Encontrei-o pela primeira vez a bordo do Zemlia. Nesse velho navio, nós, judeus, estávamos deixando a Rússia; temíamos os pogroms. Acenavam-nos com a promessa da América e para lá viajávamos, comprimidos na terceira classe. Chorávamos e vomitávamos, naquele ano de 1906. Eles já estavam no navio, quando embarcamos. Shabtai Zvi e Natan de Gaza. Nós os evitávamos. Sabíamos que eram judeus, mas nós, da Rússia, somos desconfiados. Não gostamos de quem é ainda mais oriental do que nós. E Shabtai Zvi era de Esmirna, na Ásia Menor — o que se notava por sua pele morena e seus olhos escuros. O capitão nos contou que ele era de uma família muito rica. De fato, ele e
Natan de Gaza ocupavam o único camarote decente do barco. Então, por que iam para a América? Por que fugiam? Perguntas sem resposta. Natan de Gaza, um homem pequeno e trigueiro, despertava-nos particularmente a curiosidade. Nunca tínhamos visto um judeu da Palestina de Eretz Israel — uma terra que para muitos de nós só existia em sonhos. Natan, um orador eloquente, falava para um público atento sobre as suaves colinas da Galileia, o belo lago Kineret, a histórica cidade de Gaza, onde ele nascera, e cujas portas Sansão tinha arrancado.
Bêbado, porém, amaldiçoava a terra natal: “Pedras e areia, camelos, árabes ladrões...”. Ao largo das ilhas Canárias, Shabtai Zvi surpreendeu-o maldizendo Eretz Israel. Surrou-o até deixá-lo caído no chão, sangrando; quando Natan ousou protestar, demoliu-o com um último pontapé.
Depois disso passou dias trancado no camarote, sem falar com ninguém. Passando por ali ouvíamos gemidos... e suspiros... e suaves canções. Uma madrugada acordamos com os gritos dos marinheiros. Corremos ao convés e lá estava Shabtai Zvi nadando no mar gélido. Baixaram um escaler e a custo conseguiram tirá-Lo da água. Estava completamente nu e assim passou por nós, de cabeça erguida, sem nos olhar — e foi se fechar no camarote. Natan de Gaza disse que o banho fora uma penitência, mas nossa conclusão foi diferente: “É louco, o turco”.
Chegamos à ilha das Flores, no Rio de Janeiro, e de lá viajamos para Erexim, de onde fomos levados em carroções para os nossos novos lares, na colônia denominada Barão Franck, em homenagem ao filantropo austríaco que patrocinara nossa vinda. Éramos muito gratos a este homem que, aliás, nunca chegamos a conhecer. Alguns diziam que nas terras em que estávamos sendo instalados mais tarde passaria uma ferrovia, cujas ações o barão tinha interesse em valorizar. Não acredito. Acho que era um bom homem, nada mais. Deu a cada família um lote de terra, uma casa de madeira, instrumentos agrícolas, animais. Shabtai Zvi e Natan de Gaza continuavam conosco. Receberam uma casa, embora ao representante do barão não agradasse a ideia de ver os dois juntos sob o mesmo teto.
— Precisamos de famílias — disse incisivamente — e não de gente esquisita.
Shabtai Zvi olhou-o. Era tal a força daquele olhar que ficamos paralisados. O agente do barão estremeceu, despediu-se de nós e partiu apressadamente.
Lançamo-nos ao trabalho.
Como era dura a vida rural! A derrubada de árvores. A lavra. A semeadura... Nossas mãos se enchiam de calos de sangue.
Durante meses não vimos Shabtai Zvi. Estava trancado em casa. Aparentemente o dinheiro tinha acabado, porque Natan de Gaza perambulava pela vila, pedindo roupas e comida. Anunciava para breve o ressurgimento de Shabtai Zvi trazendo boas novas para toda a população. — Mas o que é que ele está fazendo? — perguntávamos.
O que estava fazendo? Estudava. Estudava a Cabala, a obra-prima do misticismo judaico: o Livro da Criação, o Livro do Brilho, o Livro do Esplendor. O ocultismo. A metempsicose. A demonologia. O poder dos nomes (os nomes podem esconjurar demônios; quem conhece o poder dos nomes pode andar sobre a água sem molhar os pés; e isso sem falar da força do nome secreto, inefável e impronunciável de Deus). A ciência misteriosa das letras e dos números (as letras são números e os números são letras; os números têm poderes mágicos; quanto às letras, são os degraus da sabedoria). É então que surge em Barão Franck o bandido Chico Diabo. Vem da fronteira com seus ferozes sequazes. Fugindo dos “Abas Largas”, esconde-se perto da colônia. E rouba, e destrói, e debocha. Rindo, mata nossos touros, arranca-lhes os testículos, e come-os, levemente tostados. E ameaça matar-nos a todos se o denunciarmos às autoridades. Como se não bastasse esse infortúnio, cai uma chuva de granizo que arrasa as plantações de trigo. Estamos imersos no mais profundo desespero quando Shabtai Zvi reaparece.
Está transfigurado. O jejum devastou-lhe o corpo robusto, os ombros estão caídos. A barba agora, estranhamente grisalha, chega à metade do peito. A santidade envolve-o, brilha em seu olhar.
Caminha lentamente até o fim da rua principal... Nós largamos nossas ferramentas, nós saímos de nossas casas, nós o seguimos. De pé sobre um montículo de terra, Shabtai Zvi nos fala.
— Castigo divino cai sobre vós!
Referia-se a Chico Diabo e ao granizo. Tínhamos atraído a ira de Deus. E o que poderíamos fazer para expiar nossos pecados?
— Devemos abandonar tudo: as casas; as lavouras; a escola; a sinagoga; construiremos, nós mesmos, um navio — o casco com a madeira de nossas casas, as velas com os nossos xales de oração. Atravessaremos o mar. Chegaremos à Palestina, a Eretz Israel; e lá, na santa e antiga cidade de Sfat, construiremos um grande templo.
— E aguardaremos lá a chegada do Messias? — perguntou alguém com voz trêmula. — O Messias já chegou! — gritou Natan de Gaza.
— O Messias está aqui! O Messias é o nosso Shabtai Zvi!
Shabtai Zvi abriu o manto em que se enrolava. Recuamos, horrorizados. Víamos um corpo nu, coberto de cicatrizes; no ventre, um cinturão eriçado de pregos, cujas pontas enterravam-se na carne. Desde aquele dia não trabalhamos mais. O granizo que destruísse as plantações. Chico Diabo que roubasse os animais, porque nós íamos embora. Derrubávamos as casas, jubilosos. As mulheres costuravam panos para fazer as velas do barco. As crianças colhiam frutas silvestres para fazer conservas. Natan de Gaza recolhia dinheiro para, segundo dizia, subornar os potentados turcos que dominavam a Terra Santa.
— O que está acontecendo com os judeus? — perguntavam-se os colonos da região. Tão intrigados estavam que pediram ao padre Batistella para investigar. O padre veio ver-nos; sabia de nossas dificuldades, estava disposto a nos ajudar.
— Não precisamos, padre — respondemos com toda a sinceridade. — Nosso Messias chegou; ele nos libertará, nos fará felizes.
— O Messias? — o padre estava assombrado. — O Messias já passou pela terra. Foi Nosso Senhor Jesus Cristo, que transformou a água em vinho e morreu na cruz por nossos pecados.
— Cala-te, padre! — gritou Santa. — O Messias é Shabtai Zvi! Santa, filha adotiva do gordo Leib Rubin, perdera os pais num pogrom. Ficara então com a mente abalada. Seguia Shabtai Zvi por toda a parte, convencida de que era a esposa reservada para o Ungido do Senhor. E para surpresa nossa Shabtai Zvi aceitou-a: casaram-se no dia em que terminamos o casco do barco. Quanto à embarcação, ficou muito boa; pretendíamos levá-la ao mar, como Bento Gonçalves transportara seu navio, sobre uma grande carreta puxada por bois.
Estes já eram poucos. Chico Diabo aparecia agora todas as semanas, roubando duas ou três cabeças de cada vez. Alguns falavam em enfrentar os bandidos. Shabtai Zvi não aprovava a ideia. “Nosso reino está além do mar. E Deus vela por nós. Ele providenciará.”
De fato: Chico Diabo desapareceu. Durante duas semanas trabalhamos em paz, ultimando os preparativos para a partida. Então, num sábado pela manhã, um cavaleiro entrou a galope na vila. Era Gumercindo, lugar-tenente de Chico Diabo.
— Chico Diabo está doente! — gritou, sem descer do cavalo. — Está muito mal. O doutor não acerta com o tratamento. Chico Diabo me mandou levar o santo de vocês para curar ele.
Nós o rodeávamos em silêncio.
— E se ele não quiser ir — continuou Gumercindo — é para nós queimar a vila toda. Ouviram?
— Eu vou — bradou uma voz forte.
Era Shabtai Zvi. Abrimos caminho para ele. Aproximou-se lentamente, encarando o bandoleiro.
— Apeia.
Gumercindo desceu do cavalo. Shabtai Zvi montou.
— Vai na frente, correndo.
Foram os três: primeiro Gumercindo, correndo; depois Shabtai Zvi a cavalo; e fechando o cortejo, Natan de Gaza montado num jumento. Santa também quis ir mas Leib Rubin não deixou.
Ficamos reunidos na escola todo o dia. Não falávamos; nossa angústia era demasiada. Quando caiu a noite ouvimos o trote de um cavalo. Corremos para a porta. Era Natan de Gaza, esbaforido.
— Quando chegamos lá — contou — encontramos Chico Diabo deitado no chão. Perto dele, um curandeiro fazia mandingas. Shabtai Zvi sentou perto do bandido. Não disse nada, não fez nada, não tocou no homem — só ficou olhando. Chico Diabo levantou a cabeça, olhou para Shabtai Zvi, deu um grito e morreu. O curandeiro, eles mataram ali mesmo. De Shabtai Zvi nada sei. Vim aqui avisar: correi, fugi!
Metemo-nos nas carroças e fugimos para Erexim. Santa teve de ir à força. No dia seguinte, Leib Rubin nos reuniu.
— Não sei o que vocês estão pensando em fazer — disse — mas eu já estou cheio dessas histórias todas: Barão Franck, Palestina, Sfat... Eu vou é para Porto Alegre. Querem ir comigo?
— E Shabtai Zvi? — perguntou Natan de Gaza com voz trêmula (era remorso o que ele sentia?).
— Ele que vá para o diabo, aquele louco! — berrou Leib Rubin. — Só trouxe desgraças!
— Não fale assim, pai! — gritou Santa. — Ele é o Messias.
— Que Messias, nada! Acaba com essa história, isso ainda vai provocar os anti-semitas. Não ouviste o que o padre disse? O Messias já veio, está bom?
Transformou a água em vinho e outras coisas. E nós vamos embora. O teu marido, se ainda está vivo, e se ficou bom da cabeça, que venha atrás. Eu tenho obrigação de cuidar de ti, e vou cuidar de ti, com marido ou sem marido!
Viajamos para Porto Alegre. Judeus bondosos nos hospedaram. E para nossa surpresa, Shabtai Zvi apareceu uns dias depois. Trouxeram-no os “Abas Largas”, que haviam prendido todo o bando de Chico Diabo.
Viajamos para Porto Alegre. Judeus bondosos nos hospedaram. E para nossa surpresa, Shabtai Zvi apareceu uns dias depois. Trouxeram-no os “Abas Largas”, que haviam prendido todo o bando de Chico Diabo.
Um dos soldados nos contou que haviam encontrado Shabtai Zvi sentado numa pedra, olhando para o corpo de Chico Diabo. Espalhados pelo chão — os bandidos, bêbados, roncando. Havia bois carneados por toda a parte. E vinho. “Nunca vi tanto vinho!” Tudo o que antes tinha água agora tinha vinho! Garrafas, cantis, baldes, bacias, barricas. As águas de um charco ali perto estavam vermelhas. Não sei se era sangue das reses ou vinho. Mas acho que era vinho.
Ajudado por um parente rico, Leib Rubin se estabeleceu com uma loja de fazendas. Depois passou para o ramo de imóveis e posteriormente abriu uma financeira, reunindo grande fortuna. Shabtai Zvi trabalhava numa de suas firmas, da qual eu também era empregado. Natan de Gaza envolveu-se em contrabando, teve de fugir e nunca mais foi visto.
Desde a morte de Santa, Shabtai Zvi e eu costumamos nos encontrar num bar para tomar vinho. E ali ficamos toda a noite. Ele fala pouco e eu também; ele serve o vinho e bebemos em silêncio. Perto da meia-noite ele fecha os olhos, estende as mãos sobre o copo e murmura palavras em hebraico (ou em aramaico, ou em ladino). O vinho se transforma em água. O dono do bar acha que é apenas um truque. Quanto a mim, tenho minhas dúvidas.
Moacyr Scliar, "Os cem melhores contos brasileiros do século"
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