Esse imperador abissínio, aliás, foi quem me nomeou governador de Marrar pelo espaço de 12 meses — levado, talvez pela minha cor etíope e por uma falsa carteira de identidade que lhe apresentei e que roubara a um pobre mendigo por mim assassinado numa rua de Gondar —; e, findo aquele prazo, eu estava mais rico do que o próprio imperador e todo o seu império, dado o negócio de armas em que me meti e que me valeu a excomunhão do Papa.
Indo em peregrinação a Meca, para escapar à sanha de Sua Majestade, tive que atravessar às pressas o não sei por que chamado mar Vermelho que me pareceu tão azul quanto o mar Negro ou o mar Amarelo, e onde fui despojado em parte de minha fabulosíssima fortuna por um empregado infiel e sem escrúpulos, que se atirou às águas e nadou como um raio em direção ao golfo de Aden. De Meca transportei-me, puro já de alma, para a próspera cidade de Medina, onde comprei metade da Arábia a um alto membro do governo que depois vim a saber ser tão árabe e tão membro do governo quanto eu mesmo, com a agravante de ser um refinado vigarista. Reduzido a 15 milhões de arabescos, fugi de bicicleta para Damasco, onde apanhei o tifo e depois me tornei amante teúdo e manteúdo de uma alta dama afegã, cujo marido era cego e ali se achava justamente em tratamento da vista. Em Cabul, aonde fui ter alguns meses depois, levado pelas mãos generosas de minha protetora e de seu infortunado esposo, dediquei-me por algum tempo a altas indagações filosóficas de natureza moral, que resultaram no meu famoso Tratado da desesperação metafísica, traduzido para vários idiomas e que em francês pode ser encontrado em edições NRF (320 págs. — 1.280 frs.) com prefácio de Georges Duhamel. Tendo sido meu rico protetor morto numa infame emboscada em que a princípio se suspeitou de minha participação, passei a morar com a poderosa viúva e mais seus sete filhos, que logo ficaram reduzidos a cinco e pouco depois a três e a dois, devido a uma estranha epidemia de gastroenterite que grassou nas imediações de nosso palácio. Com a perda final de seus dois últimos filhinhos, um dos quais era também meu, e que foram encontrados afogados numa piscina que existia aos fundos do nosso jardim, a pobre mãe entregou-se a toda sorte de desespero e acabou por matar-se numa noite de tempestade, com um tiro do meu revólver que lhe acertou bem no meio da nuca. Feito herdeiro universal de todos os bens do casal, graças à lábia de um advogado que ficou com a metade da herança, pude viver principescamente durante mais de três anos, até que rebentou a guerra entre o Paquistão e o Afeganistão e que me reduziu, do dia para a noite, à mais extrema pobreza.
Fui acolhido como refugiado político pelo ex-rei Farouk do Egito, que a esse tempo ainda era magro e se comportava como um segundo Luís II da Baviera, apenas com algumas mulheres a mais e um pouco menos de filosofia dentro do cérebro. No Cairo, onde estive como hóspede oficial de Sua Majestade durante mais de ano, dediquei-me à nobre arte do dolce far niente, que não excluía, é bem de ver, algumas pesquisas de ordem estritamente secreta sobre a vida particular do rei e sobretudo de seus áulicos mais influentes, e que me seriam no futuro de grande proveito para casos de pequenas chantagens ou intrigas políticas inevitáveis numa Corte que se preza. Agraciado com a Grã-Cruz da Ordem dos Faraós Atônitos e com a Comenda (1° Grau) do dervixe Abdula, pouco depois era escorraçado do país por haver-me prestado num momento de fraqueza a serviços de espionagem a favor da Inglaterra, como pode ser lido e relido no capítulo XVIII das Memórias do Sr. Winston Churchill. Deportado para a Groenlândia num cargueiro que transportava vinte toneladas de alfinetes de cabeça e um pequeno elefante, ali vivi sucessivamente em Angmagssalik, Sukkertoppen, Holsteinborg, Scoresbysund, Upernivik, Christianshaab, Umanak, Godthaab e Jakobshav, sendo que nesta última cidade quase fui morto a arpão por uma jovem esquimó de raríssima beleza e que não queria conformar-se com a minha anunciada partida para Toronto, no Canadá, onde afinal se condoerá de minha sorte e mandara chamar-me um velho membro de minha família, cujo nome no momento não vem ao caso, mesmo porque morreu logo depois que ali cheguei, torpemente envenenado ao que dizem.
Com o dinheiro herdado desse prestimoso parente comprei-lhe um rico túmulo e tratei de pôr-me ao largo o mais breve possível, indo dar com os costados no Estado de Pennsylvania (EUA), em cuja capital, Pittsburg, mais uma vez me naturalizei norte-americano e consegui viver tranquilo por um longo tempo, dado o meu gênio cordato e cheio de delicadezas. Autor de inúmeros best-sellers, todos publicados em edições pocket-book e magnificamente condensados para o Reader’s Digest, granjeei em menos de um ano uma reputação literária só comparável, na época, à de um Ernest Hemingway ou à de um Leslie Charteris, o que me propiciou contribuir para o rápido enriquecimento do país através do imposto de renda. Datam dessa época minhas trinta e seis novelas policiais mais famosas, bem como os quatorze romances que Hollywood aproveitou para algumas de suas produções mais significativas, muitas delas em technicolor e com som estereofônico. Reduzido à mais extrema penúria pelo fisco implacável, para o qual contribuía com 200% sobre o que honestamente ganhava, abandonei a literatura e entreguei-me à traficância de tóxicos e à prática ostensiva do lenocínio, o que me valeu em pouco tempo uma cadeira de deputado pelo Estado de Minnesota e as consequentes imunidades parlamentares e extraparlamentares, que de mim fizeram um dos homens mais poderosos da democracia norte-americana. Não fora a perseguição tenaz que me moveu um de meus rivais mais perigosos, John Dillinger III, com ameaças inclusive à minha integridade física, e certamente eu teria feito da grande república do Norte a minha pátria definitiva neste planeta, sem nunca ter pensado em arrumar as malas de novo e enfrentar mais uma vez as incertezas deste mundo tão cheio de loucos e perversos, como acabei fazendo em meados de setembro de 1953.
Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"
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