Escrevo estas páginas num socalco incrustado numa colina escarpada, vigiada por uma centena de carvalhos retorcidos, contemplando a baía de São Francisco, mas eu venho de outro lado. A nostalgia é o meu vício. A nostalgia é um sentimento melancólico e um pouco piegas, como a ternura; é quase impossível abordar o tema sem cair no sentimentalismo, mas vou tentá-lo. Se resvalar e cair na pieguice, tenha o leitor a certeza de que me porei de pé umas linhas mais à frente. Na minha idade - sou tão antiga como a penicilina sintética - começamos a recordar coisas que estiveram enterradas durante meio século. Não pensei na minha infância nem na minha adolescência durante décadas; na realidade nem sequer me importavam aqueles períodos do passado remoto em que ao ver os álbuns de fotografias da minha mãe não reconhecia ninguém, exceto uma cadela buldogue com o nome improvável de Pelvina López-Pun, e a única razão pela qual me ficou gravada é porque nos parecíamos de forma notável. Existe uma fotografia de ambas, quando eu tinha poucos meses de idade, na qual a minha mãe teve de indicar com uma seta quem era quem. Certamente que a minha pouca memória se deve a que esses tempos não foram particularmente ditosos, mas suponho que acontece o mesmo com a maior parte dos mortais. A infância feliz é um mito; para o compreender basta lançar um olhar aos contos infantis, nos quais o lobo come a avozinha, e logo vem um lenhador que abre o pobre animal de cima a baixo com o seu machado, tira a velha viva e inteira, volta a encher a barriga com pedras e em seguida cose a pele com linha e agulha, provocando uma tal sede no lobo que este desata a correr para ir beber água no rio, onde se afoga com o peso das pedras. Por que não o eliminou de maneira mais simples e humana?, interrogo-me. Seguramente porque nada é simples nem humano na infância. Nesses tempos não existia o termo «abuso infantil», supunha-se que a melhor forma de criar meninos era com o chicote numa mão e a cruz na outra, tal como se dava por adquirido o direito do homem a abanar a sua mulher se a sopa chegasse fria à mesa. Antes de os psicólogos e as autoridades intervirem no assunto, ninguém duvidava dos efeitos benéficos de uma boa sova. Não me batiam como aos meus irmãos, mas também eu vivia com medo, como todas as outras crianças à minha volta. No meu caso, a infelicidade natural da infância era agravada por uma quantidade de complexos tão emaranhados que já nem sequer consigo enumerá-los, mas que felizmente não me deixaram feridas que o tempo não curasse. Uma vez ouvi dizer a uma famosa escritora afro-americana que desde criança se tinha sentido uma estranha na sua família e na sua terra; acrescentou que é o que sentem quase todos os escritores, mesmo que nunca saiam da sua cidade natal. É uma condição inerente a este trabalho, garantiu; sem o desassossego de se sentir diferente não haveria necessidade de escrever. A escrita, ao fim e ao cabo, é uma tentativa de compreender as circunstâncias próprias e clarificar a confusão da existência, inquietudes que não atormentam as pessoas normais, só os inconformistas crônicos, muitos dos quais acabam convertidos em escritores depois de terem fracassado noutros ofícios. Esta teoria tirou-me um peso de cima: não sou um monstro, há outros como eu. Nunca vesti em parte alguma, nem na família, a classe social ou a religião que me tocaram em sorte; não pertenci aos bandos que andavam de bicicleta pela rua; os primos não me incluíam nas suas brincadeiras; era a rapariguinha menos popular do colégio e depois fui durante muito tempo a que menos dançava nas festas, mais por ser tímida do que por ser feia, prefiro supor. Fechava-me na capa do orgulho, fingindo que não me importava, mas teria vendido a alma ao diabo para ser do grupo, se por acaso Satanás se tivesse apresentado com uma proposta tão atrativa. A raiz do meu problema foi sempre a mesma: incapacidade de aceitar o que a outros parece natural e uma tendência irresistível para emitir opiniões que ninguém deseja ouvir, o que afugentou alguns potenciais pretendentes. (Não quero ser convencida, nunca foram muitos.) Mais tarde, durante os meus anos de jornalista, a curiosidade e o atrevimento tiveram algumas vantagens. Pela primeira vez fiz então parte de uma comunidade, tinha carta de alforria para fazer perguntas indiscretas e divulgar as minhas ideias, mas isso acabou bruscamente com o golpe militar de 1973, que desencadeou forças incontroláveis. Da noite para o dia vi-me estrangeira na minha própria terra, até que finalmente tive de partir, porque não podia viver e criar os meus filhos num país onde imperava o medo e onde não havia lugar para dissidentes como eu. Nesse tempo a curiosidade e o atrevimento estavam proibidos por decreto. Fora do Chile esperei durante anos que se reinstalasse a democracia para regressar, mas quando isso aconteceu não o fiz, porque estava casada com um norte-americano, a viver perto de São Francisco. Não voltei a residir no Chile, onde na verdade passei menos de metade da minha vida, embora o visite com frequência; mas para responder à pergunta daquele desconhecido sobre a nostalgia, devo limitar-me quase exclusivamente aos anos que lá vivi. E para o fazer devo ter como referência a minha família, porque pátria e tribo confundem-se na minha cabeça.
Isabel Allende, "O meu país inventado"
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