quarta-feira, novembro 15

Os carros automáticos

Sentamos no banco embaixo do velho carvalho. Dali dava para avistar toda a extensão do pequeno lago e a rodovia particular que tínhamos do lado oposto. Era um dia quente, os carros estavam do lado de fora, distraindo-se – uns trinta deles, pelo menos. Mesmo a distância eu podia ver que Jeremiah estava entregue à sua brincadeira de costume, acompanhando em marcha lenta um dos modelos mais sérios, mais antigos, e de repente arrancando em plena potência, cantando pneus e o ultrapassando com estridência em questão de segundos. Há duas semanas ele tinha assustado o velho Angus, fazendo-o perder a direção e sair do asfalto; aí tive que desligar seu motor por dois dias.

Pelo que vejo agora, não adiantou muito; parece que não há nada a fazer. Jeremiah é um desses modelos esportivos, eles são assim mesmo, dão o maior trabalho.

-- Muito bem, Sr. Gellhorn – falei. – Quais são as informações que deseja?

Mas o cara estava distraído, olhando em redor.

-- Que lugar fantástico, Sr. Folkers.

-- Pode me chamar de Jake. Todo mundo chama.

-- Ok, Jake. Quantos carros você tem aqui?

-- Cinquenta e um. Todo ano chegam mais um ou dois. Houve um ano em que vieram cinco. Até agora não perdemos nenhum. Estão todos funcionando perfeitamente. Temos até mesmo um Mat-O-Mot de 2015 em perfeito funcionamento. Um dos primeiros automáticos. Foi o primeiro carro que trouxemos para cá.


O velho Matthew. Agora ele costumava ficar na garagem a maior parte do dia, afinal de contas ele era o avô de todos os carros positrônicos. Da época em que os carros automáticos eram utilizados apenas por veteranos de guerra, paraplégicos e chefe de Estado. Mas naquela época Samson Harridge era meu patrão, ele era rico o bastante para ter um carro automático. Eu era seu chofer.

Pensar naquilo fez com que me sentisse velho. Sou do tempo em que não existia um único automóvel no mundo capaz de encontrar sozinho o caminho de casa. Já dirigi umas coisas enormes e desajeitadas cujo motorista não podia tirar as mãos do volante por um só momento. Monstrengos desse tipo matavam dezenas de milhares de pessoas todo ano.

Os automáticos resolveram esse problema. Um cérebro positrônico pode reagir muito mais rápido do que um cérebro humano, claro, e as pessoas não tinham que manter as mãos nos controles o tempo inteiro. Sentavam ao volante, digitavam as instruções sobre o trajeto e o carro fazia o resto sozinho.

Hoje em dia todo mundo já está acostumado, mas eu me lembro de quando surgiram as primeiras leis retirando das autoestradas os carros velhos e só autorizando viagens em carros automáticos. Deus do céu, que balbúrdia. Disseram que isso era fascismo, que era comunismo, mas o fato é que as estradas ficaram muito mais tranquilas e as mortes por acidentes pararam como por encanto; um número muito maior de pessoas passou a viajar com muito mais segurança.

Claro que os automáticos eram de dez a cem vezes mais caros do que os carros manuais, e não havia muita gente que pudesse pagar esse preço. A indústria começou a derivar para a produção de ônibus automáticos. A qualquer momento você podia chamar uma empresa e em poucos minutos ter um desses ônibus à sua porta, indo na direção que você queria. Você tinha que viajar ao lado de outras pessoas que iam para o mesmo lado, mas qual era o problema?

Samson Harridge, no entanto, tinha um automóvel particular, e eu fui contra ele desde o instante em que o vi. Naquele tempo, eu não via o tal carro como “Matthew”, não podia imaginar que ele se tornaria no futuro o decano de nossa Fazenda. A única coisa que eu sabia era que aquele carro ia me jogar no desemprego, por isto o odiei.

Falei:

-- Bem, acho que não vai mais precisar de mim, Sr. Harridge.

-- Ora, Jake, que bobagem está me dizendo? – foi a resposta dele. – Você não está pensando que vou deixar essa geringonça tomar conta de mim, não é mesmo? Você é quem vai ficar ao volante.

Eu falei:

-- Mas esse carro funciona sozinho, Sr. Harridge. Ele capta e analisa a imagem da estrada, evita os obstáculos, sejam eles carros ou pedestres, e arquiva os trajetos na memória.

-- Sim, é o que dizem. Mesmo assim, prefiro que você esteja sentado ao volante, no caso de alguma coisa não correr bem.

É engraçado como a gente pode chegar a se afeiçoar a um carro. De um dia para o outro eu já o tinha batizado de Matthew e passava a maior parte do tempo dando polimento nele, checando o motor. Um cérebro positrônico funciona melhor quando está em contato permanente com o seu “corpo”, ou seja, o chassi, de modo que ajuda bastante se a gente mantiver o tanque cheio para que o motor possa ficar ligado dia e noite. Depois de algum tempo acostumei-me tanto àquilo que bastava ouvir o som do motor para saber como Matthew estava se sentindo.

O Sr. Harridge também gostava muito de Matthew, ao seu modo. Ele não tinha ninguém mais para gostar. Tinha ficado sem três esposas, através da viuvez ou do divórcio; e acabou vivendo mais tempo do que cinco filhos e três netos. Desse modo, quando morreu não foi surpresa para ninguém que ele fizesse converter suas propriedades numa Fazenda para Automóveis Aposentados, onde eu era o curador e Matthew o primeiro membro de uma família que viria a se tornar ilustre.

Minha vida passou a ser apenas isso. Nunca me casei. Você não pode ser casado e ao mesmo tempo se dedicar a carros automáticos de uma maneira adequada.
Isaac Asimov, "Sonhos de Robô".

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