Nesse dia, vestira o azul. Fora um labor infindável. Vieram tantas que ficara exausto. Tinha sido uma revelação. Não era que havia um ror de palavras a acreditar no impossível.
O azul era a cor da utopia. Todas aquelas palavras que tinham lançado acordes, que poetavam, que esgrimiam o som libertário para uma nova humanidade, que carregavam o sonho de um mundo justo se enfileiraram para que as afinasse. Outras ainda, mal alinhadas nas letras que as faziam nascer, vinham trôpegas à espera de um elixir que as fortalecesse. Só ele conhecia os poderes do azul. Só ele sabia quem o podia vestir. A autenticidade revelava-se a um pequeno lançar de olhos. Ficou atónito com tanta palavra genuína. Que fazer se o dia tinha cronómetro? E ele que se exigia demais. Como dizimar tanta maleita inesperada?
Frágeis e desamparadas rogavam, com assertiva doçura, uma recuperação. O azul era melodicamente gentil, intrinsecamente harmonioso. Fugia ao aparatoso, ao ruído dissonante da exigência. Elas, as palavras, queriam não um remendo, não um penso que se acomodasse às circunstâncias desse tempo crísico, dessa época infame. Não . Ouvira, límpido e nítido, sem qualquer vacilação, um rotundo e ardente não. Que burilasse. Que se servisse de um cinzel e as esculpisse sem demora, mas para todo o sempre.
Qual folha caduca? Que pensamento abstruso. O Outono acontecia apenas na natureza. Palavras são palavras. Têm vida própria. Forma definida e lugar no repositório das nações. E sabia-se. Era um dado categórico. E o azul identificava as palavras que acreditavam no impossível.
Trabalhou. Recuperou. Cinzelou. Remendou. O dia prolongou-se até que a cor se tornou invisível. Muitas palavras ficaram prostradas no chão, quando se obscureceu. Nada mais podia fazer. Sem os raios do sol, o azul tornava-se volátil. Desaparecera na magia do insondável poder da luz.
Amanhã seria outro dia. Vestiria também uma outra cor. Afinaria outras palavras. O azul teria de esperar pela roda do tempo.
Agora, escurecia. A noite protegia. Guardara uma única palavra. Trazia-a no bolso. Vinha redonda . A sorrir para quem a esperava, a espargir um odor magnificente. Que azul luminoso a vestia. Era única e imperdível. Fora difícil restabelecê-la. Com ela estavam associadas muitas outras palavras . Não eram visíveis. Mas compunham-na .
Uma sinfonia soltava-se, audível apenas para ele: a sinfonia da criação. Desconhecida, majestosa e sedutora. Nem ao fluir, a lembrança dos sons do Oratorio de Haydn se apunha. Surgiam diferentes, apesar de produzidos pela estética do belo e sustentados por um denominador comum. Separava-os a sonoridade dos instrumentos. Era uma sinfonia de acordes únicos, heróicos e gloriosos. Uma sinfonia que se erguera do caos, do nada informe que debruava o vazio. Explodia, alargando-se, em eufónicos e imparáveis movimentos, para lhe encher o corpo e a mente de novas forças, de diferentes vontades que teria de partilhar.
Vinha com uma palavra forte. Sabia-o. Vira-a por dentro. Tinha as letras bem desenhadas. Nove letras em sincronia perfeita. Ficaria para sempre, como a saudade das coisas felizes. Deixaria de lhe pertencer, logo que fosse apresentada. Seria de todos e para todos.
Com leveza e disciplinada ternura, começou a retirá-la devagarinho. À medida que saía, a noite transformava-se. Tomava-a um novo e estranho esplendor. E quando a desnudou e a mostrou inteira , o brilho intenso da Liberdade iluminou os rostos e encheu de promessas o coração de cada um.
Assim se cumpria, naquele dia, o sonho que veste o azul.
Maria José Vieira de Sousa, "O Afinador de palavras"
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