terça-feira, fevereiro 11

A minha morte

Acordei no meio da noite com uma forte dor no peito. Saltei da cama, com a certeza de que era um enfarte, ou algum outro mal súbito, irremediável, que em poucos minutos me arrastaria para a morte.

A dor alastrara para os ombros. Pensei em ligar para o meu médico. Desisti ao ver as horas — três da manhã. Achei que seria deselegante acordá-lo àquela hora. Fiquei acordado, caminhando de um lado para o outro, retirando livros das estantes, folheando-os e abandonando-os, enquanto me preparava para o inevitável.

Mal amanheceu liguei para o meu médico. Zangou-se comigo por não o ter acordado antes, fez-me algumas perguntas e depressa descartou a possibilidade de ser um problema grave. Nada a ver com o coração. Tudo se resolveria com alguns medicamentos e uma dieta rigorosa durante uma semana. Desliguei o telefone, numa mistura de alívio e frustração. Parece que não morrerei tão cedo, o que me convém muito; por outro lado, durante aquelas horas de angústia fiz bons planos para a minha morte. Terei de adiá-los por uns bons 40 anos, ou mesmo mais, assegura o meu médico, que por acaso também é meu sobrinho e sabe que na família é muito raro alguém partir antes dos 90.

Como tantas vezes sucede, a minha vida transitou, num piscar de olhos, do drama para a comédia. No caso, de um suposto enfarte para uma vulgar crise de refluxo gástrico. Os grandes momentos dramáticos que tenho vivido ocorreram, quase todos, apenas na intimidade tumultuosa da minha imaginação. Alguns, e esta é a parte mais estranha, na imaginação de terceiros. Por exemplo, já morri duas vezes. A última foi em novembro do ano passado. Estava em São Luís, viajando para João Pessoa, quando em Lisboa foi noticiado o falecimento de um primo (distante), que, por infeliz coincidência, partilhava comigo nome e apelido.

Na manhã seguinte, ao despertar, já na Paraíba, encontrei diversas chamadas não atendidas e uma mensagem de Mia Couto, alarmado, porque nas redes sociais moçambicanas se discutia a novidade da minha morte.

Quis saber o que comentavam. Prevalecia a consternação ou a alegria? Nem uma coisa nem outra, disse-me Mia. O que se discutia era a causa da morte. Aconteceu o mesmo quando, há alguns anos, uma televisão angolana anunciou o meu óbito, sem qualquer fundamento e também sem acrescentar pormenores. Suspeito que para muitas pessoas a forma como morremos interessa mais do que a forma como vivemos.

Vivemos em estado de distração, recusando-nos a reconhecer a fragilidade da vida. Pequenos sustos têm o mérito de nos despertar. Mesmo assim, como escreveu Fernando Pessoa/Bernardo Soares no “Livro do desassossego”, a morte nunca parece inteiramente real: “A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um traje que se deixou.” Algumas páginas adiante, Pessoa insiste nesta ideia: “Todos nós sabemos que morremos; todos nós sentimos que não morreremos. Não é bem um desejo, nem uma esperança, que nos traz essa visão no escuro de que a morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito com as entranhas, que repudia.”
José Eduardo Agualusa

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