quinta-feira, fevereiro 13

Dona Maria

Dona Maria me disse: não aguento mais, já estou pra comprar uma gaita, me sentar na calçada, e ficar tocando, tocando…

— Mas só pra distrair?

— Que mané pra distrair! O senhor não está entendendo? – Entendo. A senhora vai ficar sentada na calçada, de vestido sujo, cabelos despenteados, esquálidos, a soprar uma gaitinha rouca, não é?

Depois as pessoas ficarão com pena da sua figura esfarrapada, tocando uma gaitinha rouca, e jogarão moedas encardidas em seu colo encardido, não é?

Seu vestido ficará salpicado de mosca e lama

A senhora de três em três minutos dará uma chegada no boteco da esquina e tomará um trago

Com pouco a senhora estará balofa, inchada de cachaça, os lábios como cogumelos

Sua boca vai cair no chão

Uma lagarta torva pode ir roendo seus dias superiores pelo lado de fora

Um moleque pode passar a esfregar terra em seu olho

Ligeiro visgo escolha a crescer de seus pés

Alguns dias depois sua gaita ficará cheia de formiga e areia

A senhora estará cheia de lacraias sem anéis

E ninguém suportará o cheiro do seu corpo, não é assim?

Dona Maria teve um arrepio.

— Epa moço! eu não queria dizer isso. Só pensei em comprar uma gaita, eu sentar na calçada e ficar tocando, tocando… até que a vida melhorasse. O resto o senhor que inventou. Desse jeito, já estou vendo os meninos passarem por mim a gritar: — Maria Gaiteira, fiu! Maria Gaiteira,

Fiu Fiu!

Por favor, moço, mande esses meninos embora pra casa deles. O senhor já me largou na sarjeta, já fez crescer visgo no meu pé, e agora ainda manda os moleques me xingarem…
Manoel de Barros, "Poesia completa" 

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