Sempre pensei que o destino de um romance se decide na frase que lhe serve de começo. São justamente célebres e inesquecíveis os começos de Le Rouge et le Noir, de La Chartreuse de Parme (ambos de Stendhal), de Ana Karenina ( Tolstoi) ou de Du Côté de Chez Swan (de Proust). Podia dar muitos outros exemplos. “Todas as famílias felizes se assemelham mas cada família infeliz é-o à sua própria maneira”,dizia Tolstoi, a abrir a Karenina – e logo nos deixa sonhadores: aconchegamo-nos melhor no sofá, para nos prepararmos, com delícia, para as soberbas infelicidades que se anunciam... Como vai ser interessante! Com um começo destes... Ou então, isto: “No dia 15 de Maio, o general Bonaparte fez a sua entrada em Milão, à frente daquele jovem exército que acabava de atravessar a ponte de Lodi e de anunciar ao mundo que, depois de tantos séculos, César e Alexandre tinham um sucessor.” Que leitor pode deparar com isto sem sentir que se levanta do chão? Sem sentir um mundo prenhe de promessas que o grande romance de Stendhal – La Chartreuse de Parme – não irá senão confirmar e reconfirmar ad omnia saecula saeculorum? Régio costumava dizer, em conversa, que quem encontra um título encontra um livro. A minha tese pode ser outra: quem encontra um bom começo encontra um bom livro. Tive sempre receio de começar um livro, um artigo, um ensaio, um poema, sem ter a prévia sensação de que achara, para eles, um bom começo ou, para empregar uma expressão popular, de que entrara com o pé direito. Hemingway tem começos memoráveis e eu imagino o trabalho e as tentativas sucessivas que ensaiou até chegar a começos de uma simplicidade pungente, escorrida e trágica, como são os de tantas das suas célebres narrativas.
Ando agora a agenciar munições para umas memórias1 que quero escrever antes de, para sempre, fechar a oficina. Vou inventariando acontecimentos, emoções, sítios, pessoas, datas, encontros, ideias, desencontros, alegrias, tristezas, esperanças, desilusões, descobertas... Procuro reerguer, com o vigor que me for possível, todo um mundo interior que gostaria de tornar importante, não por eu ter estado nele, mas por ele ter estado em mim – eu, veículo, sem importância, de magias que são importantes. Como me é peculiar, começou por me devorar a angústia de encontrar um bom começo. E logo me ocorreu o que para mim tem sido o mais belo começo de romance, aquele que, nos meus catorze ou quinze anos, me agarrou para sempre e me grudou ao seu encanto anunciador de delícias-a-haver: refiro-me à primeira frase, do primeiro capítulo do romance de Stendhal, Le Rouge et le Noir : “A cidadezinha de Verrières pode ser considerada uma das mais lindas do Franco-Condado”. Este acorde, em que a simplicidade rivaliza com a beleza premonitória, gravou-se para sempre no meu espírito e no meu coração. E fiquei sempre convencido de que só ele teria competência para me levar até à minha insaciada paixão pela Senhora de Rênal. Permaneceu em mim, espécie de canto profundo e mozartiano, propiciador de tudo quanto na vida há de mais fundo, de mais belo e de mais trágico. Pensei, portanto, que uma pequena paráfrase dele me garantiria, melhor do que qualquer outra alternativa, o começo (auspicioso) das minhas memórias. Ficará assim: “A cidadezinha de Lourenço Marques pode ser considerada uma das mais lindas do continente africano.” Assim amparado na bengalinha sortílega do que considero o mais belo começo de romance, espero salvar do esquecimento rápido, não o total das minhas memórias, mas, ao menos, a sua primeira frase.
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