Leiria, 14 de Fevereiro de 1941
Nunca hão de dar por estas palavras, como não deram por mim quando os segui durante algum tempo , a ser junto deles em corpo o que já era em espírito – um irmão. Deixá-lo. A própria solidão do que eu escrever trará à minha emoção o calor e a melancolia que seria difícil exprimir, e que há-de ser a terra da sua duração.
Eram quatro vultos. Um homem e três mulheres. Um à frente e três atrás. Vinham pela rua fora, em marcha, como sonâmbulos, a tocar uma música que sugeria não sei que vida livre e maravilhosa, com remendos, fome, sol e olhos sempre virgens a olhar o mundo. Uma música lírica e trágica ao mesmo tempo, que inundava a tarde fria de calor e da palpitação de um poema.
À medida que se aproximavam, o cornetim desenhava-se mais nítido nas mãos dele, que caminhava à frente, e a caixa, os pratos e o bombo tomavam relevo nas mãos delas, que o seguiam.
Ninguém poderá saber jamais se eram todas suas esposas, filhas ou mães. Sílfides intemporais, rufavam, batiam, martelavam e criavam à voltado solista e do hino ao triunfo puro que lançava no espaço, uma atmosfera de irrealidade.
Passavam. O próprio chão tremia. Passaram. As próprias pedras pareceram ficar com saudades.
E quando lá longe, nos subúrbios, junto do trapézio alado, o silêncio se fez, como que se extinguiu no céu morto da cidade o clarão de uma estrela-cadente.
Miguel Torga, "Diário I"
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