Descoberto o prazer ( e a utilidade) do livro, o homem não tem cessado de lhe cantar as virtudes. O célebre jornalista e melómano inglês Bernard Levin, leitor omnívoro e comentador encantado de livros de todas as espécies e formatos, exclamou um dia: « Livro – o som mais nobre que o homem jamais emitiu.» E o não menos célebre Logan Pearsall Smith propunha, no modo desbocado que lhe era peculiar: « Dêem-me um livro e uma cama e fico perfeitamente feliz.»
Todos nós, em maior ou menor medida, temos memória , ao longo da nossa vida, de momentos inesquecíveis de encontro com um livro determinado: momentos em que nos parece que a nossa vida, de algum modo, mudou. Nós não somos, depois dessa leitura, os mesmos que éramos antes. Ou , por outras palavras : ao lermos o livro, descobrimos que nos estamos a ler a nós próprios: estamos perante uma descoberta que é também uma transformação. E o mais interessante é que isto não tem necessariamente de acontecer com um «grande livro» . Quando ainda muito novo, li a Família sem Nome, de Júlio Verne, não senti uma emoção menor do que aquela que me apanhou quando, um pouco mais tarde, li Humilhados e Ofendidos ou Está Morta!, de Dostoiewsky, ou, também ainda adolescente, fui submetido à magia cintilante do teatro de Oscar Wilde. Em qualquer destes momentos, senti, com grande intensidade e fulgor, que nada ficava na mesma. Podia citar outros livros que nesses anos de formação deslumbrada, igualmente me atingiram: Le Rouge et le Noir , de Stendhal ( apaixonei-me perdidamente pela Senhora de Rênal) , Codine de Panait Istrati, Assia, de Ivan Turguenev, Quo Vadis?, de Henry Sienkiewicz, Tonio Kroger , de Thomas Mann, Les Thibault, de Roger Marin du Gard, A Velha Casa , de José Régio, Adeus às Armas, de Ernest Hemingway, Candide, de Voltaire, A Vida Inteira, de Sally Salminenn, A Aventura em Budapeste, de Ferenc Kormendi, sem falar nas Vidas Paralelas, de Plutarco, no teatro de Eugene O’Neill, ou nos romances de Charlotte Bronte … De todos estes livros (e de outros que vieram depois) fiquei eterno devedor e eterno amigo. Dizia um escritor americano de romances policiais que são também ( e mais simplesmente) grandes romances de sondagem da sociedade americana, que «um bom livro na prateleira da nossa estante é um amigo que nos volta as costas e continua a ser nosso amigo». Todos estes livros que lemos e nos quais nos lemos ficaram a ser uma parte de nós e do nosso despertar. Por isso dizia John Kieran : « Eu sou uma parte de tudo o que li ». André Gide confessava a dívida profunda que na sua formação e no seu autoconhecimento, ficaria a ter para com livros tão diferentes como a Bíblia e As Mil e uma Noites: com livros tão contraditórios um do outro e que tão bem exprimem as profundas contradições que estiveram na origem da obra tão sedutoramente diversa e de pulsões tão divergentes como é a do autor de Les Faux Monnayeurs. E também Henry de Montherlant nunca escondeu o fascínio que sobre si teve o mundo romano tal como o conheceu, pela primeira vez, no romance Quo Vadis? E nos textos de Tito Lívio, de Suetónio, de Tácito e de Plutarco.
O grande leitor torna-se quase sempre um leitor compulsivo: Somerset Maugham, o grande contista inglês que veio na esteira de Maupassant, confessava: “ Prefiro ler um horário ou um catálogo a ficar sem ler”. Mas esta leitura compulsiva e imparável pode também ser um sinal negativo. Ler de mais é tão mau ou pior do que não ler: dizia Oscar Wilde que “ vivemos numa época em que se lê de mais para se poder ser sábio”. Porque, não tenhamos dúvidas, o ler demasiado é quase sempre um sintoma de preguiça mental. “ Quem sabe”, perguntava com malícia, Edward Young, “ se Shakespeare não teria pensado menos, se tivesse lido mais?”. O nosso ensaísta António Sérgio chamou, com grande ênfase, a atenção para o facto de que o homem culto não é aquele que leu muito, mas sim aquele que leu o que leu ( que até pode não ser demasiado) com uma intensa atenção crítica. “ Ler sem reflectir é como comer sem digerir “, observava Edmund Burke. Só a leitura crítica nos pode realmente transformar, isto é, só uma colaboração animada entre o leitor e o livro pode levar àquilo que constitui a verdadeira cultura. “ Quando lemos um clássico não vemos mais em nós do que víramos antes”, dizia Clifton Fadiman. É verdade mas, para que isso aconteça, é necessário que a leitura se faça com investimento crítico intenso.
Ler criticamente bons livros é sempre um percurso de descoberta, mas a leitura torna-se mais interessante se for partilhada. Era isso mesmo que dizia essa grande contista neozelandeza, Katherine Mansfield, a autora do célebre The Garden Party :“ O prazer de qualquer leitura é redobrado quando se vive com outra pessoa que partilha os mesmos livros.”
A leitura deve ser inteligente e crítica, não tem de ser voraz, mas também não precisa de ser fanaticamente organizada. Todos os grandes leitores são um pouco erráticos, saltando, com prazer e proveito, de um romance de Stendhal para um ensaio de Montaigne e, deste, para um poema de Keats ou uma peça de teatro de Garrett. Por isso, o poeta galês Dylan Thomas não tinha pejo de declarar: "A minha educação foi a liberdade que tive de ler indiscriminadamente e constantemente, com os olhos a saltarem-me das órbitas.“ Só uma leitura assim – apaixonada, intensa, inteligentemente crítica – poderá conduzir a que vivamos mais vidas e descubramos mais mundos – lá fora e dentro de nós – do que as pessoas que não leiam deste modo. O professor universitário canadiano Samuel Hayakawa, homem de convicções e de acção forte e decidida, disse isto com que termino este modesto convite à descoberta e à metamorfose através da leitura : “ Em sentido muito real, as pessoas que leram boa literatura viveram mais do que as pessoas que não sabem ler ou não se querem dar ao trabalho de ler…Não é verdade que tenhamos uma só vida para vivermos; se soubermos ler, poderemos viver tantas vidas e tantas variedades de vida quantas desejarmos. “ Ler é transformarmo-nos de um em muitos – de singular em plural.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário