(Terra: para a maioria dos filhos do céu, a terra é uma fantasia dos velhos. Para os velhos é um sonho no qual eles próprios já não acreditam.)
– Os meus pais são amigos dele. Cresci, ouvindo-o a falar do céu. Sonhava em partir sozinha, como ele, para descobrir outros mundos.
Aimée vivia com os pais e um irmão mais velho num apartamento situado no Oitavo Piso. O Oitavo Piso é o segundo mais luxuoso do Paris. Acima dele desdobram-se cinquenta habitações, ocupadas por famílias riquíssimas e poderosas. É ali, no Nono Piso, que se alonga o famoso Jardim de Luxemburgo, com uma alameda ornada de palmeiras e a réplica exata de um café, o Buvette des Marionnettes, que existiu na antiga Cidade-Luz. O Jardim de Luxemburgo é também famoso pelo enorme lago, no centro, com flamingos. Ao entardecer, os flamingos esvoaçam pelo jardim como elegantes milagres cor de rosa.
O pai de Aimée, Jean-Pierre Longuet, enriqueceu, na terra, a vender computadores. Hoje é o diretor de Informática e Comunicações do Paris, cargo importante, que ele exerce com zelo e competência. A mãe, uma senhora muito alta, de quem Aimée herdou o azul dos olhos e o coração inquieto, foi uma atriz de cinema muitíssimo popular em França. Hoje, dá aulas de ioga. Já Alain, o irmão de Aimée, partilha com o pai a paixão pela informática. Passa a maior parte do tempo a navegar na Internet e a inventar programas e jogos, os quais oferece, depois, a uma meia dúzia de amigos virtuais. Aimée mantém com o irmão uma relação tensa e intensa. Amam-se e odeiam-se. Tão depressa estão aos gritos um com o outro, como aos abraços e carinhos.
Não invejo a vida dos ricos. Sim, eles alimentam-se melhor do que nós. Podem esperar, a cada dia, uma refeição diferente. Não sofrem com o frio e nem enfrentam o terror das grandes tempestades. Em contrapartida padecem de um tédio infindo, o que se me afigura, a mim, a pior das condenações.
O Paris é famoso pelas grandes festas. Estive em algumas. Não achei nelas alegria, antes uma melancolia ruidosa e um sentimento geral de exaustão e ceticismo. Os jovens parisienses dos andares superiores são, quase todos, tão vazios e estéreis quanto um mar sem peixes. Aimée e, de uma outra maneira, o irmão, o esquivo Alain, escapam à regra. Ambos souberam aproveitar os privilégios de que dispunham. A minha amiga estudou astronomia e biologia marinha, leu Borges, Pessoa e Nabokov, praticou judo e aikido. Tive, aliás, a possibilidade de confirmar a habilidade dela no domínio das artes marciais. Uma noite em que eu não trabalhava, combinamos encontrar-nos num bar chamado Baudelaire. Cheguei, como sempre, demasiado cedo. Sentei-me à espera. Um rapaz muito magro aproximou-se de mim:
– Já deixam entrar imigrantes nesta espelunca?
Olhei-o, atônito. Nasci numa pequena aldeia, e sei que posso parecer às vezes um tanto simplório e ingênuo. Contudo, habituei-me desde cedo a enfrentar tempestades. Ergui-me e encarei o imbecil. Perguntei-lhe o nome. Ele hesitou. Voltou-se na direção de um grupo de garotos, muito emproados, que cochichavam entre si, e gritou:
– O parolo quer saber como me chamo.
Dominei a irritação, e voltei a sentar-me, decidido a ignorá-lo. Não tive sorte. O magricelas agarrou-me pela gola da camisa:
– Volta para a tua balsa. Paris é para os parisienses.
Atirei-o para longe (ele era muito leve) e os outros caíram-me em cima, aos socos e pontapés. Aimée surgiu segundos depois. Mergulhou na confusão com a mesma elegância com que saltava para a água, e em gestos precisos, sem esforço aparente, afastou o mais alto dos agressores, estendeu um segundo no chão, e, agarrando em mim, arrastou-me para a porta.
– Não te posso deixar sozinho. Arranjas logo problemas.
A partir dessa noite passei a ter mais cuidado com os lugares que frequentava. Passei também a sentir-me muito mais seguro na presença de Aimée. “Caímos sete vezes, e levantamo-nos oito”, disse-me uma vez. É um dos mandamentos do aikido. Ela aplica-o na vida. Quando tinha doze anos foi-lhe diagnosticada leucemia. Aimée enfrentou a doença com serenidade. Ignorou a consternação dos adultos e o horror das restantes crianças. Não permitiu que a rotina dos tratamentos, a soma de pequenos e grandes desconfortos, interferisse nos seus estudos e, menos ainda, lhe toldasse a luz. Os médicos acham que a rápida recuperação se deveu a essa alegria e determinação.
Recordo uma outra noite, em que fomos passear para o Jardim de Luxemburgo. Enfiei com gosto as mãos na terra úmida.
– Este cheiro. Nunca senti um cheiro assim. É maravilhoso.
Aimée troçou do meu entusiasmo. Abraçou-me. Os pais costumavam levá-los ao jardim, a ela e ao irmão, quando eram crianças. Gostavam que os filhos remexessem na terra. Pretendiam partilhar com eles a dor da perda. O resultado foi que Alain passou a sofrer de pesadelos. Sonhava que a família regressava a França, onde eram perseguidos por animais ferozes. A irmã, mais feliz, passou a comer terra às escondidas. Ela acredita ter sido esse vício extraordinário, mais do que os medicamentos ou o indestrutível otimismo, que a ajudou a vencer a doença.
José Eduardo Agualusa, "A Vida no Céu"
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