Os possessos da Soberba evitam as aglomerações, as misturas. Portas fechadas, o horror da invasão. Gostam de reuniões sociais seletas mas espaçosas, onde os peitos estufados, cobertos de medalhas, iniciam a lenta dança dos pavões – poder político, poder econômico e outros poderes, varetas dos leques que se cruzam mas não se olham, o que digo? se olham para admirar a própria imagem refletida no olho do outro. Já os possessos da Inveja têm especial predileção pelos palácios burocráticos e centros de artistas do baile das quatro artes, ô Deus! como sofrem os invejosos na luta competitiva à qual são condenados, os olhos cozidos como os olhos da lagosta em água fervente, sou Caim matando meu irmão? Sou Judas traindo o meu Mestre? O invejoso só tem trégua com a infelicidade do próximo mas por que no lugar desse próximo aniquilado nascem dez, vinte vencedores?! Um sofrimento. De todos os pecadores, talvez o invejoso seja o que mais sofre embora os possessos da Luxúria também rodopiem sem descanso, as injúrias (era assim que minha pajem chamava às partes baixas) açuladas e trespassadas pelos garfos dos diabinhos luxuriosos, a voz pesada, o olhar pesado – tantas ruas do prazer e do desprazer da insatisfação. Os estímulos da indústria do sexo no auge do aperfeiçoamento para o desempenho à altura e ainda a ansiedade, o desassosego na busca que é só obsessão, sou caçador? Ou caça? Mas essa gente não pensa noutra coisa? – perguntaria tia Pombinha diante de uma banca de revistas e jornais. Pensa, sim. Pensa muito em guardar e agora as caras e casas tomam um ar respeitável, estamos entrando na rua dos bancos e dos negócios: eis a Avareza com seus demoninhos de olho vivo, umedecendo a ponta do dedo entortado de tanto contar dinheiro, medo de dar, medo de dividir. O medo dos medos: medo de perder, ih! como acumular tudo numa vida assim provisória? “Mas por que o desperdício dessa vela acesa?” – reclamou o avarento que preferiu morrer no escuro. Quanto aos possessos da Gula e da Preguiça, esses se espalharam tão intensamente: os da Gula nos bairros ricos de preferência, não por virtude dos pobres mas por simples insuficiência econômica. Se a beleza (que os luxuriosos amam) virou artigo de luxo, a comida só pode ser um belo vício nos bairros de classe A. É por acaso que falo nos dois pecados assim juntos porque o preguiçoso nunca é um guloso. A gula exige empenho, imaginação do apetite. Mastigar cansa e esse dispêncio de energia o preguiçoso evita, prefere papinhas, líquidos. Quando o guloso chega à saciedade e não está saciado (nunca está) mete o dedo na garganta, quer recomeçar tudo. Mas eis uma violência que o preguiçoso detesta: o ato de vomitar. Ou antes, que não aprecia porque ele não odeia nem ama, a paixão é laboriosa, exige fervor e o preguiçoso nunca esquenta. Não se define nem define: contorna. Na imobilidade se defende dos prazeres da cama e da mesa. No alheamento que chama de privacidade, se guarda. Música suave, que não seja solicitante. Pessoas que não façam perguntas, ele nem sequer termina as frases, os gestos. A graça das coisas incompletas no ar… Vem a mosca obumbrada, pousa na sua face e ele afasta a mosca com um movimento brando mas quando ela volta uma segunda vez ele deixa ficar deixa ficar deixa ficar.”
Lygia Fagundes Telles, "A disciplina do amor"
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