Para Octávio Ianni
Cultivei por muito tempo uma convicção: a maior aventura humana é dizer o que se pensa. Meu bisavô, vigilante, puxava da algibeira esta moeda antiga: “A diplomacia é a ciência dos sábios”. Era um ancião que calçava botinas de pelica, camisa de tricolina com riscas claras em fio da Escócia, e gravata escolhida a dedo, em que uma ponta de cor volúvel marcava a austeridade da casimira inglesa. Não dispensava o colete, a corrente do relógio de bolso desenhando no peito escuro um brilhante e enorme anzol de ouro. E o jasmim, ah, o jasmim! Um botão branco de aroma oriental sempre bem-comportado na casa da lapela. E era antes um ritual de elegância quando ajustava os óculos sobre o nariz: a mão quase em concha subia sem pressa até prender um dos aros entre o polegar e o indicador, retendo demoradamente os dedos no metal enquanto testava o foco das lentes. Neste exato momento, seu olhar ia longe, muito longe, como se vislumbrasse meu futuro distante. Talvez fosse essa antevisão que fizesse surgir o esgar fértil no canto dos lábios, era como se ele tivesse acabado de plantar ali a semente provável de um grande regozijo, daí que me puxava pela cabeça e soprava no meu ouvido:
“O negócio é fazer média”, e enfatizava a palavra negócio.
Apesar da postura solene, o bisavô, quem diria?, era chegado numa gíria. Tão vetusto, tão novíssimo, era precursor:
“Nada de porraloquice. Me promete”.
Nesse tempo, em Pindorama, mais precisamente a cada mês de setembro, sempre acontecia o Baile da Primavera. Era um baile a rigor, terno e gravata, vestidos longos, e geralmente abrilhantado pela Orquestra de Jaboticabal, fartamente anunciada como garantia de sucesso, pois gozava de grande prestígio na execução de valsas e boleros. Nesses setembros, os dias eram claros, o céu liso, “um céu de vidro” como se dizia, e a temperatura poderia ser considerada amena para a região, apesar de já prenunciar o calorão dos meses seguintes. Era um tempo propício pra tagarelar, principalmente nos finzinhos de tarde, depois da janta, quando as famílias puxavam cadeiras pras calçadas, a que se juntavam vizinhos e amigos. E ficavam rindo gostosamente à toa, jogando conversa fora, assegurando entusiasmo à algazarra das crianças. Eram risos, vozes e pequenos gritos, tudo amortecido pela amplidão do espaço livre, até que “a fresca da noite” e o sono os dispersassem.
Entre as mulheres, por semanas se falava em organza, tule, cetim, tafetá, e em tantas outras fazendas finas, entregues aos cuidados de costureiras nervosas com a quantidade das encomendas. E era também inevitável vazar o mexerico de que a Mercedes, a Rosa Stocco, ou a Brígida, enfim, uma das moças da cidade iria escandalizar com o decote ousado do vestido, e, diga-se, a cada ano mais atrevido. Esbanjavam-se ainda comentários contidos, às vezes nem tanto, sobre a perspectiva casadoura que o evento abria generoso. Mas só dias antes do baile, apesar de curtido por semanas e semanas, é que as moças de Pindorama iam às farmácias e, entre acanhadas e ar distraído, davam fim ao estoque de pedra-pomes. Era uma pedra cinza e porosa, vendida em tamanho pouco maior que um ovo de galinha, embora amorfa, que elas friccionavam na palma das mãos para eliminar as calosidades. E se aplicavam no trato da pele de tal modo que seus eventuais parceiros, durante o baile, tivessem a sensação de tomar entre suas mãos de príncipes encantados verdadeiras mãozinhas de seda de suas donzelas.
Se era assim no baile, em que românticos mancebos se alumbravam com um simples toque de mãos, capaz de transportá-los para fantasias inefáveis, imagine-se agora — nestes tempos largos e tão liberais — se mãozinhas de seda, mesmo quando de homem barbado, se insinuassem até as partes pudendas de alguém, fossem essas partes pretas, roxas, ou de cor ainda a ser declinada… Seria o êxtase!
“Nada de porraloquice. Me promete.”
Daí minha mania, se esbarro com certos intelectuais, de olhar primeiro para suas mãos, mas não só. Tenho até passado por algum constrangimento, pois me encaram com um viés torto e um tanto acanalhado, se, como bom empirista, demoro demais no aperto de mão. Que fazer? Mania é mania. Seja como for, apesar de avessos a bailes e afetarem desdém pelas coisas mundanas, o que tenho notado é que alguns deles parecem fazer uso intensivo de pedra-pomes, ainda que pudessem dispensá-la. E com a diferença também de que as moças de Pindorama, que só usavam essa pedra uma vez por ano, davam em geral duro no trabalho. Eruditos, pretensiosos, e bem providos de mãozinhas de seda, a harmonia do perfil é completa por faltar-lhes justamente o que seria marcante: rosto! Em consequência desse aparente paradoxo, tenho notado que estão entregues a um escandaloso comércio de prestígio, um promíscuo troca-troca explícito, a maior suruba da paróquia, Maria Santíssimama!, quando o troca-troca em Pindorama, picante e clandestino, era bem mais interessante. Daí que aquela pedra nostálgica, que antes era só pomes e se compunha com devaneios de mancebos e donzelas, acabou virando a pedra angular do mercado de ideias.
Schopenhauer, coitado, é que dizia amargurado: respeito os negociantes porque passeiam de rosto descoberto, apresentando-se como são, quando abrem as portas do seu comércio. Mas era ingênuo esse Schopenhauer, não sacava bem as coisas, estava por fora com sua carranca, não sabia desfrutar os doces encantos da vida e, mais que tudo, nunca levou em conta a comovente precariedade da espécie. Se bem que, mesmo precária, certos espécimes não precisavam exagerar. Aqui entre nós, pra que ir tão longe, pra que falar tanto em ética? Ponderando bem as coisas, não devemos ser duros com eles, afinal, se vai uma ponta de bravata naquela jactância toda, vai também uma carrada de candura quando metem a colher na caldeira dos valores, cutucando a menina dos olhos do capeta com vara curta, sem suspeitarem que é nessa mesma caldeira que se cozinham os impostores. Ponderando ainda em outra direção e, como dizia o bisavô, “é tudo uma questão de boa vontade”, não há por que censurá-los, devemos a eles até gratidão, afinal aqueles imaculados não deixam de contribuir de modo exemplar ao ilustrarem a versão mais acabada do humanissimus humanus. Penso que só pecariam... pecariam?
O bisavô é que sabia das coisas, não improvisava, punha milênios em cada palavra e, conciso como só ele, foi ao ponto:
“Foda-se o que a gente pensa.”
Talvez o negócio seja fazer média, o negócio é mesmo fazer média, o verbo passado na régua, o tom no diapasão, num mundanismo com linha ou no silêncio da página.
Custou mas cheguei lá, sou finalmente um diplomata, cumprindo à risca a antevisão de regozijo do bisavô, que continua por sinal mais vivo do que nunca, rindo às gargalhadas na surdina, e com quem divido agora a parafernália e o guarda-roupa, zeloso com a antiga indumentária, pisando macio minhas botinas de pelica, testando o foco das lentes, usando colete, relógio de bolso, jasmim.
(Saudades de mim!)
Raduan Nassar, "Obra Completa"
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