sexta-feira, novembro 24

O corpo tendente da Divindade

No extremo da ilha, a deitar por sobre o quarto mar, onde se sabia ser já terra menos abençoada, erguia-se o segredo de Pé de Urutago para que o instruíra Pai Todo. O segredo dos guerreiros de vocação para o voo se consumava ali, atarefados todos que estiveram com a mesma ciência, o mesmo silêncio. Era muito sem vocábulo. Tinha nome, mas necessitavam calar para que se cumprisse a própria Divindade, que pedira adiamento e nenhuma notícia. Não se haveria de perigar seus comandos e sua esperança.

O grande corpo de Pé de Urutago movia-se entre a estranha estrutura que era uma outra vegetação. Uma que não vinha de raiz, não cobria de verde, não brotava fruto nem flor. Era branca. Uma mata pálida que o guerreiro cuidava de não ser coberta ou devorada por parasitas de quaisquer espécies. Carregando o corpo do inimigo, tão ao contrário do que sabia a comunidade, o guerreiro tinha a seu cargo um outro ritual. Um que precisava de executar sozinho, sem ninguém. E ele levava o inimigo morto para o lugar aberto de uma pedra à altura de meia perna e o deitou para começar a cortar. Era sempre sem discurso, sem abrigo, sem canção, sem flauta. Era sem demora. Pé de Urutago separava a carne dos ossos e tomava também a cabeça que decompunha dente a dente. Ao avesso do que sabiam os abaeté, o guerreiro ofendia a cabeça do inimigo e usava sua boca que não mais desceria enterrada. Então, imaculadamente limpo cada galho ósseo, encarou a imensa estrutura e decidiu. Atou numa ponta, correu, atou na outra, juntou alguns dentes num canto, outros ao longe, subiu para deixar pequenos ossos como flores de sal ao cimo, desceu para cravar algo mais no chão, como se aquele esqueleto gigante de quinhentos guerreiros ganhasse um novo pequeno pé. E afastou. Galho por galho, à luz intensa da tarde, incandescia a alvura daquela bizarria. Incomensurável, ali estava a mata de osso que reunia por imaginação aquele que seria o corpo tendente da Verdadeiríssima Divindade. Era o corpo tendente da Divindade que haveria de descer quando estivesse no instante certo e deitaria carne viva sobre aqueles ossos e habitaria a mata de jeito concreto na companhia de toda a criação. Um dia, quando o guerreiro de vocação alada colhesse o osso do relâmpago, nada mais faltaria para que o novo tempo e a nova ternura iniciassem. Era a intuição a que haviam acedido todos os pajés e para a qual haviam educado todos os guerreiros esperados para subir o clarão.

A Divindade virá e amará o esforço, o engenho e a imaginação abaeté, depois, deitará carne sobre os ossos e moverá seu corpo imenso para caminhar entre a criação. Será de tão vasto tamanho, tão cheia de bocas e atonará tantos olhos que poderá escolher beijar cada um e cada fera, cada árvore e cada pedra, ou poderá escolher devorar até sobrar mais nada novamente. Deprimida com o torpe dos espíritos, cansada da criação, a Divindade poderá escolher mover o corpo para o fim de todos os tempos. O novo tempo seria não haver tempo nenhum.


Pé de Urutago entristeceu por haver ameaçado matar o pequeno Honra, um tão fiel e desafiado abaeté. Mas não o poderia deixar saber que movia um inimigo pela mata, excluído dos rituais de abrigo, excluído de toda a gentileza da comunidade educada por tanta ancestralidade. O grande guerreiro aumentou o corpo tendente da Divindade e regressou ao areal. Caminhando longamente por tanta terra que os abaeté consideravam apenas silvestre. Uma terra a ir embora, sem alegria, feras por acordar, povos de feras sem ofício na guerra ou na fome abaeté. Tanta coisa sem nome, medrando no puro silêncio. Para ali, ninguém abeirava. Dava horror e dava compaixão. Criado o mundo, muito do mundo era por ganhar valentia. Valia de nada para a comunidade dos bons. Certamente apenas apodrecia, sustentava bichos e ideias podres, e seria por isso que multiplicavam os brancos.

A mesma coisa pensou o guerreiro sempre ferido. O grande Pé de Urutago o ameaçou para esconder a matança de um inimigo excluído do abrigo e da dignificação abaeté. Honra pensou que Pé de Urutago emocionara e usava os mortos para sua emoção sem sentido, levando ali a cabo uma tarefa sem serventia, um desperdício e ofensa a tudo quanto era imposto à gentileza do povo das ilhas de três mares. O feio branco chorou. Caminhou por entre os ossos erguidos num esqueleto inexplicável, impraticável, e chorou. Não tinha compaixão pelos inimigos. Era bom que tombassem, era bom que Pé de Urutago os caçasse em tão tremenda abundância e os terminasse de qualquer ataque. O que comovia Honra era o medo que sentia pelos abaeté que se mascaravam. Aqueles que não vigoravam nos límpidos gestos chefiados, na inspiração tão antiga, na intuição de cada instante que os ancestrais generosamente noticiavam. A Voz Coral berraria de dor se houvesse de prestar atenção ao que ia ali por aquela terra já enjeitada. Mais se comoveu o guerreiro, até que Meio da Noite entoou:

e se não for maldade. E se for alguma tarefa por noticiar. Uma tarefa incompleta que aguarde por certo detalhe, um certo osso, que seja. Pode tudo isto aguardar um só inimigo. Um inimigo que depois permita explicar, mostrar à comunidade, oferecer à comunidade este resultado e sua ciência. Sagrado Honra, não te impressiones senão com o tamanho dos ossos, a beleza morta que aqui está. Pode ser que o guerreiro grande cumpra uma chefia que desconhecemos. Não me parece bom acusarmos nem questionar. Melhor não entoar nada sobre isto. Esperar. Ver o que ensina o tempo. Saberemos antes de todos porque já começamos a saber. E isso deve merecer calma, paciência, e toda a esperteza de nossa guerra. Não entoes sobre nossa guerra. Isto está no caminho de todas as nossas vitórias. Eu tenho a certeza. Isto fará parte de todas as nossas vitórias.


O feio branco não confiou, incandesceu os olhos sobre o amigo, agradeceu o esforço para o aquietar. Respondeu:

não sinto.

Meio da Noite perguntou:

e porque te comove que o grande guerreiro descumpra as chefias mais rigorosas quando tu mesmo resistes a cumprir e odeias tão avesso à natureza abaeté. Tanto que chego a admirar o teu ódio, a bravura que te dá, a fidelidade à vingança do povo.

O branco não respondeu. Seria incapaz de confessar que usava a cor como desculpa para ser torpe. Incapaz de uma aprendizagem gentil, Honra escudava-se na cor para ser torto. Queria que ser torto fosse sem culpa, para se corromper sem limite na voracidade de seus sentimentos. Viciava-se naqueles sentimentos. Odiar era caminho sem muito regresso. Talvez também nunca tivesse lugar de chegada. Era uma ida contínua, sem satisfação.


Tomou um osso à sorte, escolhido sem grande importância, e no lugar deixou a flauta que nunca haveria de esculpir. Melhor disfarçaria a raiva se desfeito do resto morto do inimigo que ele próprio tombara. Pensou. Menos raiva o haveria de acometer. E Pai Todo rebrilharia de orgulho quando desse com ele a tocar, a cantar as mais importantes canções.

O feio negro perguntou:

o que vais querer cantar.

Honra entoou:

canções graves. Tristes. Canções que nos estimem a inteligência mas permitam a consciência de alguma dor. Quero prosseguir com minha obrigação de chorar, sagrado Meio da Noite.

O negro entendia mal o ofício tão importante do choro. Por imitação, respondeu:

não sinto. Haverei de sentir.

Honra apenas pensou e Meio da Noite berrou vinte onças num lamento incontido. Por dor ou fúria, o negro berrou mais vinte onças, e o guerreiro branco temeu que sua pele fosse tocada e se afastou um pouco. Poderia ser o som daquele bicho. Ele mais pensou. Que vinte onças poderia ser o som daquele bicho, se a mata inteira de osso tivesse carne e se pusesse a caminhar. O guerreiro sempre ferido depois chamou:

sagrado Meio da Noite. Sagrado Meio da Noite.

Mas o negro era em lugar nenhum. Até sua pele parou de ser tocada. Como se os insectos que lhe pousavam ou subiam tivessem finalmente debandado. E ele, em sobressalto, novamente chamou:

sagrado Meio da Noite. Onde estás.

Então, o negro abeirou, refeito de uma sombra, e entoou que melhor seria que fossem em regresso. Honra duvidou se aquela prudência era do negro ou sua. Um insecto voltou a voar para seu ombro. Não o viu. Sentiu como quase lhe mordeu a pele. Olhou o negro e não confessou mas soube que não quereria mais ficar sozinho daquele amigo. Quando declarara que eram gémeos não havia mentido.

Eram-no. Diferiam, mas não diferiam de ser opostos. Eram duas partes de uma ideia só. Agora, o guerreiro branco faria qualquer coisa por seu amigo que não lhe mentira. Provara que até a absurda coisa de uma mata de osso existia. Provara que não mentia. Era puro. O negro era puro. Inventado pelas mais gentis causas.

*

Então, caminho para a aldeia, Honra o avisou de que pedira por ele a Dois Amanhãs. Pediu que lhe mexesse o corpo. O negro saltitou na mata como os filhotes e brincou palavras brancas rápidas que o amigo não pôde entender. Honra, animando-se um pouco, afirmou:

vou brincar palavras também. As palavras abaeté mais belas que abrigam esperança e criam sorte.

Então, entoou:

o mar da flor, o doce do esquecimento, a feminina gentil, o filhote de tapir, a consciência tardia, o igarapé que salta, o pequeno igarapé, o muito grande igarapé, todas as cachoeiras, o beijo do tamanduá, o trovão da terra, o fogo das araras, as conversas das araras, as chuvas castanhas, o beijo do jacaré, há um jacaré no teu peito. Animal negro, tens um jacaré no peito e só ele te vai querer beijar alguma vez.

Rindo, Meio da Noite entoou:

o cheiro e o sabor das femininas. O cheiro e o sabor de Dois Amanhãs. Obrigado. Vou dormir a sonhar com as folias. Dois Amanhãs é bela. Como é bela a nossa feminina. Obrigado, sagrado Honra. Os povos negros rejubilam.

Saltitando sempre, apressados mata fora para a aldeia litoral, os feios tomavam suas lanças como se matassem originalidades pelo caminho. Vociferavam.

Vociferavam muito, sem sentido nem compromisso. Então, num instante em que Honra se deteve para colher do chão o osso que deixara cair, Meio da Noite encheu o peito e berrou mais vinte onças. A mata partiu. Aves e roedores, feras felinas, insectos, aranhas e todos os bichos que pudessem dar passo ou salto partiram dali. Levantou-se o sopro vocabular do vento. Honra entoou:

como fede, e como é perfeito um berro assim.

Valter Hugo Mãe, "As doenças do Brasil"

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