Assim chegou aos sete anos.
Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela, e tinha razão porque, digamos depressa e sem mais cerimônia, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos, através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade.
Depois começou a estranhar eu um certo colega seu o procurasse em casa, para tratar de negócios do ofício, sempre em horas desencontradas: porém isto também passou breve. Finalmente aconteceu por três ou quatro vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu.
À vista disso nada havia a duvidar; o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúmes. Largou apressado sobre um banco uns autos que trazia embaixo do braço, endireitou para Maria com os punhos cerrados.
- Grandessíssimo! ...
E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer com todo o corpo.
A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que receava com qualquer cousa.
- Tira-te, ó Leonardo!
- Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te esta boca a socos...
- Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?
Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da traição e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos sobre Maria, que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr, a chorar e a gritar:
- Ai... ai... acuda, Senhor Compadre... Senhor Compadre!
Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês e não podia larga-lo.
Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas. Escolheu-se a choramingar em um canto.
O menino assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio: enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava, ele ocupava-se tranquilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar, e em fazer delas uma grande coleção de cartuchos.
Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ser alguma cousa mais do que ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno.
Enfureceu-se de novo: suspendeu o menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma meia-volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos, atirando-o sentado a quatro braças de distância.
- És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te acabe a casta.
Manuel Antônio de Almeida., "Memórias de um Sargento de Milícias"
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