Mas, ao se aproximar de Lavras, o rio Grande era repentinamente espremido numa estreitíssima garganta de pedras, pela qual as águas passavam com fúria. Era o “funil” que passou a ser agregado ao nome da cidade que virou Lavras do Funil. Lugar de perigo. Muitos distraídos foram tragados pelas águas. Mas era um lugar bom de se pescar porque os peixes, subindo o rio manso em busca das nascentes, eram parados pela força das águas. Pesquei lá muitas vezes. Hoje não existe mais. Construíram uma barragem. O funil foi coberto pelas águas do progresso. Sua fúria amansou. Na fundura serena das águas não mais estranguladas pela garganta estreita os peixes nadam tranquilamente. Dali para baixo o rio ficava preguiçoso de novo, prestando-se à navegação. Foi então que homens progressistas da cidade de Lavras, entre eles o doutor Jorge, avô materno de minha mãe, e o seu genro capitão Evaristo, pai de minha mãe, tiveram a ideia de montar uma companhia de navegação que, começando no porto de Ribeirão Vermelho, a oito quilômetros de Lavras, desceria até Boa Esperança. O vapor, parecido com aqueles do rio Mississipi, veio dos Estados Unidos. Imagino que o seu transporte do Rio de Janeiro até Ribeirão Vermelho deve ter sido uma epopeia a se comparar com a epopéia do transporte da pedra do altar para o convento de Mafra descrito por Saramago, no seu livro Memorial do convento. Rio abaixo, de Ribeirão Vermelho a Boa Esperança, a viagem levava dia e meio. O vapor, elegante, era dotado de camarotes. Rio acima, três dias, duas noites sobre as águas. Devia ser bonito e silencioso. Foi nesse vapor que os casadinhos de novo, meu pai e minha mãe, viajaram naquele dia de começo de setembro do ano de 1919. Os ipês amarelos estavam em flor.
Aquele casamento ligava duas fortunas e dois sangues: um sangue ruim, misturado, e um sangue azul, supostamente puro. Mas plebeu que se casa com princesa fica nobre. A excelentíssima esposa do filho da dona Sophia tinha sangue azul e era pianista. Seu piano Pleyel, presente de casamento do capitão Evaristo, seu pai, em breve chegaria a Dores diretamente de Paris, alterando a estatística do Almanak. Realizava-se o sonho da dona Sophia.
O foguetório era para anunciar que os nubentes acabavam de desembarcar do vapor Doutor Jorge, no porto do rio Grande, depois de uma viagem de um dia e meio rio abaixo, desde o porto de Ribeirão Vermelho. Todo mundo tinha de saber. Naquele momento a comitiva estava a caminho, os homens cavalgando em selas e arreios, minha mãe cavalgando em silhão porque em Dores não havia liteira. Silhão, se é que você não sabe, foi a solução encontrada pelos artesãos defensores da castidade para evitar a indecência de uma mulher cavalgando de pernas abertas, como os homens. No silhão cavalgava-se assentado. De fato, era perigoso para uma mulher cavalgar de pernas abertas, mormente se fosse virgem. Havia sempre duas possibilidades, pelo menos na imaginação dos homens. Primeira, que a virgem viesse a perder sua virgindade, o que a infelicitaria pelo resto da vida, posto que o marido não acreditaria nas explicações que ela daria na noite de núpcias. Segunda, mais realista, que as pressões rítmicas da sela sobre as partes secretas da mulher viessem a lhe causar prazeres proibidos. Aqueles movimentos do cavalo, especialmente se for trotão, sugerem imediatamente os movimentos de um coito e os seus deleites, coisa que eventualmente era confirmada pelo sorriso de prazer da amazona. Ora, isso é incompatível com o caráter puro de uma excelentíssima mulher honesta. Mulheres honestas não gostam de sexo. Por isso a mulher tinha de ir assentada no silhão, pernas castamente fechadas, o seu cavalo a andar passo a passo, como se estivesse seguindo uma procissão.
O vapor Doutor Jorge, eu o vi 22 anos depois, quando tinha sete anos, afundado no porto de Ribeirão Vermelho. Dizem que a sua chaminé ainda pode ser vista hoje quando o rio está baixo.
Minha avó sorriu feliz. O seu sonho de nobreza, acrescentado ao da riqueza, estava realizado.
Rubem Alves, "O Velho que Acordou Menino"
Nenhum comentário:
Postar um comentário