terça-feira, abril 23

A mal-amada

É em nossa variedade mestiça, vocálica, plástica e colorida do idioma nascido há cerca de oitocentos anos na Península Ibérica, filho caçula do latim, que estão mergulhados hoje mais de 80% dos lusoparlantes.

Pena que, no meio dessa multidão, não faltem os que falam mal da sua língua. Repare na preposição: falam mal da sua língua. Mesmo quando nem a falam tão mal assim.

Dizem que o português brasileiro é errado, que só os irmãos d’além-mar sabem tratar a gramática como ela merece. Ou então dizem que esse idioma enrolado e difícil nunca prestou mesmo, já era uma desgraça antes de Camões — ah, quem nos dera falar uma língua de Primeiro Mundo!

Há aqueles que, empenhados na causa nobre de estudar os falares do povo, desenvolvem um preconceito contra a língua-padrão e, por tabela, contra os séculos de beleza que a literatura nos legou. Terminam por proclamar — sem que
ninguém dê muita bola, é verdade — a independência linguística do “brasileiro”.

E existem os que se aproveitam da confusão generalizada para exercer os vis prazeres de corrigir o que nunca esteve errado — e tome bobagens como “risco de morte”, “um peso e duas medidas” etc.

Ainda nem falamos das saúvas clássicas: o analfabetismo funcional que assola a maioria da população, o pedantismo cafona do juridiquês, a barbaridade do corporativês, a importação servil de estrangeirismos gratuitos e a tendência —
aliás universal — ao chiclete viciante do clichê, da embromação, da entropia do sentido…

Nesse quadro, muita coisa anda em falta no Brasil, a começar por uma educação de qualidade minimamente aceitável. Mas talvez não seja piegas dizer que falta amor à língua também.

Os debates públicos sobre a língua andam chatos, parecendo diálogos de surdos. De um lado gritam os que defendem por puro reflexo a gramática tradicional (muitas vezes sem sequer dominá-la), convencidos de que o mundo vai acabar
da próxima vez que alguém escrever “Me chama” em vez de “Chama-me” — como se isso não fosse banal na literatura brasileira há quase cem anos.

Do outro lado, esgoelam-se aqueles que se baseiam nos estudos linguísticos modernos para abrir fogo contra qualquer fumaça de certo e errado, beirando a esculhambação de tratar o português bem transado, que procura atualizar a tradição dos bons autores em vez de dinamitá-la, como entulho normativista.


Sem caretice e sem vale-tudo, este livro entende os argumentos dos dois lados, mas reserva-se o direito de não morrer abraçado com nenhum deles. Aposta que é possível cultivar a variedade culta da língua e ao mesmo tempo compreender que regras são historicamente determinadas, que nenhuma delas caiu do céu, e que no fim das contas o idioma é sempre atualizado por quem o fala. A mesma aposta inclui o reconhecimento da grande beleza que existe nisso.

Sem submissão ao jeito lusitano, mas ao mesmo tempo sem esperneios de independência que pudessem transformar (que horror!) a poesia de Fernando Pessoa em terra estrangeira, Viva a língua brasileira! dança na corda bamba de sombrinha.

Sim, feito a esperança de Aldir Blanc na canção “O bêbado e a equilibrista” — um dos poetas da língua brasileira que teremos como guia de viagem.

Ganho a vida com palavras, mas minha abordagem não é a de um linguista, gramático ou professor de português. Sou escritor e jornalista.

Este livro é fruto de duas experiências pessoais: meio século como falante e quinze anos como pesquisador e colunista (na imprensa tradicional e na internet) especializado em língua e linguagem, em nosso jeito de falar e escrever: o certo e
o errado, o bonito e o feio, o como e o porquê, de onde viemos e para onde vamos.

Se você acha nosso idioma dificílimo, ilógico, caidaço, ou acredita que conversar amorosamente sobre ele é perda de tempo — lamento, você está errado. Espero que este livro mude seu modo de pensar.

É em nossa variedade mestiça, vocálica, plástica e colorida do idioma nascido há cerca de oitocentos anos na Península Ibérica, filho caçula do latim, que estão mergulhados hoje mais de 80% dos lusoparlantes.

Pena que, no meio dessa multidão, não faltem os que falam mal da sua língua. Repare na preposição: falam mal da sua língua. Mesmo quando nem a falam tão mal assim. Dizem que o português brasileiro é errado, que só os irmãos d’além-mar sabem tratar a gramática como ela merece. Ou então dizem que esse idioma enrolado e difícil nunca prestou mesmo, já era uma desgraça antes de Camões
— ah, quem nos dera falar uma língua de Primeiro Mundo!

Há aqueles que, empenhados na causa nobre de estudar os falares do povo, desenvolvem um preconceito contra a língua-padrão e, por tabela, contra os séculos de beleza que a literatura nos legou. Terminam por proclamar — sem que
ninguém dê muita bola, é verdade — a independência linguística do “brasileiro”.

E existem os que se aproveitam da confusão generalizada para exercer os vis prazeres de corrigir o que nunca esteve errado — e tome bobagens como “risco de morte”, “um peso e duas medidas” etc. 

Ainda nem falamos das saúvas clássicas: o analfabetismo funcional que assola a maioria da população, o pedantismo cafona do juridiquês, a barbaridade do corporativês, a importação servil de estrangeirismos gratuitos e a tendência —
aliás universal — ao chiclete viciante do clichê,da embromação, da entropia do sentido…

Nesse quadro, muita coisa anda em falta no Brasil, a começar por uma educação de qualidade minimamente aceitável. Mas talvez não seja piegas dizer que falta amor à língua também.

Os debates públicos sobre a língua andam chatos, parecendo diálogos de surdos. De um lado gritam os que defendem por puro reflexo a gramática tradicional (muitas vezes sem sequer dominá-la), convencidos de que o mundo vai acabar
da próxima vez que alguém escrever “Me chama” em vez de “Chama-me” — como se isso não fosse banal na literatura brasileira há quase cem anos.

Do outro lado, esgoelam-se aqueles que se baseiam nos estudos linguísticos modernos para abrir fogo contra qualquer fumaça de certo e errado, beirando a esculhambação de tratar o português bem transado, que procura atualizar a tradição dos bons autores em vez de dinamitá-la, como entulho normativista.

Sem caretice e sem vale-tudo, este livro entende os argumentos dos dois lados, mas reserva-se o direito de não morrer abraçado com nenhum deles. Aposta que é possível cultivar a variedade culta da língua e ao mesmo tempo compreender que regras são historicamente determinadas, que nenhuma delas caiu do céu, e que no fim das contas o idioma é sempre atualizado por quem o fala. A mesma aposta inclui o reconhecimento da grande beleza que existe nisso.

Sem submissão ao jeito lusitano, mas ao mesmo tempo sem esperneios de independência que pudessem transformar (que horror!) a poesia de Fernando Pessoa em terra estrangeira,Viva a língua brasileira! dança na corda  bamba de sombrinha.

Sim, feito a esperança de Aldir Blanc na canção “O bêbado e a equilibrista” — um dos poetas da língua brasileira que teremos como guia de viagem.

Ganho a vida com palavras, mas minha abordagem não é a de um linguista, gramático ou professor de português. Sou escritor e jornalista.

Este livro é fruto de duas experiências pessoais: meio século como falante e quinze anos como pesquisador e colunista (na imprensa tradicional e na internet) especializado em língua e linguagem, em nosso jeito de falar e escrever: o certo e
o errado, o bonito e o feio, o como e o porquê, de onde viemos e para onde vamos.

Se você acha nosso idioma dificílimo, ilógico, caidaço, ou acredita que conversar amorosamente sobre ele é perda de tempo — lamento, você está errado. Espero que este livro mude seu modo de pensar.

Mas se você se orgulha de ser um falante nativo da língua de Carlos, Clarice, Chico e Clementina, se compreende o valor de respirar dia e noite o sexto idioma do mundo em número de falantes e o terceiro nas redes sociais — bem, parece que nós falamos a mesma língua.

Digamos que, além disso, você se aborrece quando ouve algum bobo dizer que breakfasts são mais saborosos que cafés da manhã, pois sabe que o ultraconservadorismo é uma furada e que devemos dar boas-vindas a estrangeirismos e outras inovações, mas sem perder o senso de ridículo jamais.

Nesse caso, não resta dúvida: você acaba de encontrar sua turma.

Boa viagem!
Sérgio Rodrigues, "Viva a língua brasileira!"

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