Nesse tempo, ainda não se sabia quase nada acerca do mundo. A vida era apenas uma ideia baça, tangida à superfície áspera das coisas, e eu via-a através de uma cortina diáfana (cor de cinza, como devia ser o fundo dos oceanos), orientando-me à flor da realidade mais pelo ouvido e pelo tacto do que pelo sempre abreviado sentido do olhar na infância. Apesar de estar ali tão perto – entranhado no ouvido e quase ao alcance da mão – eu ainda não tinha ido conhecer o mar. Nem a vila do Nordeste, sede do concelho, nem a cidade de Ponta Delgada (que ficava a pouco mais de dez léguas de um caminho batido a cascalho de bagacina e a ossadas pedregosas), nem as freguesias, ao lado da minha, que se perfilavam ao cimo da falésia, à sombra das torres das suas igrejas (cujas fachadas se postavam de frente para a gloriosa cidade de Jerusalém); e tão-pouco os verdes enevoados montes das terras a que então chamavam «mato do povo» – de cima dos quais se via mar e mar de um lado e do outro da ilha. Eram rasos os ventos marítimos que vinham da América, e húmidos os campos de milho, beterraba e tabaco. Solenes e sinistras, grandes aves de arribação, de hábitos nocturnos (os «cagarros» que nidificavam nas rochas) atravessavam a escuridão do céu dos Açores chorando por cima das casas, enquanto nós, crianças cismadas, tentávamos dormir com os seus grasnidos de cólera no ouvido. Diziam-nos as avós que com essas vozes plangentes das aves se misturava o pranto dos bebés mortos antes de serem baptizados, indo a caminho do Limbo, que diziam ser a estação infinita das almas. Não devendo penar injustamente no Purgatório nem no fogo eterno do Inferno, também não podiam aspirar ao bosque deleitoso do Paraíso. E porque não? Ora, porque não eram nem cristãos perfeitos, nem pecadores confessos e contumazes, pois não lhes fora administrado o sacramento do baptismo, que os pudera ter redimido do pecado original e levado à doce e serena presença de Deus. Quanto aos aviões, esses passavam alto de mais, lá muito acima do nosso mundo de animais terráqueos e com os pés grudados ao chão. Viajavam mais perto de Deus do que de nós, filhos dos homens. Os seus corpos de peixes metálicos, entrando e saindo de entre as nuvens carregadas de chuva, extinguiam-se no limite extremo do olhar, como um ponto final na última página de um livro. Por sua vez, os navios não iam além de miniaturas recortadas na cartolina branca do mar que a luz do Sol fixamente iluminava sobre a linha do horizonte, imóveis, sem rumo à vista – e perdidos (acreditava eu) nos imponderáveis e líquidos caminhos das suas viagens à volta do mundo. De sorte que (como esquecê-lo?) o grande dia da minha infância aconteceu quando pude enfim descer ao fundo da falésia e ir conhecer o mar de perto. Primeiro, fiquei ali de pé, extasiado perante aquela imensa planície de água que se erguia e enrolava ao largo; que depois movia o carro das suas sete ondas-rodas e vinha por fim desabar a meus pés, por entre o calhau rolado da costa vulcânica. Sentei-me na sua frente, chamei- o baixinho, uma, duas, três vezes, mar, mar, mar, e logo ele, cão ingénuo e faminto, me veio comer às mãos. Além de plano, cheirava mais a partida do que a chegada e lavava os meus olhos extasiados com o sal de palavras que me eram mais ou menos desconhecidas: adeus, saudade, despedida, regresso, Lisboa, Brasil, Venezuela, Canadá, América, América, América... Bastava puxar os fios do mar (ele possuía-os à superfície da água, boiando ao sabor das correntes e das ondas) e desejar um navio, uma cidade, um país ideal, um simples lugar de achamento num dos antigos continentes que nos haviam largado a meio do Atlântico, entre a Europa e a América. Puxando os fios do mar, podia acontecer que surgisse a tal ilha emersa no meio de uma utopia, ou um deus montado no seu carro de nuvens douradas à luz sangrenta do crepúsculo, um cavalo a galope sobre a espuma de um perfeito sonho de largada, ou outra qualquer personificação do desejo de viajar ao encontro do mundo. Também não se sabia, nesse tempo, o que era um vulcão – de onde vinha, de que funestos poderes ele se armava para nos fustigar. As desgraças maiores de então chegavam à frente dos devastadores ciclones, ou vinham com as chuvas de noventa e nove dias consecutivos, com os sismos que abriam fendas nas empenas das casas e no chão dos caminhos, ou no rol de umas esquisitas doenças, ditas estrangeiras, cujos nomes não cabiam na língua que então falávamos. Esses males, porém, existiam para que os esconjurasse o poder divino dos grandes remédios. Às vezes, íamos de procissão, Rua Direita acima e abaixo, com a Salvé-Rainha nos suspiros e nas vozes da alma, rezando, pedindo misericórdia e perdão à Padroeira, experimentando a sinceridade do arrependimento. E logo ali cessavam os sismos e os temporais, e amainavam as vagas e os ventos americanos, tudo isso por obra e graça da Nossa Senhora do Rosário. Por conseguinte, voltava a ser permitido pecar por pensamentos, obras e omissões, e ir ao confessor na semana da Páscoa, ajoelhar humildemente a seus pés, fazer o acto de contrição com ar compungido e contar com a absolvição do nosso confessor a troco de umas penitências leves, quase irrisórias. E assim era a felicidade. Um dia, chegou a notícia do vulcão dos Capelinhos, na longínqua ilha do Faial. Abismados, perguntámo-nos que estranha coisa seria essa de saírem jactos de fogo e lava cor de púrpura das profundezas do mar e do ventre da terra, cuja calda deslizava montanha abaixo, submergindo casas e ruas, matando os campos, as pessoas, os animais, sem que a nada e a ninguém valesse o Senhor Deus Todo Poderoso das catequistas, das avós religiosas e frias, dos sermões irados na missa de domingo pela voz do padre Correia, da verdade absoluta da Fé em todas as evidências da nossa idade. Não houve quem nos soubesse ou quisesse responder. Tornou-se-nos claro que existem lugares, tempos e pessoas junto dos quais e de quem nada adianta formular perguntas. Numa ilha dos Açores, um vulcão pode abrir uma porta de saída da terra para o mar, e abrir uma outra de regresso à origem do mundo e da vida. Foi isso que naquele tempo nos aconteceu. Como tínhamos nós, exilados, esquecidos entre três continentes (a Europa, a África e a América), ido nascer aos Açores? Por que motivo falávamos uma língua que datava do tempo das naus de África, da Índia, do Brasil e da América que amiúde aportavam à aguada das ilhas, ou a socorrer-se contra a investida do corso, da pirataria magrebina, das furiosas tormentas, dos naufrágios de Sepúlveda, das histórias trágico-marítimas coligidas pelo frade Bernardo Gomes de Brito ou escritas por um insigne e estupendo mentiroso, num tempo em que a ficção ainda não existia entre nós – Fernão Mendes Pinto, o autor de Peregrinação? De novo, pouco ou nada adiantava fazer perguntas. Os bichos da terra não podem esperar respostas sensatas à impostura dos seus próprios verbos interrogativos. Recorrem à imaginação explicativa do ser, põem de parte a chamada lógica natural, só crêem no bom propósito do que mais e melhor lhes convém. Existem teorias para tudo neste mundo. Por exemplo, acerca da largada dos primeiros tios solteiros para o Brasil e a Venezuela, à procura das terras do fogo, das minas, da riqueza fácil e impetuosa. Ou acerca dos outros tios que iniciaram a demanda dos distantes países do frio, onde então a neve se chamava «sinó», os comboios «treines» e a cerveja «bia». Chegavam a lugares e nomes como Québec, Toronto, Kitimat, Boston, New Bedford ou Fall River, doentes, exaustos de tanta guerra com a água salgada, de tanto enjoo do cheiro a resina e a óleo quente dos barcos, tanta tormenta de mar levantado pelos ventos. Mas depois mandavam cartas com um dólar dentro, dobrado no meio de papelinhos cor de tabaco, para não serem detectados à luz pelos olhos ávidos dos carteiros. Eram cartas com lágrimas e erros de ortografia, que nos davam a saber que o mundo, ao contrário do que nos tinham ensinado na escola, não era nada redondo, nem oval, nem curvo sequer, e sim plano, horizontal, contínuo, parado a céu aberto, sem princípio nem fim. À medida que sobre elas se caminhava, as águas abriam-se à passagem dos viajantes, como outrora ocorrera ao profeta Moisés no Mar Vermelho; o céu movia-se por cima das suas cabeças e o horizonte deslocava-se para diante, indo sempre à frente dos passos perdidos desses aventureiros do mar. Ninguém inventara, ainda, uma forma de regresso a casa. Sair da ilha significava ir a direito: passar a cancela do quintal, fechar o caminho atrás das costas e singrar à tona da água, como singram as garrafas lançadas na corrente, levando lá dentro uma mensagem de amor ou um pedido de socorro, até que de novo aparecesse terra à vista. Não vos pareça excessiva nem absurda a minha hipótese – mas esse não foi o movimento de partida dos Açores para o mundo de fora; tratou- se apenas de um reencontro com a morada universal de todos os viajantes que já não recordam um lugar de origem, nem sabem onde começa o seu ponto de chegada à outra margem do Atlântico. Como explicá-lo, aliás? Íamos de regresso aos continentes de onde havíamos sido expulsos antes de termos nascido; de regresso a tudo e a nada, de novo nas voltas do mar e do tempo, subindo de um século para o século seguinte, em ascensão para o alto e também para dentro de nós. Regressávamos a Coimbra e a Lisboa, onde tínhamos deixado os livros de estudo, a conspiração política e o amor das mulheres; íamos de volta à Europa e das suas velhas catedrais góticas, para nelas conhecer a vontade de Deus a nosso respeito; às Áfricas, como herdeiros dos que morreram às mãos da terra; à América única e numerosa como a mulher amada do poeta Ruy Belo; aos sonhos de pai e mãe, à ideia de que devia haver em nós uma ânsia de humanidade igual ao sangue da grande família universal. Mas, repito, como explicar os Açores enquanto lugar de partida para o seio do mundo, se afinal, ainda agora e sempre, nos limitamos a ir longe buscá-lo e nada mais queremos do que tomar o mundo nas mãos, sustentá-lo, tomar-lhe o peso, o mecanismo, a razão – e envolvê-lo no nosso sonho de regresso à casa do ser e da Ilha?
João de Melo, "A Condição de Ilhéu"
Nenhum comentário:
Postar um comentário