domingo, novembro 5

Crise de gigantes abre espaço a livrarias de nicho

À primeira vista, a crise que derrubou duas das maiores redes de livrarias do Brasil, a Saraiva e a Cultura, poderia provocar um terremoto no mercado editorial do país. Entretanto, a derrocada de companhias dessa magnitude acabou abrindo caminho para empresas menores que atuam no segmento e já vinham esboçando crescimento havia alguns anos.

Em meio ao colapso de gigantes do setor e à explosão do comércio eletrônico desde o início da pandemia, o mercado de livrarias de rua se mantém resiliente no Brasil. Mais do que isso: vem dando sinais consistentes de crescimento, mesmo em condições aparentemente desfavoráveis, diante das dificuldades do varejo.

Dados da Associação Nacional de Livrarias (ANL) mostram que, desde 2021, o país registrou a abertura de mais de 100 novas lojas físicas do ramo. Atualmente, o Brasil conta com mais de 2,9 mil livrarias.


Segundo um levantamento do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), em parceria com a Nielsen Bookscan, o faturamento do mercado editorial brasileiro aumentou 8,3% no ano passado, na comparação com 2021. A pesquisa mostra que a venda de livros cresceu quase 3% em 2022, para 58,6 milhões de exemplares (1,7 milhão de unidades a mais do que no ano anterior).

Embora o avanço do e-commerce na pandemia tenha encolhido a participação das livrarias físicas no faturamento total do mercado editorial – de 50%, em 2018, para cerca de 30%, em 2020, segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL) –, a aposta em lojas de nicho, que oferecem um tratamento mais personalizado aos clientes, tem crescido e se revelado bastante promissora, afirmam especialistas ouvidos pelo Metrópoles.

“São vários os fatores que levam as livrarias a buscarem a rua como um novo espaço. O primeiro deles, talvez o mais óbvio, é a questão do custo. Para montar uma loja de rua, hoje, o custo operacional é muito menor que o de uma loja de shopping, em que os aluguéis ainda são muito caros. Isso impacta diretamente nos negócios”, explica Caio Camargo, especialista em inovação no varejo.

“A questão fundamental para essas pequenas livrarias é a curadoria. Embora haja diversidade e uma escala gigantesca de produtos no marketplace e em sites de comércio eletrônico, o consumidor muitas vezes não vê uma qualidade adequada de atendimento. Também não há aquele calor humano, um tratamento mais humanizado do livreiro”, compara Camargo.

Nos últimos anos, principalmente com o fim das restrições mais duras à locomoção impostas no auge da pandemia, uma série de pequenas e médias livrarias abriram suas portas em alguns dos principais centros urbanos do país, sobretudo em São Paulo. Uma delas é a Aigo, inaugurada no Bom Retiro, um dos bairros mais tradicionais da capital paulista, no fim de julho. O foco da livraria são as comunidades de imigrantes que vivem no bairro, como coreanos, chineses, bolivianos, peruanos, equatorianos, paraguaios e sírios.

“O Bom Retiro não tinha uma livraria havia 40 anos”, afirma Agatha Kim, sócia da Aigo Livros. “Muita gente voltou a ler na pandemia, retomou esse hábito. Outro fator é a necessidade crescente das pessoas de terem experiências. Querendo ou não, o e-commerce não é um ambiente convidativo para se achar um livro”, diz.

“Geralmente, essa experiência do comércio eletrônico se dá quando você já sabe o que vai comprar e quer checar o preço ou uma outra informação. Mas não é o lugar mais propício para se ter uma descoberta de alguma história nova, uma surpresa. É a livraria física que permite isso.”

Para Agatha, trata-se de “um atendimento personalizado e cuidadoso com as pessoas que o e-commerce nunca conseguirá oferecer”. “O comércio eletrônico se preocupa com a escala. Não tem, necessariamente, aquele olhar individualizado, a intimidade com o cliente. Aqui as pessoas se sentem íntimas da gente”, relata.

“Acredito que isso explica, em grande parte, esse crescimento das livrarias de rua. Elas fazem parte da vida das pessoas. Quando você compra um livro on-line, dá um clique, coloca no carrinho, ele chega à sua casa e você nem lembra que comprou. Quando a pessoa entra em uma livraria de rua, ela não esquece. Ela pegou nos livros, folheou, sentiu o cheiro, conversou com alguém… É a experiência completa”, prossegue a sócia e fundadora da Aigo.

Regina Blessa, especialista em varejo e autora do livro “A Loja Perfeita”, chama atenção para a importância de as pequenas livrarias se estabelecerem em locais estratégicos, movimentados e com grande visibilidade.

“Antes de tudo, essas livrarias têm de estar em pontos bons. Nem todo bairro sabe que a livraria existe. Ela depende muito de quem passa em frente à loja, do ‘boca a boca’. A pequena loja precisa fazer uma divulgação grande na internet para que as pessoas queiram ir até lá. Tem de ser um ambiente agradável, confortável, ter lugar para sentar. Enfim, precisa ter algum diferencial”, afirma Regina.

Com os problemas enfrentados por grandes redes de livrarias no Brasil, as lojas de nicho estão diante de uma oportunidade de crescer ainda mais, mas precisam se diferenciar, de acordo com a avaliação dos especialistas consultados pela reportagem.

“Como dois grandes players saíram do mercado, abriu-se um espaço para mais 15 ou 20. O mercado existe e está aí”, afirma Regina Blessa. “É claro que nós tivemos o efeito Amazon, que causou um impacto muito grande nas grandes redes. Mas o mercado não morreu, muito pelo contrário. Livrarias menores estão conseguindo se manter porque o mercado continua o mesmo. Com a saída das grandes redes, foi aberta uma brecha para os estabelecimentos menores e mais nichados.”

Agatha Kim, sócia da Aigo, reconhece que o colapso das grandes redes atinge o mercado editorial como um todo, mas entende que, para as livrarias de bairro, o impacto é bem menor. “É óbvio que afeta o mercado editorial porque mexe com o ecossistema das editoras, que ficam mais receosas de liberar certas coisas, o caixa fica prejudicado… Isso impede que elas invistam em novos projetos e possam ajudar mais as livrarias pequenas. Por outro lado, não há um impacto direto sobre as livrarias de rua”, avalia.

“A única coisa em comum que nós temos com essas grandes redes é que vendemos o mesmo produto, o livro. De resto, as propostas são totalmente diferentes”, prossegue Agatha. “Muitas pessoas que nos visitam dizem que encontram aqui livros que nunca viram. Como pode uma livraria gigante, como eram essas redes, não ter esses livros? Eles tinham um modelo de negócio muito mais focado na comercialização de livros e não, necessariamente, na descoberta de histórias. Não ofereciam uma experiência em torno do livro, como fazem muitas livrarias de rua.”

Segundo Caio Camargo, “o que vai fazer com que essas livrarias permaneçam no mercado é elas, de fato, focarem cada vez mais no consumidor”. “O produto pode ser igual e estará em praticamente todas as prateleiras, sejam em lojas independentes, em grandes redes ou nas lojas digitais. A grande questão é como atender esse consumidor”, diz.

“Estamos vendo as livrarias se tornarem um espaço de encontro entre quem ama livros, para que essas pessoas se conectem e se relacionem, para que saiam um pouco da solidão no pós-pandemia. Existe muito espaço para o varejo que está menos preocupado em simplesmente vender produto e mais conectado com os desejos do cliente.”

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