sexta-feira, abril 26

Refúgio

Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma floresta, e na floresta vejo a clareira verde, meio escura, rodeada das alturas das árvores, e no meio desse bom escuro estão muitas borboletas, um leão amarelo sentado, e eu sentada no chão bordando. As horas passam como muitos anos, e os anos se passam realmente, as borboletas cheias de grandes asas enfeitadas e o leão amarelo com manchas – mas essas manchas são apenas para que se veja que ele é amarelo, pelas manchas se vê como ele seria se não fosse amarelo. Por aí se vê quanto é precisa a minha visão. O bom dessa imagem é a penumbra, que não exige mais do que a capacidade de meus olhos e não ultrapassa minha visão. E ali estou eu, com borboleta, com leão. Minha clareira tem uns minérios, que são as cores. Só existe uma ameaça: é saber com apreensão que fora dali estou perdida, porque nem sequer será a floresta (esta eu conheço de antemão, por amor), será um campo vazio (e este eu conheço de antemão através do medo) – tão vazio que tanto me fará ir para um lado como para outro, um descampado tão sem tampa e sem cor de chão que nele eu nem sequer encontraria um bicho para mim. Ponho a apreensão de lado, suspiro para me refazer, e fico toda gostando de minha intimidade com o leão e as borboletas: nenhum de nós pensa, a gente só gosta. Também eu, nessa visão-refúgio, não sou em preto e branco: sem que eu me veja, sei que para eles eu sou colorida, embora sem ultrapassar a capacidade de visão deles, o que os inquietaria, e nós não somos inquietantes. Sou com manchas azuis e verdes só para estas mostrarem que não sou azul nem verde – olha só o que não sou! A penumbra é de um verde-escuro e úmido, eu sei que já disse isso mas repito por gosto de felicidade: quero a mesma coisa de novo e de novo. De modo que, como eu ia sentindo e dizendo, lá estamos. E estamos muito bem. Para falar a verdade, nunca estive tão bem. Por quê? Não quero saber por quê. Cada um de nós está no seu lugar, eu me submeto com prazer ao meu lugar de paz. Vou até repetir um pouco mais minha visão porque está ficando cada vez melhor: o leão amarelo pacífico e as borboletas voando caladas, eu sentada no chão bordando e nós assim cheios de gosto pela clareira verde. Nós somos contentes.

Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Nenhum comentário:

Postar um comentário