O homem do guarda-chuva preto morreu com nó nas tripas e deixou um nó cego na minha cabeça. Foi plantado no pequeno cemitério da cidade. Como herança ficou uma plantação de mandioca no quintal de sua casa. A mulher da sombrinha vermelha — mulher de fé — vestiu a rama com as roupas do marido, eu vi. No pôr do sol, ela se ajoelhava diante do pequeno fantasma e rezava. Nunca decorei sua oração. Sua testa se franzia e suspeitei de suas perguntas, mas, também eu, não escutava respostas.
Com o cuidado de quem sabe colar os amores trincados, a mãe remendava as roupas rasgadas. Escolhia as cores das linhas, os tons dos tecidos, as tramas da fazenda. Tudo para disfarçar a pobreza e proteger o marido. Vizinho tem língua comprida, ela nos cochichava, entre um ponto e mais outro. Pelas frestas das janelas é possível escutar seus sussurros. Ao contrário das cobras, vizinho sopra primeiro para depois morder.
A vizinha, do lado direito da rua, sabia ler e escrever. Estudou em escola não reconhecida pelas abelhas. Autorizava-se a distribuir suas dissimuladas verdades para além das frestas das janelas. Não suportava uma contestação. Tudo lhe servia para o consumo externo. Citava normas, em língua afiada, zombando da razão dos outros. Percebia-se que suas palavras eram desencarnadas e não filtradas pelo consumo interno. Também, sem raízes, as palavras nasciam e morriam em sua boca. Minha mãe afirmava que muitos passam pela escola, mas a escola não passa por eles.
Bartolomeu Campos de Queirós, "Vermelho Amargo"
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