E quando a ciência se mostra ainda impotente, como acontece com o câncer e com a Aids, os sábios enfrentam com tal gana o desafio que, com certeza, em breve o vencerão.
E agora eu pergunto: estará mesmo dentro dos planos de Deus tanta gente pululando na fase da terra? Mais de um bilhão de chineses, por exemplo, estriam previstos no Gênese, quando o Senhor contemplou a sua criação e achou que tudo estava bem? Não haverá chineses demais, e russos, e americanos, e indianos – e brasileiros?
Os criadores de gado e de outros bichos sabem que não se pode ter rebanho acima das possibilidades de pasto. Passando certo limite, tem que vender, mandar para o corte, embora com uma dor no coração. Então nós, que somos o rebanho do Senhor, não teremos excedido as possibilidades do nosso sustento, não careceremos de ser reajustados? Como Deus não dendê corpos (o próprio Diabo só se interessa por almas), Ele então suscita epidemias, terremotos, enchentes, revoluções, guerras. E como tem conosco o compromisso de nos permitir o livre-arbítrio, deixa que a podagem a façamos nós mesmos – e por isso é ela tão imperfeita. Guerras por exemplo: são um método seguro de fazer com que minguem populações. Mas em vez de se recrutarem os inúteis, os descartáveis, os velhos, os estropiados, os frágeis – não: convoca-se para a guerra a fina flor da população, os que estão no esplendor da juventude. Idade entre 18 e 25 anos, boa altura, boas proporções, saúde perfeita. Nem os míopes são aceitos. Dentes impecáveis, como se nas guerras de hoje ainda se brigasse às dentadas. Exemplares perfeitos, hígidos – pra quê? Para fazer deles carne de canhão. Parece que as juntas do recrutamento militar não têm ideia da crueza da guerra; só cuidam de bonitos soldadinhos em parada. Por mim, em caso de guerra, afora os especialistas indispensáveis (que, no caso, precisam é de bons cérebros, não de higidez física), pegaria para carne de canhão somente os dispensáveis, os que são um peso para si e para os outros e – por que não? – os velhos como nós. Passou dos 70, está automaticamente alistado. O prejuízo não seria tão grande, nós já estamos mesmo na hora do ajuste de contas. Nos romances de cavalaria há sempre a figura do velho herói que, somando as cansadas forças ao imperecível valor, ganha a vitória com o seu sacrifício. Lembram-se da última campanha do Cid Campeador? Até depois de morto venceu o combate, correndo à frente no seu corcel de guerra, atado numa grade que o sustinha à sela, preso na mão esquerda o pendão de batalha. Pois há muito velho por aí, ansioso por acabar em glória, numa façanha assim.
E então ficariam só os moços, os belos, os saudáveis, para repovoar a terra.
Rachel de Queiroz , "96 crônicas escolhidas"
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