensar sem esforço? O lugar-comum é a base da sociedade, a sua política, a sua filosofia, a segurança das instituições. Ninguém é levado a sério com ideias originais.
Já não é a primeira vez, por exemplo, que um figurão qualquer declara em entrevista:
“O Brasil não fugirá ao seu destino histórico!”
O êxito da tirada, a julgar pelo destaque que lhe dá a imprensa, é sempre infalível, embora o leitor semidesperto possa desconfiar que isso não quer dizer coisa alguma, pois nada foge mesmo ao seu destino histórico, seja um Império que desaba ou uma barata esmagada.
Mário Quintana, "Caderno H"
Autor que os queira conservar não deve ministrar-lhes o mínimo susto. Apenas as eternas frases feitas.
“A vida é um fardo” — isto, por exemplo, pode-se repetir sempre. E acrescentar impunemente: “disse Bias”. Bias não faz mal a ninguém, como aliás os outros seis sábios da Grécia, pois todos os sete, como há vinte séculos já se queixava Plutarco, eram uns verdadeiros chatos. Isto para ele, Plutarco. Mas, para o grego comum da época, deviam ser a delícia e a tábua de salvação das conversas.
Pois não é mesmo tão bom falar e pensar sem esforço? O lugar-comum é a base da sociedade, a sua política, a sua filosofia, a segurança das instituições. Ninguém é levado a sério com ideias originais.
Já não é a primeira vez, por exemplo, que um figurão qualquer declara em entrevista:
“O Brasil não fugirá ao seu destino histórico!”
O êxito da tirada, a julgar pelo destaque que lhe dá a imprensa, é sempre infalível, embora o leitor semidesperto possa desconfiar que isso não quer dizer coisa alguma, pois nada foge mesmo ao seu destino histórico, seja um Império que desaba ou uma barata esmagada.
Mário Quintana, "Caderno H"
O enxoval
Na minha vida, vi muitas casas, grandes e pequenas, de pedra e de madeira, velhas e novas. Mas uma em particular gravou-se na minha memória. Essa, aliás, não é uma casa, é uma casinha. Uma casinha de um andar, com três janelas, terrivelmente parecida com uma velhinha pequena, corcunda e de touca. É rebocada e pintada de branco, coberta de telhas, com uma chaminé semidestruída. Está mergulhada na folhagem verde de amoreiras, acácias e álamos, plantados ali pelos avós e bisavós dos atuais proprietários. A casa não é visível atrás dessa verdura. A propósito, essa massa verde não a impede de ser uma casa urbana. Seu largo pátio está enfileirado, lado a lado, com outros pátios, também largos e verdes, formando a rua Moskóvskaia. Ninguém jamais passa de carro por essa rua, e é raro alguém andar a pé por ela.
As persianas dessa casinha estão sempre fechadas: os moradores não necessitam de luz. A luz é dispensável para eles. As janelas nunca se abrem, porque os habitantes da casinha não gostam de ar fresco. Pessoas que vivem permanentemente entre amoreiras, acácias e bardanas são indiferentes à natureza. Somente aos veranistas das casas de campo é que Deus deu a capacidade de compreender a beleza da natureza; já o restante da humanidade atola-se em profunda ignorância. As pessoas não valorizam o que possuem. “Não conservamos o que é nosso” – costuma-se dizer. Mais do que isso: nós não amamos aquilo que é nosso. Em torno da casinha, há um paraíso terrestre, verde, cheio de pássaros alegres; já dentro da casinha, um horror! No verão, é tórrido e abafado; no inverno, quente como uma sauna, com um ar viciado e um enorme tédio...
A primeira vez que visitei essa casinha foi há muito tempo, e eu tinha uma incumbência: viera para transmitir os cumprimentos do dono da casa, coronel Tchikamássov, a sua esposa e a sua filha. Lembro-me perfeitamente dessa minha primeira visita, e não poderia ser diferente.
Imagine uma mulherzinha sem traquejo social, de uns quarenta anos, que olha para você com espanto e pavor no momento em que você passa do vestíbulo para a sala. Você é um “estranho”, uma visita, “um jovem rapaz” – e isso já é suficiente para despertar espanto e pavor. Você não tem na mão nem maça, nem machado, nem revólver; você está sorrindo amistosamente, mas é recebido com ansiedade.
– A quem eu tenho a honra e a satisfação de receber? – pergunta com voz trêmula a senhora de meia-idade, que você identifica como a senhora Tchikamássova.
Você diz o seu nome e explica o motivo de sua vinda. O pavor e o espanto são substituídos por um “ah!” estridente e alegre, acompanhado de um revirar de olhos. Esse “ah”, como um eco, é transmitido do vestíbulo para a sala de visitas, da sala de visitas para a sala de jantar e desta para a cozinha... assim chegando até a adega. Em pouco tempo, toda a casinha se enche de muitos tipos de “ah”, alegres e variados. Cinco minutos depois, você já está sentado na sala de jantar, num grande divã, macio e quente, ouvindo toda a rua Moskóvskaia exclamar “ah”.
– Está uma desordem terrível aqui, nos desculpe! – disse Tchikamássova.
Ela conversava comigo e olhava confusa para a porta, atrás da qual as senhoras estavam catando os moldes. A porta, também de modo confuso, ora se entreabria, ora se fechava.
– O que você quer? – disse Tchikamássova em direção à porta.
– Où est mon cravatte, lequel mon père m’avait envoyé de Koursk? – perguntou de trás da porta uma voz feminina.
– Ah, est ce que, Marie, que... Ah, será possível? Nous avons donc chez nous un homme très peu connu par nous... Pergunte à Lukéria...
Logo depois, a porta se abriu e eu vi uma donzela alta e magra, de uns dezenove anos, com um vestido longo de musselina e um cinto dourado, do qual, me recordo, pendia um leque de madrepérola. Ela entrou, sentou-se e enrubesceu. Inicialmente enrubesceu seu nariz comprido, um pouquinho bexiguento; dali, o rubor caminhou para os olhos e, de lá, para as têmporas.
– Esta é a minha filha! – disse Tchikamássova com voz cantada. – E este, Mánetchka, é o jovem que...
Eu me apresentei e expressei meu espanto pela enorme quantidade de moldes. Mãe e filha baixaram os olhos.
– No dia da Ascensão houve aqui uma feira – disse a mãe. – Nós sempre compramos uma grande quantidade de tecidos na feira, e depois passamos o ano inteiro costurando, até a próxima feira. Nunca entregamos a costura para outros fazerem. Meu Piotr Semiônytch não ganha muito e não podemos nos permitir luxos. Temos de costurar nós mesmas.
– Mas quem aqui usa tal quantidade de roupas? Pois vocês são só duas.
– Ah... Será que isso se pode usar? Não é para usar. Isso é o enxoval!
– Ah, maman, o que está dizendo! – disse a filha, corando. – Este senhor vai de fato pensar que... Eu nunca me casarei! Nunca!
Ela disse isso, mas na palavra “casarei” seus olhinhos brilharam.
Trouxeram chá, torradas, geléia, manteiga, depois serviram framboesas com creme. Às sete da noite, houve um jantar composto de seis pratos, e durante o jantar eu ouvi um bocejo alto no quarto ao lado. Olhei espantado para a porta: um bocejo assim só pode ser de homem.
– É o irmão de Piotr Semiônytch, Iegor Semiônytch... – esclareceu Tchikamássova, notando meu espanto. – Ele mora conosco desde o ano passado. Desculpe-o, ele não pode aparecer para o senhor. É meio selvagem... Fica confuso na presença de estranhos. Pretende ir para um mosteiro... Alguém o ofendeu no trabalho... E agora, por causa da mágoa...
Depois do jantar, Tchikamássova mostrou uma epitrakhil (Longa tira de tecido, em geral ricamente bordada, que os sacerdotes ortodoxos trazem ao pescoço durante os serviços religiosos, com as pontas pendentes na frente do corpo), que Iegor Semiônytch bordara pessoalmente para dar de presente à igreja. Por um instante, Mánetchka despiu-se de sua timidez e mostrou-me uma bolsa para tabaco que ela havia bordado para o seu paizinho. Quando demonstrei estar surpreso com o seu trabalho, ela ficou toda vermelha e cochichou algo no ouvido da mãe. Esta ficou exultante e me propôs ir com ela ao depósito, onde vi uns cinco baús grandes e uma infinidade de caixas e baús pequenos.
– Isto... é o enxoval! – sussurrou a mãe. – Nós mesmas confeccionamos.
Depois de ver esses sombrios baús, comecei a me despedir das hospitaleiras proprietárias. Exigiram que eu desse minha palavra de que voltaria algum dia.
Tive oportunidade de cumprir o que prometera uns sete anos depois da minha primeira visita, quando fui enviado àquela cidadezinha como perito em um caso judiciário. Ao entrar na casinha, já minha conhecida, ouvi os mesmos “ah!”... Elas me reconheceram... Como não haveria de ser? Minha primeira visita fora um grande acontecimento na vida delas e, onde acontece pouca coisa, isso se recorda durante muito tempo... Quando entrei na sala de visitas, a mãe, ainda mais gorda e já com cabelos grisalhos, arrastava-se pelo chão e cortava um tecido azul-escuro; a filha estava sentada no divã, bordando. Os mesmos moldes, o mesmo cheiro de pó para traças, o mesmo retrato com o cantinho quebrado. Contudo, ocorreram mudanças. Ao lado do retrato do arcipreste, pendia o retrato de Piotr Semiônytch, e as duas senhoras estavam de luto. Piotr Semiônytch havia morrido uma semana depois de sua promoção a general.
Começaram as recordações... A viúva do general derramou algumas lágrimas.
– É uma tristeza enorme para nós! – disse ela. – Piotr Semiônytch – o senhor conhece? – Já não está mais conosco. Eu e ela estamos órfãs e temos de cuidar de nós mesmas. Mas Iegor Semiônytch está vivo, e não podemos falar nada de bom sobre ele. Não o aceitaram no mosteiro, porque... bebe demais. E agora está bebendo ainda mais, de tristeza. Estou pensando em ir me queixar ao decano da nobreza. Imagine o senhor que várias vezes ele abriu os baús, pegou peças do enxoval de Mánetchka e deu para os romeiros. Aos poucos ele esvaziou dois baús! Se continuar assim, minha Mánetchka vai ficar completamente sem dote...
– Que a senhora está dizendo, maman! – disse Mánetchka embaraçada. – Só Deus sabe o que esse senhor vai pensar... Eu nunca, nunca vou me casar!
Mánetchka olhou inspirada e com esperança para o teto, pelo visto não acreditando no que dizia.
Pelo vestíbulo esgueirou-se uma pequena figura masculina, com uma calva profunda, casaco marrom e galochas em vez de botas, provocando um leve rumor, como um rato.
“Deve ser Iegor Semiônytch” – pensei.
Dei uma olhada na mãe e na filha: ambas haviam envelhecido muito, estavam macilentas. A cabeça da mãe cobria-se de prata, a filha desbotara, murchara, e parecia que a mãe era mais velha do que a filha uns cinco anos no máximo.
– Pretendo ir procurar o decano da nobreza – disse a velha, esquecendo-se de que já havia dito isso. – Quero fazer uma queixa! Iegor Semiônytch tira tudo que confeccionamos e doa não sei a quem para salvar sua alma. Minha Mánetchka ficou sem seu enxoval!
Mánetchka corou, mas dessa vez não disse nada.
– Será preciso fazer tudo de novo, mas Deus sabe que não somos ricaças, de modo algum! Nós duas estamos órfãs!
– Estamos órfãs! – repetiu Mánetchka.
No ano passado, o destino novamente me atirou naquela casinha que eu conhecia. Entrei na sala de visitas e vi a velha Tchikamássova toda de preto, com crepes na roupa, sentada no divã, costurando algo. Ao seu lado estava um velhinho de casaco marrom e de galochas em vez de botas. Ao me ver, o velhinho levantou-se de um salto e correu para fora da sala...
Em resposta ao meu cumprimento, a velhinha sorriu e disse:
– Je suis charmée de vous revoir, monsieur.
– O que a senhora está costurando? – perguntei, passado algum tempo.
– Uma camisa. Eu faço e levo para o padre esconder, senão Iegor Semiônytch carrega. Agora dou tudo para o padre esconder – disse ela, sussurrando.
E, dando uma olhada para o retrato da filha sobre a mesa próxima, suspirou e disse:
– Como vê, estamos órfãos!
Mas onde está a filha? Onde está Mánetchka? Não perguntei; não queria interrogar a velhinha vestida de luto profundo. Durante o tempo todo que passei na casinha, e também quando já estava de saída, Mánetchka não apareceu, e nem ao menos ouvi sua voz, ou seus passos leves, tímidos... Tudo ficou claro. Saí com um peso no coração…
Anton Tchékhov, "A Dama do cachorrinho: E Outras Histórias"
As persianas dessa casinha estão sempre fechadas: os moradores não necessitam de luz. A luz é dispensável para eles. As janelas nunca se abrem, porque os habitantes da casinha não gostam de ar fresco. Pessoas que vivem permanentemente entre amoreiras, acácias e bardanas são indiferentes à natureza. Somente aos veranistas das casas de campo é que Deus deu a capacidade de compreender a beleza da natureza; já o restante da humanidade atola-se em profunda ignorância. As pessoas não valorizam o que possuem. “Não conservamos o que é nosso” – costuma-se dizer. Mais do que isso: nós não amamos aquilo que é nosso. Em torno da casinha, há um paraíso terrestre, verde, cheio de pássaros alegres; já dentro da casinha, um horror! No verão, é tórrido e abafado; no inverno, quente como uma sauna, com um ar viciado e um enorme tédio...
A primeira vez que visitei essa casinha foi há muito tempo, e eu tinha uma incumbência: viera para transmitir os cumprimentos do dono da casa, coronel Tchikamássov, a sua esposa e a sua filha. Lembro-me perfeitamente dessa minha primeira visita, e não poderia ser diferente.
Imagine uma mulherzinha sem traquejo social, de uns quarenta anos, que olha para você com espanto e pavor no momento em que você passa do vestíbulo para a sala. Você é um “estranho”, uma visita, “um jovem rapaz” – e isso já é suficiente para despertar espanto e pavor. Você não tem na mão nem maça, nem machado, nem revólver; você está sorrindo amistosamente, mas é recebido com ansiedade.
– A quem eu tenho a honra e a satisfação de receber? – pergunta com voz trêmula a senhora de meia-idade, que você identifica como a senhora Tchikamássova.
Você diz o seu nome e explica o motivo de sua vinda. O pavor e o espanto são substituídos por um “ah!” estridente e alegre, acompanhado de um revirar de olhos. Esse “ah”, como um eco, é transmitido do vestíbulo para a sala de visitas, da sala de visitas para a sala de jantar e desta para a cozinha... assim chegando até a adega. Em pouco tempo, toda a casinha se enche de muitos tipos de “ah”, alegres e variados. Cinco minutos depois, você já está sentado na sala de jantar, num grande divã, macio e quente, ouvindo toda a rua Moskóvskaia exclamar “ah”.
Sentia-se um cheiro de pó para traças e de uns sapatos novos, de pele de cabra, que estavam sobre a cadeira ao lado, enrolados num lenço. Nas janelas havia gerânios e retalhos de musselina. Nos retalhos, um monte de moscas de barriga cheia. Na parede pendia o retrato de um arcipreste, pintado a óleo, coberto por um vidro com um cantinho quebrado. Partindo do arcipreste, começava uma fileira de antepassados com fisionomias amarelo-limão, parecendo ciganos. Sobre a mesa estavam um dedal, um novelo de linha e um pé de meia não totalmente tecido; no chão havia moldes e uma blusinha preta com linhas de um colorido vivo. No quarto ao lado, duas velhinhas assustadas e apressadas apanhavam do chão moldes e retalhos...
– Está uma desordem terrível aqui, nos desculpe! – disse Tchikamássova.
Ela conversava comigo e olhava confusa para a porta, atrás da qual as senhoras estavam catando os moldes. A porta, também de modo confuso, ora se entreabria, ora se fechava.
– O que você quer? – disse Tchikamássova em direção à porta.
– Où est mon cravatte, lequel mon père m’avait envoyé de Koursk? – perguntou de trás da porta uma voz feminina.
– Ah, est ce que, Marie, que... Ah, será possível? Nous avons donc chez nous un homme très peu connu par nous... Pergunte à Lukéria...
“Mas como nós falamos bem francês!” – li nos olhos de Tchikamássova, que estava corada de satisfação.
Logo depois, a porta se abriu e eu vi uma donzela alta e magra, de uns dezenove anos, com um vestido longo de musselina e um cinto dourado, do qual, me recordo, pendia um leque de madrepérola. Ela entrou, sentou-se e enrubesceu. Inicialmente enrubesceu seu nariz comprido, um pouquinho bexiguento; dali, o rubor caminhou para os olhos e, de lá, para as têmporas.
– Esta é a minha filha! – disse Tchikamássova com voz cantada. – E este, Mánetchka, é o jovem que...
Eu me apresentei e expressei meu espanto pela enorme quantidade de moldes. Mãe e filha baixaram os olhos.
– No dia da Ascensão houve aqui uma feira – disse a mãe. – Nós sempre compramos uma grande quantidade de tecidos na feira, e depois passamos o ano inteiro costurando, até a próxima feira. Nunca entregamos a costura para outros fazerem. Meu Piotr Semiônytch não ganha muito e não podemos nos permitir luxos. Temos de costurar nós mesmas.
– Mas quem aqui usa tal quantidade de roupas? Pois vocês são só duas.
– Ah... Será que isso se pode usar? Não é para usar. Isso é o enxoval!
– Ah, maman, o que está dizendo! – disse a filha, corando. – Este senhor vai de fato pensar que... Eu nunca me casarei! Nunca!
Ela disse isso, mas na palavra “casarei” seus olhinhos brilharam.
Trouxeram chá, torradas, geléia, manteiga, depois serviram framboesas com creme. Às sete da noite, houve um jantar composto de seis pratos, e durante o jantar eu ouvi um bocejo alto no quarto ao lado. Olhei espantado para a porta: um bocejo assim só pode ser de homem.
– É o irmão de Piotr Semiônytch, Iegor Semiônytch... – esclareceu Tchikamássova, notando meu espanto. – Ele mora conosco desde o ano passado. Desculpe-o, ele não pode aparecer para o senhor. É meio selvagem... Fica confuso na presença de estranhos. Pretende ir para um mosteiro... Alguém o ofendeu no trabalho... E agora, por causa da mágoa...
Depois do jantar, Tchikamássova mostrou uma epitrakhil (Longa tira de tecido, em geral ricamente bordada, que os sacerdotes ortodoxos trazem ao pescoço durante os serviços religiosos, com as pontas pendentes na frente do corpo), que Iegor Semiônytch bordara pessoalmente para dar de presente à igreja. Por um instante, Mánetchka despiu-se de sua timidez e mostrou-me uma bolsa para tabaco que ela havia bordado para o seu paizinho. Quando demonstrei estar surpreso com o seu trabalho, ela ficou toda vermelha e cochichou algo no ouvido da mãe. Esta ficou exultante e me propôs ir com ela ao depósito, onde vi uns cinco baús grandes e uma infinidade de caixas e baús pequenos.
– Isto... é o enxoval! – sussurrou a mãe. – Nós mesmas confeccionamos.
Depois de ver esses sombrios baús, comecei a me despedir das hospitaleiras proprietárias. Exigiram que eu desse minha palavra de que voltaria algum dia.
Tive oportunidade de cumprir o que prometera uns sete anos depois da minha primeira visita, quando fui enviado àquela cidadezinha como perito em um caso judiciário. Ao entrar na casinha, já minha conhecida, ouvi os mesmos “ah!”... Elas me reconheceram... Como não haveria de ser? Minha primeira visita fora um grande acontecimento na vida delas e, onde acontece pouca coisa, isso se recorda durante muito tempo... Quando entrei na sala de visitas, a mãe, ainda mais gorda e já com cabelos grisalhos, arrastava-se pelo chão e cortava um tecido azul-escuro; a filha estava sentada no divã, bordando. Os mesmos moldes, o mesmo cheiro de pó para traças, o mesmo retrato com o cantinho quebrado. Contudo, ocorreram mudanças. Ao lado do retrato do arcipreste, pendia o retrato de Piotr Semiônytch, e as duas senhoras estavam de luto. Piotr Semiônytch havia morrido uma semana depois de sua promoção a general.
Começaram as recordações... A viúva do general derramou algumas lágrimas.
– É uma tristeza enorme para nós! – disse ela. – Piotr Semiônytch – o senhor conhece? – Já não está mais conosco. Eu e ela estamos órfãs e temos de cuidar de nós mesmas. Mas Iegor Semiônytch está vivo, e não podemos falar nada de bom sobre ele. Não o aceitaram no mosteiro, porque... bebe demais. E agora está bebendo ainda mais, de tristeza. Estou pensando em ir me queixar ao decano da nobreza. Imagine o senhor que várias vezes ele abriu os baús, pegou peças do enxoval de Mánetchka e deu para os romeiros. Aos poucos ele esvaziou dois baús! Se continuar assim, minha Mánetchka vai ficar completamente sem dote...
– Que a senhora está dizendo, maman! – disse Mánetchka embaraçada. – Só Deus sabe o que esse senhor vai pensar... Eu nunca, nunca vou me casar!
Mánetchka olhou inspirada e com esperança para o teto, pelo visto não acreditando no que dizia.
Pelo vestíbulo esgueirou-se uma pequena figura masculina, com uma calva profunda, casaco marrom e galochas em vez de botas, provocando um leve rumor, como um rato.
“Deve ser Iegor Semiônytch” – pensei.
Dei uma olhada na mãe e na filha: ambas haviam envelhecido muito, estavam macilentas. A cabeça da mãe cobria-se de prata, a filha desbotara, murchara, e parecia que a mãe era mais velha do que a filha uns cinco anos no máximo.
– Pretendo ir procurar o decano da nobreza – disse a velha, esquecendo-se de que já havia dito isso. – Quero fazer uma queixa! Iegor Semiônytch tira tudo que confeccionamos e doa não sei a quem para salvar sua alma. Minha Mánetchka ficou sem seu enxoval!
Mánetchka corou, mas dessa vez não disse nada.
– Será preciso fazer tudo de novo, mas Deus sabe que não somos ricaças, de modo algum! Nós duas estamos órfãs!
– Estamos órfãs! – repetiu Mánetchka.
No ano passado, o destino novamente me atirou naquela casinha que eu conhecia. Entrei na sala de visitas e vi a velha Tchikamássova toda de preto, com crepes na roupa, sentada no divã, costurando algo. Ao seu lado estava um velhinho de casaco marrom e de galochas em vez de botas. Ao me ver, o velhinho levantou-se de um salto e correu para fora da sala...
Em resposta ao meu cumprimento, a velhinha sorriu e disse:
– Je suis charmée de vous revoir, monsieur.
– O que a senhora está costurando? – perguntei, passado algum tempo.
– Uma camisa. Eu faço e levo para o padre esconder, senão Iegor Semiônytch carrega. Agora dou tudo para o padre esconder – disse ela, sussurrando.
E, dando uma olhada para o retrato da filha sobre a mesa próxima, suspirou e disse:
– Como vê, estamos órfãos!
Mas onde está a filha? Onde está Mánetchka? Não perguntei; não queria interrogar a velhinha vestida de luto profundo. Durante o tempo todo que passei na casinha, e também quando já estava de saída, Mánetchka não apareceu, e nem ao menos ouvi sua voz, ou seus passos leves, tímidos... Tudo ficou claro. Saí com um peso no coração…
Anton Tchékhov, "A Dama do cachorrinho: E Outras Histórias"
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